- Eu penso que a educaça~deve ter a função de libertar, de promover a vida. um ambiente natural, nas condiçoes naturais básicas de um ambiente natural na sua realidade. Não saimos da escola preparados para a vida, porque lá não se vive. Lá se manda e se obedece. Nenhum jovem sai preparado para a vida. a escola expulsa logo que o jovem está "preparado". preparado para o fracasso, para a derrota, para ser humilhado. se não consegue ser bom na aquilo que lhe "ensinaram", já era.
- Mas do que você está falano home...!
Pegou uma caneca e jogou água na cabeça. Passou a mão nos cabelos molhados. Deu uma olhada no espelho passando a toalha na cabeça.
- Sabe de uma coisa! Ah! que é isso! Eles foram para a escola... ou...
- Foram nada.
- Hum! Tão onde...!
- Não me disseram... Quem vai te dá ouvido...
- Não sei, e deveria nem me dar mesmo. Outro dia fiquei pensando umas loucuras. imaginei uma escola que pudesse dizer que seus alunos... que seus alunos chegasse na praia com certeza absoluta.
- igualitarista!
- É, é preciso, de certa forma um padrão, mas esse padrão ter que absoluto. Tem que garantir aquilo que a religião garante aculá. Tem que garantir na vida aquilo que a religião garante na morte.
- uma escola que diga a verdade em relação a religião, né isso...
- sim , voce entendeu. que voce acha..
- primeiro gostaria de ouvi-lo mais. prossiga!
-
CLAUDIO FONTANA
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
sábado, 29 de setembro de 2012
DE HOMENS QUE CRÊEM A HOMENS QUE PENSAM
O PROBLEMA: E que consiste o fenômeno
religioso?
A TESE: Qualquer religião representa
uma forma de alienação, uma patologia
do espírito pela qual o homem projeta a sua humanidade fora de si mesmo,
criando inconscientemente um ídolo ao qual depois se submete. Consequentemente,
todo progresso em campo teológico se transmuta em um correspondente abaixamento
da humanidade. A glória de Deus funda-se na diminuição do homem, a beatitude
divina na miséria humana, a divina sapiência na insensatez humana, a potencia
divina na fraqueza humana. O ateísmo torna-se, assim, um dever ético do homem
que reencontrou a si mesmo. É preciso transformar os homens de amigos de Deus
em amigos dos homens, de homens que creem em homens que pensam de candidatos a
outro mundo em estudiosos deste mundo, de cristãos – que se reconhecem metade
animais e metade anjos – em homens na sua inteireza.
A SÍNTESE: A religião é uma ilusão
perniciosa. Vejamos: em suas relações com as ideias religiosas, a razão
consciente deve apenas destruir uma ilusão, porem, que está longe de ser
inócua, porque exerce sobre o homem uma influencia fundamental perigosa e
funesta, que destrói as suas forças para a vida real e lhe faz perder o sentido
da verdade e da virtude.
O amor
religioso é contra a natureza. Vejamos: de fato, o próprio amor, sentimento em
si mais verdadeiro, é corrompido pela religião e transformado em um sentimento
puramente aparente e ilusório; o amor religioso não ama o homem senão por amor
a Deus – ou seja, ama o homem só aparentemente. As historias da religião
primitiva até os dias de hoje falam por si sós. Porque na realidade não ama o
homem, mas Deus. É de se ver que se uma espécie viva inteligente sabendo dessa
fraqueza humana poderia se fazer passar por um Deus, Jesus, e com sua
tecnologia, poderia facilmente escravizar os humanos religiosos que “subiriam”
com eles. E, até, matariam os homens que os alertassem dessa armadilha.
Portanto, a humanidade está em perigo, considerando que possa existir uma mente
inteligente extraterrestre.
Deus é pensado
em contraposição ao ser humano. Considere: a religião é a cisão do homem
consigo mesmo: ele se põe diante de Deus como um ser contraposto. Deus é o ser
infinito, o homem é o ser finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é
eterno, o homem temporal; Deus é onipotente, o homem impotente; deus é santo, o
homem pecador. Portanto, deus e o homem são extremos: Deus é o polo positivo, a
some de todas as realidades, o homem é o polo negativo, a soma de todas as
nulidades.
O próprio fato
de o homem sentir-se cindido de Deus significa que não é verdadeiramente um
outro ser. O homem tem como objeto, na religião, o seu ser oculto. Deve-se
portanto, demonstrar que essa antítese, essa desarmonia entre Deus e o homem,
onde a religião tem sua origem, é uma desarmonia do homem com o seu próprio ser. A intima necessidade
dessa demonstração resulta do fato de que se realmente o ser divino, o objeto
da religião, fosse algo diferente do ser homem, não podia realizar-se uma
cisão, uma desarmonia. Se realmente Deus é um outro ser, que me importa a sua
perfeição?
Pode cindir-se
somente aquilo que é em si unitário. Portanto, cisão só existe entre seres em
discordância entre si, mas devem, depois de cindido, constituir um único ser;
podem sê-lo e, em consequência, essencialmente são realmente um só ser.
Logo, deus é
uma criação da mente. Portanto, já a partir desse principio geral, deve
resultar que o ser, do qual o homem religioso se sente cindido, é um ser que
lhe é inato, mas ao mesmo tempo um ser de natureza diversa, como o ser ou o
poder que lhe dá o sentimento, a consciência da conciliação, da unidade de Deus
ou, o que forma um todo, consigo mesmo.
Deus é a
objetivação da razão humana. Porque esse ser não é nada mais que a
inteligência, a razão ou o intelecto. Deus concebido como o extremo oposto do
homem, não como um ser humano – ou seja, pessoalmente humano - ,é o ser
objetivado do intelecto. O ser divino, puro, perfeito, desprovido de defeitos é
a autoconsciência do intelecto da própria perfeição. O intelecto não conhece os
sofrimentos do coração: não tem desejos, paixões, necessidades e justamente por
isso, nenhuma deficiência ou fraqueza, como o coração.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Maquiavel: O Prefeito Quiron
Para falarmos de Maquiavel com
precisão, ou seja, entendermos sua doutrina, penso que devemos faze uma
careação ente ele e Gramsci. Já havia escrito aqui sobre Gramsci, mas sobre ele
pode se ler no poste específico.
Gramsci definiu o que é Educação
assim como Maquiavel definiu o que é Política. Vejamos, de maneira concisa como
Gramsci definiu a educação e sua semelhança com Maquiavel: Gramsci havia
escrito alguns textos críticos de “alguns princípios da educação moderna”, como
aqueles de Rousseau e Pestalozzi, segundo os quais não se devia permitir que o
educador enfadasse ou deformasse o “desenvolvimento espontâneo da personalidade
da criança”. Em algumas de suas cartas critica a “ilusão” sobre o
“desenvolvimento espontâneo” da criança: desde o primeiro momento da sua vida,
educa-se a criança para que “conforme” a seu entorno, e a escola nada mais é
que uma pequena “fração” de sua vida. “ a educação é sempre uma luta contra os
instintos relacionados ás funções biológicas básicas, uma luta contra a
natureza, para dominá-la e criar o ser humano “verdadeiro”. A aprendizagem, a
disciplina psicológica e física, necessárias para estudar e alcançar qualquer
realização, não são “prazerosas: é um processo de adaptação, um hábito adquirido com esforço, tédio e inclusive
sofrimento”.
Do que foi dito acima, não há
como negar que educação não seja assim. Já vimos aqui no blog, que Nietzsche via
a escola como uma estrutura burocrática ou administrativa. Observou correto,
mas o modelo de escola dele seriam muito
mais a de um ambiente, de uma educação muito mais convival do que propriamente
neste esquema que acabou consolidando no Ocidente, que é uma escola formal, uma
escola burocratizada, gerenciada, mais um ambiente de administração da vida do
que de fecundação da vida. e assim como Rousseau, Pestalozzi, Nietzsche
priorizava o instinto. Mas a escola não é assim. A escola é como Gramsci
apontou.
Essa atitude é comparável à de
Maquiavel, a que Gramsci se refere freqüentemente. O termo “Maquiavel” e o adjetivo
“maquiavélico” também lembram aspectos brutais e perversos do poder político,
uma vez que Maquiavel descrevia o que era política na realidade e, talvez, o
que sempre vai ser a política, e não o que deveria ser.
Gramsci e Maquiavel nos colocam
uma importante questão: qual é a função educativa de uma descrição objetiva dos
mecanismos do poder político e, no caso de Gramsci, dos mecanismos da
ideologia? Educar as pessoas para que tenham uma postura realista e, conseqüentemente,
participe da luta política contra os poderes, ou desvendar o lado culto da política,
para que as pessoas desconfie da mesma, vivam suas vidas de modo independente e
tenham uma opinião própria à margem do poder político?
Muitas indicações nos fazem crer
que o objetivo de Gramsci não era puramente descritivo e que sua meta era
orientar a um novo tipo de educação. Assim podemos dizer o mesmo de Maquiavel.
Antes de tudo, observamos sua
interpretação da “política
maquiavélica”: usando descreve sobre a contribuição de Maquiavel na
definição científica da “política”, Gramsci se faz, e faz também para nós, as
seguintes perguntas: “aquém” se dirigia
Maquiavel quando escreveu O Príncipe? Qual
era o seu objetivo e sua “política”? Parece evidente que Maquiavel não queria,
nem necessitava ensinar aos dirigentes como conseguir o poder e como matê-lo,
mas queria explicar e mostrar o mecanismo da real política. A definição de
“política” de Maquiavel não corresponde à política que ele mesmo praticava, já
que o efeito educativo de uma compreensão crítica da política consistia em
tornar as novas classes mais conscientes, e, conseqüentemente, mais forte em
oposição à velha aristocracia dirigente.
Eu fiz aqui ma simulação de uma
entrevista com Maquiavel. Isso somente para deixar a leitura mais leve e mais fácil
de ser comprendida. Durante a fala de Maquiavel eu usarei parênteses na minha
participação. Então, fica entendido, que os parênteses na fala de Maquiavel sou
eu querendo fazer um comentário. Ou seja, um tópico.
Maquiavel.
Eu – O prefeito que governa um município deve
seguir as normas da moral? O político deve se fundar em princípios éticos? A
questão da relação entre moral e política, levantada por você pela primeira vez
de modo específico, é ainda hoje objeto de debates. O filósofo, porque você como
pensador, é um filósofo, é claro: se observarmos os processos históricos na sua
objetividade (verdade efetiva), sem nos deixarmos influenciar pelo modo como,
em nossa opinião, eles deveriam ser teoricamente, emerge o critério do
realismo. A política não deve assumir do exterior a própria moralidade, mas de
ser autonormativa, porque encontra em si a própria justificação, ao garantir
aos súditos uma existência ordenada. (na bandeira do Brasil está escrito: ordem). Isso não significa que o
prefeito (chefe político) deva ser imoral ou indiferente ao bem e ao mal, mas
que às vezes o que para um individuo é ruim ( por exemplo a crueldade) torna-se
necessário na prefeitura.
Maquiavel - Resta ver ainda como
deve conduzir-se um prefeito com os seus eleitores ou com os amigos...
pareceu-me mais conveniente perseguir a verdade dos fatos, em vez da fantasia.
Muitos imaginaram prefeituras nunca vistas antes nem conhecida na realidade,
mas existe tal diferença entre como se vive e como se deveria viver, que aquele
que abandona o que faz por aquilo que deveria fazer aprende na verdade a se
arruinar, antes que a se preservar: posto que um homem que queira sempre se
comportar como bom, entre tantos que bons não são, acaba por arruinar-se.
Portanto, é necessário que um prefeito, para se manter como tal, aprenda a
poder não ser bom, e usar isso ou não, segundo a necessidade.
Eu – como o prefeito deve avaliar
um homem comum?
Maquiavel – deixando de lado as
coisas imaginadas e falando daquelas que são reais, digo que todos os homens de
que se fala, e principalmente os prefeitos, por estarem nos postos mais
elevados, se fazem notar por algumas dessas qualidades que lhes acarretam
reprovação ou louvor. Assim, existe quem é tido por magnânimo, e quem por
miserável..., quem é capaz de dar, e quem é repasse; quem é cruel e quem é
piedoso; um modesto e outro soberbo; um lascivo, e outro castro; um
integro, outro astuto; um religioso, o
outro incrédulo, e assim por diante.
Eu – Mas a moral, segundo você,
levaria a destruição do município. Então existem virtudes perniciosas e vícios
benéficos?
Maquiavel – sei que dirão que
seria muito louvável encontrar em um prefeito somente as qualidades
consideradas boas, dentre todas aquelas supracitadas; mas não sendo possível
possuí-las, nem inteiramente observá-las, porque a condição humana não o
permite, é necessário que ele seja tão prudente que saiba à infâmia daqueles
vícios que o fariam perder o poder, mas, não o conseguindo, pode-se abandonar a
eles sem atribuir-lhes muita importância. Também não deve ter escrúpulo de
atrair sobre si a censura provocada por aqueles vícios sem os quais dificilmente
poderia salvar o poder, porque, tudo considerado, existem qualidades que têm
aparência de virtude, mas leva o prefeito à ruína; e outra que, sobe a
aparência de vício, produzem a segurança e seu bem-estar...
Eu – quando são necessárias a
crueldade e a piedade? A política deve ser regida pela piedade? É melhor para o
prefeito ser mais amado do que temido ou mais temido do que amado? Sua tese é
de que a política deve usar todos os instrumentos que garanta o seu sucesso. A
moderação também é necessária, mas a bondade sistemática termina por comprometer
a ordem da sociedade, produzindo danos ainda maiores do que um mais realístico
uso da violência. Certamente, do que escreveu, o ideal, para um prefeito, seria
ser ao mesmo tempo amado e temido, mas na pratica as duas coisas não são facilmente
conciliáveis. Quem governa o Estado, portanto, deve decidir a cada vez com base
na oportunidade? Em todo caso, o que não deve fazer é submeter as práticas de
governo às normas que regem a ética individua? É isso mesmo que entendi?
Maquiavel – digo que todo
prefeito deve desejar ser considerado clemente, e não cruel: todavia, deve
cuidar de não usar mal essa clemência. César Bógia era considerado cruel; mas
essa crueldade trazia ordem à Romagna, unificando-a, pacificando-a e tornando-a
leal...
Em política, a piedade produz
mais danos do que vantagens. “assim um prefeito, para manter os seus súditos
unidos e leais, não se deve preocupar com a fama de cruel; porque, com
pouquíssimos exemplos, será mais clemente do que aqueles que, por excesso de clemência,
deixam que as desordens prossigam, provocando mortes e roubos; posto que estas
costumam atingir a inteira coletividade, quando as condenações do prefeito
atingem um indivíduo em particular.
(A crueldade é necessária para a criação
de um novo Município.)
Maquiavel - E, entre todos os prefeitos, o prefeito novo não pode
evitar ser considerado cruel, porque todos os municípios novos são cheios de
perigos...
Mesmo quando emprega a crueldade,
o prefeito não deve mostra-se pessoalmente cruel. “Todavia, mesmo o prefeito
novo deve refletir antes de confiar e de agir, sem se deixar tomar pelo medo; e
deve se comportar com prudência e humanidade, de modo que o excesso de
confiança não torne incauto e o excesso de desconfiança o torne insuportável.
(Tanto a piedade quanto a
crueldade são úteis. A crueldade é necessária.)
Maquiavel - Nasce daí a controvérsia:é
melhor ser amado do que temido ou vice-versa? A resposta é que se desejaria ser
uma coisa e outra, mas posto que é difícil colocá-las juntas e que se deve
escolher, resulta mais seguro ser temido do que amado.
(Em politica, a amizade funda-se
exclusivamente no interesse recíproco.)
Maquiavel - E aquele prefeito que confiava
inteiramente nessas palavras, encontrando-se desprovido de outros meios de
defesa, perde o poder; porque as amizades baseadas no pagamento de um preço, e
não na grandeza e nobreza de ânimo [ as amizades desinteressadas], são
emprestadas, mas não são tus e, na necessidade, não pode gastá-las...
Eu – em que consiste a política?
Quais devem ser as virtudes de um homem de Estado? Segundo você, sua célebre
máxima, em política os fins justifica os
meios. Isso significa que tendo em vista o bem comum abandonam-se as regras
ordinárias da ética individual? Do que pode entender, pelo que escreveu se necessário,
o prefeito pode chegar até a traição; o importante é que justifique o seu
comportamento com uma aparência de legitimidade. O que conta para um político,
como se diz modernamente, você morreu quando o Brasil tinha apenas 27 anos, não
é a substancia, mas a imagem?
Maquiavel – todos sabem o quanto
é louvável para um prefeito se manter leal e viver com integridade; mas, pela
experiência do nosso tempo, percebe-se terem alguns prefeitos realizado grandes
feito, levando em pouca conta a palavra dada, confundindo, pelo engano, as
mentes dos homens; e no final prevaleceram sobre aqueles que se fundaram sobre
lealdade.
Portanto, um prefeito deve ser
saber usar bem os modos do animal e os do homem. Esse tema foi ensinado aos
prefeitos, de forma velada, pelos antigos escritores, que relatam como Aquiles
e muitos outros prefeitos da antiguidade foram confiados ao centauro Quiron,
para serem criados e educados. Ter como preceptor ( professor) alguém que era
meio meio animal e meio homem significa que uma sem a outra não é duradora.
Assim, sendo prefeito obrigado a saber se portar como animal deve escolher para
tanto a raposa e o leão; porque o leão não se defende das armadilhas e a raposa
não se defende dos lobos. Logo, é preciso ser raposa para conhecer as armadilhas,
e leão para assustar os lobos.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Kant e a educação
Kant, um dos mais importantes
filósofos da história, foi diretor e professor. Ele representou um dos momentos
mais significativos da filosofia na Idade Moderna, e ainda influencia
profundamente os pensadores da atualidade.
A filosofia de Kant, mais tarde
designada como criticismo, representa a crítica mais radical a esta proposta do
pensamento metafísico tal qual foi desenvolvida na IdadeMédia.
Na Idade antiga e na Idade Média
prevaleceu o modo metafísico de pensar. Para os filósofos dessa época, as
coisas possuíam uma existência autônoma, objetiva, independente da consciência
humana. Elas eram essência criada por Deus, coexistindo eternamente. Assim,
havia uma idéia de arvore perfeita e as arvores que percebemos com os nossos
sentidos são cópias imperfeitas de sua essência. O pensamento metafísico
buscava conhecer os objetos atingindo sua essência. Do ponto de vista
filosófico, a Idade Moderno é uma ruptura. Seus filósofos acreditavam que todo
conhecimento somente poderia vir a partir da razão natural, abandonando a metafísica
e substituindo-a pela ciência. Um período marcado pelo racionalismo e pelo
naturalismo.
Com o avanço do racionalismo e do
naturalismo, já no final da Idade Média e começo da Idade Moderna, os homens
vão se dando conta de que o conhecimento é uma atribuição da sua própria razão,
da sua razão natural, e que não existe nenhuma interferência de influencias
divinas transcendentais nesse processo de representação do ser, da realidade,
dos objetos e de todos os entes e de todas as situações. O que está ocorrendo
é, exatamente, um processo de naturalização do mundo, de naturalização da razão
humana e, consequentemente, um desencantamento da própria realidade. Os homens,
por assim dizer, vão perdendo o medo de desvendar todos os supostos mistérios
da realidade e isto é feito graças ao poder da sua razão natural.
Há uma profunda crença de que a
razão natural trará luzes sobre o mundo, permitindo ao homem ter uma visão mais
objetiva da realidade. Esse período é conhecido como Iluminismo.
De modo geral, a filosofia vai se
preocupar, profundamente, com a questão do conhecimento, vai discutir a
capacidade que o homem tem de conhecer a realidade e ver se realiza esse
processo e, sobretudo, de estabelecer seus limites.
Os filósofos desse período
mostram que não há como chegar às essências das coisas, assim, a única atitude
deve ser dedicar-se ao conhecimento dos fenômenos, ou seja, aquilo que pode ser
percebido pelas simples impressões sensíveis. Por meio da razão natural, da
linguagem matemática e do contato experimental com os fenômenos, o pensamento
científico vive um grande avanço.
O que é extremamente
significativo nesse momento é que este conhecimento científico a respeito das
realidades naturais permite ao homem manipular, manusear essa realidade,
transformá-la como se fosse um co-criador dessa realidade. Nós estamos falando
do surgimento da técnica, ou seja, a ciência ao surgir no inicia da Era Moderna
e no contexto da cultura ocidental, não surge apenas como uma representação
teórica da realidade, mas, sobretudo, como conhecimento dos mecanismos que
permitem ao homem interferir na transformação desta própria realidade.
Na Idade Moderna, a ciência se
transforma na mais importante instancia cultural, principalmente pela
contribuição que pode dar à evolução da técnica e na possibilidade que dá ao
homem de adequar a realidade aos seus interesses. A filosofia vive uma profunda
modificação, sua principal preocupação deixa de ser conhecer a natureza do
homem e passa a ser compreender o processo pelo qual os homens constroem o
conhecimento.
Kant estava profundamente
impressionado com o resultado da física newtoniana. Para Kant, Newton era o
próprio símbolo do sucesso, do conhecimento verdadeiro que a ciência tinha
trazido à cultura da sua época. O papel, então, da filosofia era o de mostrar,
não só que a ciência, a física newtoniana, é o modelo exemplar do conhecimento
científico, mas este conhecimento é plenamente legitimado do ponto de vista da
lógica, do ponto de vista da epistemologia. É esta a tarefa que Kant se dedica.
Kant analisa o processo do
conhecimento humano para mostrar que a física era a aplicação das regras
fundamentais do conhecimento racional que o homem poderia desenvolver. Para
isso, fará a síntese de duas filosofias: o Inatismo, de René Descartes e o empirismo
dos filósofos ingleses, particularmente, de David Hume.
Os filósofos ingleses defendiam a
posição de que todo nosso conhecimento só podia se dar mesmo através das
impressões sensíveis, o espirito humano surgia como página em branco na qual as
impressões sensíveis viriam registrar a sua representação dos dados da
realidade. Descartes defendia a existência de algumas idéias inatas, que eram,
por assim dizer, constitutivas do próprio espirito humano e que quando entrava
em contato com o mundo natural, ele já trazia em si algumas proposições de
cunho universal.o exemplo melhor desse processo seriam as ideias matemáticas,
que estavam se revelando, àquela altura, muito fecundas para a construção do
conhecimento científico.
De modo geral, Kant explica que o
conteúdo do conhecimento vem das impressões sensíveis, como queria Hume e os
empiristas. Por outro lado, para esse conteúdo ser de fato conhecido deve ser
organizado e ordenado na consciência, de acordo com uma estrutura que já está
no sujeito que conhece. Assim, para conhecer, o homem precisa da experiência
sensível, mas também necessita de uma estrutura lógica que organize esses dados
empíricos.
Foi assim que Kant construiu a
sua famosa teoria do conhecimento, de acordo com a qual o nosso conhecimento é
formado sim com a contribuição imprescindível de intuições que são fornecidas
pela nossa sensibilidade, mas intuições que precisam ser articuladas,
sistematizadas, esquematizadas por esquemas a priori, que são constitutivas da
própria racionalidade humana, da própria condição do conhecimento.
Para Kant, a sensibilidade como pensava Hume. O sujeito humano depende
de esquemas ordenadores ou estruturas formais presentes, a priori, no sujeito,
que são o tempo e o espaço. Com a aplicação desses esquemas ordenadores, dessas
formas a priori, o sujeito consegue organizar os conteúdos que são passados a
ele a partir da experiência sensível. Segundo Kant, nós não podemos aprender a
essência dos objetos, mas apenas seus fenômenos, ou seja, somente aquilo que se
pode observar.
O mundo, a árvore que nós estamos
vendo não chega “bonitinha” assim no cérebro. Ao contrário, vem em uma onda
magnética que vai pegando a retina e vai mandado, é uma coisa atrás da outra,
em carreirinha. O que vai acontecer no cérebro? Aquilo que acontece na
televisão. O que é a televisão? Como funciona a televisão? Na televisão a onda
eletromagnética é pontual, ou seja, ela vai atrás uma da outra, quer dizer, o fenômeno,
a emissão da luz verde no meu olho vem uma atrás da outra e, então, chega ao
cérebro e é lá que se faz a organização. Então, primeiro uma organização
espacial forma uma silhueta e depois isto dura no tempo. E a duração do tempo é
que dá a ideia de uma imagem permanente. Mas o nosso olho não está vendo assim,
quem está vendo assim é o cérebro. É o que acontece na televisão. O que
acontece na televisão? A câmera pega a imagem e é em linhas, como a gente sabe,
é uma varredura e é transmitido depois para o espaço também em ondas, em
fileira, é um fio e que chega ao monitor, ou seja, vai fazer aquela varredura
24 quadros por segundo e que isso vai permitir que o olho faça o mesmo processo
também, ou seja, tanto a imagem, que depois Kant joga para o conceito, são
construtos. É por isso que o computador, que foi feito a imagem e semelhança do
sistema nervoso, justamente, chamou-se, no primeiro momento, cérebro eletrônico
e depois chama-se processador. O que acontece? Todos os comandos que nós damos são
bits, são pontos unitários, (010101010...). o que o processador faz? Organiza,
sintetiza, e para Kant, toda atividade do conhecimento é uma atividade de
síntese e não de análise, então, este poder de sintetizar é o x da questão, mas
para fazer isso, nós temos que ter o processador interno e o processador é o
sujeito transcendental, porque, na verdade,o processador está imitando aquilo
que supostamente nós fazemos. A gente não sabe como é que o cérebro faz tudo
isso, o que a química e a neurologia têm a ver com tudo isso. Por mais que você
estude na neurociência como é que o cérebro, os neurônios estão funcionando, o
que acontece com eles do ponto de vista enegértico, do ponto de vista químico,
a sinapse, todas aquelas coisas, o problema é que gera um sentido e que tem uma
base físico-química, biológica, é inegável, tanto que se você ficar dois minutos
sem oxigênio, pifa tudo. Mas ao mesmo tempo gera uma cadeia de significações
que transcende esse contato físico, porque todos os nossos conceitos, por
exemplo, o conceito de sofá, quando eu chego a essa representação, eu chego na
do processo, eu não vejo, nós não assistimos ao processo em si.por isso, olha
como tudo vai se achando, de onde vem o construtivismo de Piaget? De Kant, quer
dizer, Kant mostrou que o sujeito é ativo, o sujeito não é passivo. Mas essa
atividade é como se você pusesse um andaime para construir um prédio. Você põe
um andaime e constrói um andar, você aumenta um andaime e constrói um próximo
andar. São estruturas, estruturas armadas, aliás, andaimes chamam-se
estruturas, estruturas metálicas que você vai usar para compor, e isso foi o
que Piaget tentou mostrar, inclusive empiricamente. Ele tinha uma grande
admiração por Kant, assim como Newton fez a física, ele queria fazer uma
ciência da psicologia que mostrasse o mesmo processo, quer dizer, a psicogênese
e, depois, a noogênese também, que dizer, como é que a própria razão procede
dessa maneira.
Na teoria do conhecimento de
Kant, além das intuições sensíveis que recebemos e da organização das
informações pelas estruturas de conhecimento que todo homem possui, há uma
terceira faculdade, que é a razão. A razão é a faculdade das ideias.
Qual foi o erro dos metafísicos,
daqueles que buscavam a essências das coisas e, nesse sentido, Deus, que ele
tanto criticava? Foi ter confundido o que era objeto das idéias, objeto do
pensamento como se fosse conteúdo de conhecimento. Então, qual foi o grande
equivoco da metafísica? Ter acreditado que porque ela podia pensar as ideias de
mundo, as ideias de Deus e as ideias de alma, que essas entidades pudessem ser
objeto de conhecimento e, portanto, existir.
Para Kant era legitimo pensar
essas ideias desde que não se concluísse que fossem objetos de conhecimento. De
fato, até hoje, até mesmo antes de Kant, essas ideias, Deus, nunca foi
conhecido. Para Kant, quem conhece o real é a ciência, somente os fenômenos
podem ser conhecidos. Alma, Deus, não são fenômenos e, portanto, não são objeto
de conhecimento.
Kant era uma personalidade muito
interessante e, segundo a crônica que sempre acompanha a historia da filosofia,
ele teria exposto ao mordomo de sua casa as conclusões a que chegou, que se
expressava nas suas três grandes obras: “ A Crítica da Razão Pura Teórica”, “ A
Crítica da Razão Pura Prática” e “ A Crítica do Juízo”. Ao contar esta teoria
citada, ou seja, que Deus, Alma e Mundo são ideias pensadas, mas não são
realidades conhecidas, o mordomo ficou muito chocado e repreendeu, severamente,
Kant dizendo: “ mas como você uma pessoa tão religiosa, (ele era adepto do
pietismo, uma denominação do protestantismo, bastante rigoroso) como você uma
pessoa com tão boa formação religiosa pode chegar a uma conclusão dessa, o mais
sua mãe vai pensar disso?” então, Kant teria dito ao mordomo: “ não se preocupe,
o que eu destruí em “ a Crítica da Razão Pura Teórica”, eu vou reconstruir em “
A Crítica da Razão Pura Prática.” E nós entramos assim na segunda parte da
grande obra kantiniana. Essas três ideias da metafisica tradicional, de Deus,
Alma e Mundo, que não são ideias, não saõ conceitos correspondentes a fenômenos
que pudessem ser conhecidos, estas entidades que não podem ser conhecidas devem
ser pressupostas, porque elas são condições sine qua non ( sem o qual não pode
ser) para a legitimação e para a fundamentação da moralidade, que deve ser
entendida em Kant do mesmo modo que nós entendíamos a questão do conhecimento,
ou seja, a moral é um fato na realidade humana. ( veja a sutileza). Os homens
praticam a moral não como uma mera circunstância histórica cultural, mas por
uma necessidade interna.
Para Kant, a moral se impõe ao
homem como uma força universal, assim como a ciência, a moral não se impõe por
necessidade psicológicas, culturais ou sociais, mas por exigências
transcendentais que constituem a própria estrutura de todos os homens. É
proibido matar o próximo, não devido a leis ou por respeito ao próximo, mas por
força interna que exige a bondade, um bem agir. Para Kant, o fato de um homem
ser um ente moral demonstra a existência de mundo, de alma, de Deus. Entenda,
existe sim, essas entidades, mas como uma ética da moral porque até mesmo os
animais obedecem a lei de não matar o próximo com mais eficácia que o homem.
Não se registra casos de animais assassino do próximo e nem suicidas. Só para
melhor entendimento, dizemos que temos ética. Dizemos que a ética existe.
Realmente existe, mas não como entidade, mas existe como uma força universal.
Não é um objeto fora do homem que está lá. Assim é a alma, o mundo e Deus.
A ética, portanto, deve ser
seguida pelos homens, deve haver este esforço de incorporação da ética do mesmo
modo,de modo análogo a este esforço de incorporação do conhecimento científico,
porque faz parte da própria estrutura constitutiva da experiência e da
atividade humana. É nesse contexto, inclusive, que nós podemos conceber a
contribuição que Kant para a gente pensar na educação. É interessante observar
que ele não escreveu nenhum tratado que tivesse por tema especifico a educação o
com a politica, mas isso transpira em toda sua obra, porque toda razão de ser
da existência de uma sociedade em processo de civilização, em processo
histórico e toda construção do indivíduo, está sempre relacionada com a busca
da realização desta perfeição humana, de que o sujeito humano tanto coletivo,
no caso da sociedade, como no individual, no caso da pessoa, toda a sua razão
de ser, todo o investimento de sua existência, deve ser na linha de superar a
sua condição da pura empiricidade, de pura naturalidade, de pura instintividade,
para se tronar, exatamente, esse sujeito autônomo, ou seja, o sujeito age em
função e a partir das condições estruturais que o constitui. É por isso que a
pedagogia dele é toda baseada nesta proposta de emancipação do espirito, de
emancipação do sujeito, da postura do sujeito como sujeito autônomo que atinge
a sua maioridade, é essa a expressão que ele usa e para qual ele carreia todo o
investimento da filosofia, todo investimento da pedagogia, no sentido de que
nós passemos a nos conduzir, não por imposições externas, mas pe3la própria
condição do nosso modo propriamente humano de ser, que é de ser guiado por esse
sujeito estrutural, que está a base da nossa própria existência.
Kant acredita que a humanidade
passa por processo de constante aperfeiçoamento e que o individuo deve buscar a
perfeição no plano pessoal. Daí sua proposta pedagógica de criar condições para
possibilitar a realização desse esforço. Kant valoriza a disciplina, para ele,
um instrumento fecundo para que o sujeito possa tornar compatível uma existência
com as pressões concretas e as circunstâncias que o envolvem. Segundo Kant, o
homem deve ser culto, no sentido de aprimorar sua capacidade de conhecimento.
Isso nos mostra um Kant que, como
pessoa, como educador, devemos lembrar que ele foi professor ao longo de toda a
sua vida, foi diretor de ginásio, Kant levou tão a serio esse seu projeto de
vida, que sequer saiu de sua cidade. Ele não viajou, ele era professor de
geografia. Também formado em geografia.
Kant fez a leitura de “Emilio”,
de Rousseau, que é justamente a obra sobre a pedagogia, sobre educação, o que
ela emblematicamente representou, não tanto pelas suas conclusões particulares,
mas, exatamente, pela postura que Rousseau assumiu na consideração da educação
(Eu indicaria a todo professor, pedagogo, educador a ler Emilio e Robson
Crusoé.) sobretudo, no fato de está descobrindo a infância e a criança como
sujeito central do processo pedagógico. Falarei, oportunamente, de Jean Jaques
Rousseau aqui no blog.
Para kant, todos os investimentos
pedagógicos devem ser na direção de promover a busca pela perfeição, que se dá
na plenitude da moralidade. Para tanto, deveria se promover a disciplina, não
como uma forma de opressão, mas para superar o comportamento puramente
instintivo. Valorizava a ampliação do conhecimento, particularmente o
conhecimento cientifico, mas também da arte e da estética. Acreditava, enfim,
que o sujeito deveria tornar-se cada vez mais moral, prudente, culto e
emancipado.
De toda esta proposta da
filosofia kantiniana, certamente nós podemos concluir que a tarefa da politica,
no que diz respeito a sociedade e a tarefa da educação, no que diz respeito a
pessoa humana, é transformar, é de transformar todos os sujeitos humanos em
processos de educação em sujeito disciplinados, que busquem superar, que
busquem viver, independente de sua materialidade animal, de suas pulsões
instintivas, ( já publiquei aqui no blog que Nietsche priorizava,ao contrário
de Kant, o instinto) em um sujeito culto que explore todas as sua potencialidades
de conhecimento, particularmente a partir da ciência, em um sujeito prudente
que saiba conviver com as circunstancias históricas no espirito de paz, de
harmonia social e, finalmente, de um sujeito moral, ou seja, aquele que atingiu
a plenitude de uma existência pautada nas exigências transcendentais da
eticidade. Talvez estamos aqui, certamente, diante de palavras talvez muito
marcadas pelo seu tempo histórico, mas que na sua significação mais profunda,
continua tendo extrema validade no contexto histórico contemporânea, e em
educação, estes mesmo desafios, tentando responder: “quem somos nós os homens?”
; “ O que podemos saber?” ; “ E o que devemos fazer?”.
HISTÓRIA DAS LENDAS
HISTÓRIA DAS LENDAS
A
evolução constante da humanidade para um fim inatingível influi sobre a vida do
indivíduo; as artes, expressão natural do homem, constantemente modificada,
seguem uma curva que pretendemos ser ascendente.
Foi
dito que tudo o que era estático, imóvel, era atrasado; a evolução só deve ser
dinâmica. Contudo, o estudo da evolução nos confunde dada a soma de mistérios
que surgem a todo momento.
Parece
paradoxal que homens, em épocas em que a ciência era menos adiantada do que a
nossa, tenham descoberto leis que apenas encontramos. Contudo, as
características das grandes pirâmides nos provam, de maneira irrefutável, que
os egípcios conheciam os segredos de fórmulas que ainda não descobrimos
inteiramente. Nossos rigorosos cálculos científicos eram, sem dúvida, substituídos
por outra ciência tão precisa quanto a nossa.
Esta
evolução ascendente torna-se, desta forma, menos positiva; cremos apenas que as
questões formuladas o eram de maneira diferente; é uma transformação de
energias. O mar, com seu fluxo e refluxo, pode, em certos momentos, fazer crer
que evolui; contudo, permanece como é, não enche sem vazante. Nossa lei de
transformação torna-se então uma constante e a contribuição de nossa atividade
científica cuja utilidade não é certa — é anulada pela nossa falta de
raciocínio. Numa civilização mecanizada o espírito acha-se cada vez mais
deslocado
Se
nossos conhecimentos se modificaram, a inteligência continua a ser um bem
imutável; não se pode dizer que Einstein seja mais inteligente do que Pascal,
mas apenas que Einstein resolveu, em seu tempo, outros problemas. Einstein — ou
qualquer outro sábio — descobriu apenas o que outros já haviam vislumbrado, e
quando diz que o mundo está fechado, repete apenas o que o Evangelho de São
João Batista já nos ensinou.
A
evolução do homem continua pois a ser uma miragem e os grandes iniciados
revelam, simbolicamente, algumas verdades cuja veracidade controlamos com
dificuldade. O estudo de problemas humanos, de raças, de folclore; nos leva a
crer que o homem, anteriormente, tenha sido um iniciado mas que seus
conhecimentos se perderam. Algumas tribos da África equatorial conservaram
virtudes e sentidos que já não temos. Nossas sensações se evaporaram. É assim
que um ensinamento geral emana dos contos e que toda essa poesia anônima, feita
de graça e frescor, reflete a mesma preocupação.
Acontece
que essa literatura coletiva, criada pelo produto inconsciente da imaginação,
pela massa, pretendia ser um testemunho, uma prova. Não é absurdo pensar que os
contos, antes divulgados oralmente e depois, por escrito, provavam, apoiavam
teses, argumentavam em seu favor. Sob a forma de um divertimento, a fábula
educava.
A
moral dessas fábulas é agradável, engraçada; distrai pois não aborrece aquele a
quem se dirige.
O
estudo do folclore mundial — que reflete a atividade, o pensamento de uma época
e de um povo — é pois o estudo da humanidade. Essas obras esclarecem períodos
obscuros e suas deformações são instrutivas, pois nada mais são do que a
evocação de mores locais, de concepções particulares e humanas. A lenda, mais
verdadeira do que a história, é um precioso documento: ela exara a vida do
povo, comunica-lhe um ardor de sentimentos que nos comove mais do que a rigidez
cronológica de fatos consignados; desta forma, o romance é a sobrevivência das
lendas. Imaginamos uma literatura científica na qual os “robots” escrevem
poemas; mas esses engenhos mecânicos nunca poderão transmitir emoções iguais às
contidas nos poemas de Villon ou de Baudelaire, pois que as obras desses homens
eram feitas com sangue.
Além
do maravilhoso que envolve esses mitos é preciso descobrir o tema inicial que
se reproduz em países diferentes e muito longínquos: essa concepção nos leva a
uma nova interpretação. Esses contos misteriosos fazem a Th. Briant escrever
(Le Goéland, nº III) (A Gaivota): “cada lenda podia ter uma explicação mística
no plano de analogias e correspondências”, contudo, “as identidades nos fogem e
chapinhamos no Relativo”.
Alguns
contos, assim tratados, mostraram aspectos de sua evolução e interpretação; é
evidente que estas simples páginas não esgotarão o assunto.
I. — Definições
A
palavra lenda provém do baixo latim legenda, que significa “o que deve ser
lido”. No princípio, as lendas constituíam uma compilação da vida dos santos,
dos mártires (Voragine); eram lidas nos refeitórios dos conventos. Com o tempo
ingressaram na vida profana; essas narrações populares, baseadas em fatos
históricos precisos, não tardaram a evoluir e embelezar-se. Atualmente, a
lenda, transformada pela tradição, é o produto inconsciente da imaginação
popular Desta forma o herói sujeito a dados históricos, reflete os anseios de
um grupo ou de um povo; sua conduta depõe a favor de uma ação ou de uma idéia
cujo objetivo é arrastar outros indivíduos para o mesmo caminho.
A
fábula é uma narração em verso, cujos personagens são animais dotados de
qualidades humanas. As mais célebres fábulas são as de Esopo, La Fontaine e
Florian.
Os
contos de animais são fábulas redigidas em prosa.
O
conto é uma narração maravilhosa baseada numa trama romanesca; os lugares não
são determinados e os personagens não têm nenhuma precisão histórica; a
narração distrai. A lenda é um conto no qual a ação maravilhosa se localiza com
exatidão; os personagens são precisos e definidos. As ações se fundamentam em
fatos históricos conhecidos e tudo parece se desenrolar de maneira positiva. Freqüentemente
a história é deformada pela imaginação popular.
O
mito é uma forma de lenda; mas os personagens humanos tomam-se divinos; a ação
é então sobrenatural e irracional. O tempo nada mais é do que uma ficção. Na
realidade, essas categorias se embaraçam e os mitos são de uma infinita
variedade; relacionam--se às religiões, são cosmogônicos, divinos — ou
heróicos. As lendas, com personagens mais modestos, fazem evoluir mágicos,
fadas, bruxas, que, de uma maneira quase divina, influem nos destinos humanos.
2. — Origem
A
lenda, mais verdadeira do que a história, devido à quantidade de ensinamentos
humanos, contraria freqüentemente a verdade psicológica; uma abóbora
transforma-se em carruagem; um rato, em cocheiro. Entretanto, essas ficções não
são nem pueris nem grotescas; elas nos interessam, nos repousam e nos
deslumbram. Esse mundo fluido que põe em xeque o nosso mundo real, foi definido
pelo bondoso Jean de la Fontaine:
e
até mesmo eu.
Se me contassem a Pele de burro
sentiria um extremo prazer(1)
Se me contassem a Pele de burro
sentiria um extremo prazer(1)
Este
divertimento do povo é sua aspiração secreta, sua busca espiritual de um mundo
maravilhoso onde impere o valor do homem, onde as leis, tão detestadas, sejam
abolidas. E o encantamento, a volta ao Paraíso Terrestre.
A
lenda existe desde a formação do clã, da sociedade e os temas se desenvolvem
com preocupações semelhantes em todas as culturas.
Essa
literatura coletiva pode ser proveniente de um único mito propalado de país em
país A Índia foi primeira a nos fornecer o índice escrito desse folclore
mundial, o que não implica que a Índia seja o seu berço. Divulgados oralmente,
esses contos -foram talvez escritos e conservados em outros países, mas sua
mensagem não chegou até nós: por muito tempo ignorou-se as riquezas contidas
nas pirâmides cujos segredos ainda não foram completamente desvendados, o que
não permitiria aos nossos filhos dizerem que as pirâmides não contêm nenhum
segredo.
Esses
contos, transformados, decantados, modificados, foram portanto transcritos nos
Vedas, aproximadamente 4.500 anos a. C. base de nossa mais antiga civilização
teriam os Arias e o original da compilação é o Pantchatantra (os “cinco
livros”). Considerando os animais que falam e as leis da metempsicose, parece
ser a fábula um produto espontâneo da Índia. É curioso, contudo, que uma
passagem do romance de Merlin esteja reproduzida num conto Indiano
(Gulcasapati) e numa compilação de Somadeva. Sinais do budismo aparecem em
vários outros lugares e principalmente na grande caridade demonstrada pelos
heróis para com os animais.
Nestes
últimos anos, a escola folclorista compilou contos semelhantes aos da Índia, em
todos os países. Portanto, os mitos se divulgaram através do tempo e do espaço.
A religião grega toma emprestado à religião fenícia, o mito de Adônis e Cibele.
Reinhold Kohler e Theodor Benfey ficaram estupefatos ao encontrar os mesmos
temas iniciais em todos os países. É verdade que durante sua peregrinação, os
contos se transformaram; há a influência do meio, a alteração de certos fatos,
lacunas que foram preenchidas e novos motivos surgiram, mas a base da criação
continua a mesma; as particularidades locais, muitas vezes morais, fornecem
preciosos ensinamentos sobre o povo e sua maneira de pensar.
A
divulgação dos contos talvez nos surpreenda em função da época mas, na
realidade, os países se comunicavam entre si muito antes das viagens de
Cristóvão Colombo, Magellan ou Marco Polo. Teria havido navegadores,
verdadeiros aventureiros, que transportavam ensinamento de uma a outra
civilização e o ritmo da vida era assim o mesmo em cada país. A América possuía
suas fundições no mesmo período que a Ásia ou a Europa.
Concluindo,
não se pode afirmar que houve uma única invenção, mas apenas a Índia possui os
documentos antigos onde nossos mitos estão registrados.
3. — Os temas
Transcrição
do pensamento do povo, os temas simbolizam suas aspirações. Transposição de
sentimentos e desejos humanos a lenda abole o real.
O
homem — infeliz torna-se poderoso. A pastora bela e incompreendida, desposa um
príncipe encantado; o sapatinho perdido, emblema de sua beleza, é cultuado na
Índia. As mulheres, prisioneiras dos hábitos, vivem sob a dependência do homem:
as princesas terão liberdade e o rei será passivo. O subconsciente criou uma
“supercompensação” para os nossos sentimentos de inferioridade
Os
mistérios naturais preocupam a imaginação: tudo é maravilhoso, incompreensível,
surpreendente e fascinante. Desde o desabrochar da flor até as ondas
sorrateiras que dirigimos sem conhecer — a eletricidade — essas manifestações
são de uma amplitude desconcertante. O sol e, conseqüentemente, a lua,
favorecem com seu culto, a criação de malefícios, de palavras mágicas e de
palavras-chave.
Entretanto,
esses conhecimentos só podem ser adquiridos com uma certa iniciação; para
comandar os espíritos é preciso instrução e o adepto, depois das provas e dos
três estágios (purificação, conhecimento e poder), conhecerá, finalmente, todas
as virtudes da câmara secreta. O conto será uma lição mas o mito não poderia se
enunciar claramente; elementos conscientes, só instruiriam os iniciados
enquanto que o povo veria nisso apenas um divertimento. Naturalmente a bruxaria
liga-se a essa magia feiticeira. É a estranha personalidade do diabo. A lenda
religiosa deveria se utilizar do antagonismo entre a dualidade da alma humana.
De
acordo com Freud, a sexualidade desempenha um papel primordial no comportamento
da sociedade; é representada sob o símbolo do algarismo 3 — a Trindade mística
— e o lírio heráldico representaria o órgão macho. A psicanálise interpretará
os contos da mesma forma que os sonhos.
A
lenda histórica fundamenta-se em fatos reais, mas o narrador altera a verdade a
fim de provar. A lenda do Cid, criada quarenta anos depois da morte do herói, é
de composição diferente da de Rolando, escrita duzentos e setenta anos depois
de Roncesvales. As suas falhas são flagrantes, bem como nas duas célebres
lendas épicas, a Ilíada e a Odisséia.
Outras
lendas estão em formação. Eis a de Cartouche, Mandrin, Jack, o Estripador,
Mayerling, o mito de Hitler vivendo num rancho americano é análogo ao de
Napoleão. A irmãzinha de Lisieux deu origem, segundo o padre de Ars ou São
Vicente de Paula, a uma imensa literatura que não pode desaparecer
imediatamente.
Todavia,
nesses ciclos temáticos, raramente um tema se representa no estado isolado; ele
se imbrica com vários outros, também mais ou menos modificados. Sendo esses
assuntos primordiais inumeráveis, estudaremos apenas alguns mitos principais.
4. — A pesquisa folclórica
A
palavra folklore foi criada por W. J. Thomas, em 1846. Folk significa povo e
lore; saber ou conhecimento. Antigamente os franceses empregavam a expressão:
“Tradições Populares”.
Perrault,
quando publicou, na editora Barbin (Paris), em 1697, suas Histoires ou Contes
du temps passé, abriu caminho aos irmãos Grimm que compilavam os contos ouvidos
da boca dos camponeses de Hesse, em 1810. Walter Scott fez o mesmo na
Inglaterra, em 1820, aproximadamente.
Quando
se descobriu, em diferentes países, o mesmo repertório de contos, com pequenas
variações de costumes, a atividade dos folcloristas tornou-se intensa. Essa
atividade permitiu a interpretação das lendas e principalmente sua
classificação; foram unidos entre si e compiladas. Miss Roalfe Cox publicou
análises notáveis sobre Cendrillon (Gata Borralheira) e Peau d’Ane (Pele de
burro) (Folklore Society, Londres, 1893).
Com
o estudo dessas narrações maravilhosas, a análise das crenças e dos costumes
permitiu evocar períodos pouco ricos em comentários. Contudo, o folclore não se
interessa unicamente pelo passado; dedica-se também ao presente, tanto em
economia política como em instituições, ofícios ou atividades populares.
Saintyves assim o definiu: “É a ciência da vida popular no seio de sociedades civilizadas.”
Embora
a explicação dos contos seja mais ou menos fantasista, este método de
observação permitiu ligar os fatos uns aos outros de forma que parecessem, de
início, disparatados. O folclore permitiu preencher essas lacunas e acompanhar
a evolução da psicologia coletiva mesmo fora das grandes civilizações que nunca
foram homogêneas. Essa cultura tradicional, devida à massa popular à margem do
ensino oficial, tem uma base permanente que, apesar de incompleta, assegurou
definitivamente a estabilidade das sociedades sucessivas. Essa camada inferior,
verdadeira corrente cultural, transmite-se de geração em geração e é graças a
ela que os contos foram conservados.
1 — Teoria das Migrações
Gaston
Paris estudou, depois de Benfey, a migração do contos orientais na literatura
da Idade Média. — Cosquin, o inglês Clouston, o alemão Landeau, estabeleceram
paralelos entre as novelas de Bocácio e as fontes orientais.
Buscaram,
para cada conto, a estrada percorrida: foi a teoria dos motivos errantes ou a
teoria das migrações. Max Müller aponta sempre a Índia como fonte comum e o
russo Stassov (1868) diz a mesma coisa e foi por isso criticado pela sua falta
de patriotismo.
É
preciso analisar com atenção as semelhanças, as condições históricas, a fim de
reconhecer o tema pois se o conto toma de empréstimo o seu motivo ele adquire,
de formo mais ou menos rápida, um caráter nacional. Os russos Vesselovski e
Vsevolod Miller determinaram as trajetórias dos motivos emprestados e
reconheceram uma influência turco-mongólica.
Joseph
Bedier (Fabliaux), conforme a escola antropológica, manifestou dúvidas sobre o
método de Benfey; julgou-se que as aproximações fossem vãs e a busca limitou-se
ao que ligava essa obra à poesia nacional. O russo Oldenburg, zombando das
dificuldades, provou serem os fabliaux oriundos da antiga Índia. O tcheco
Polivka e o alemão Bolte forneceram também uma relação dos possíveis paralelos
existentes entre cem contos de Grimm (Remarques sur les contes enfantins et
familiaux de Grimm - Observações sobre os contos infantis e familiares de
Grimm).
Com
efeito, é curioso notar que as aventuras de Ulisses se assemelham às de
Sindbad, o marujo e que o prólogo de Mil e uma noites relata a história de uma
jovem chinesa, conto budista, traduzido para o chinês no século III (tradução
Chavannes, conto nº 109). Miss R. Coxe, numa monografia, conta quatrocentos
variantes de Pele de burro e Gata Borralheira. Além das dos autores já citados,
notemos as variantes erguidas por René Basset, Dähnhardt, Adolphe Pictet,
Buslaiev e Afanassiev.
2. — A influência da Índia
Quando
o conto primitivo, ou assim suposto, se libertou de todos os elementos
transitórios e permanentes, sua variante foi discernida na literatura hindu,
que penetrou na China antes do budismo. A maioria dos contos são encontrados no
Extremo Oriente, dois séculos antes da nossa era. A influência budista, as
invasões mongólicas contribuíram para a divulgação dos contos hindus que formam
a base das coleções folclóricas.
3. — Migração dos Contos e dos povos
A
migração dos contos nos é desconhecida e podemos quanto muito construir teorias
mais ou menos plausíveis conforme nossa imaginação.
Além
da influência budista e das invasões mongólicas, em conseqüência das conquistas
árabes, toda a costa barbaresca e a Pérsia sofreram a influência asiática. Eis
porque Mil e uma noites têm influência pérsica cuja cultura provinha da Índia.
E preciso pesquisar a marcha do conto em relação à marcha do indivíduo.
A
migração dos povos foi estudada por Elliot Smith, Maximo Soto Hall; os antigos
egípcios seriam descendentes dos Maias que haviam emigrado para a África. A
Atlântida, esse antigo continente, teria formado uma ligação natural entre a
Europa e a América. Entretanto, conforme a notável teoria de Wegener sobre a
separação dos continentes, a América seria um bloco que se desprendeu da Europa
e da África. Realmente essa cisão parece que se produziu antes da aparição do
homem. Contudo, se nos referimos ao sábio americano Libbey, que estudou as
propriedades radioativas do carbono contido nos vestígios orgânicos (o “C 14”),
nossas civilizações datariam de trinta mil anos (época pleistocena). Ora, há
trinta mil anos, a Ásia e a América se juntavam: O Alasca e a Sibéria ainda não
haviam sido separados pelo estreito de Behring. Canals Frau (Préhistoire de
l’Amérique, 1953), é de opinião que grupos de emigrantes asiáticos
aventuraram-se nas planícies norte-americanas, numa época imediatamente
anterior ao último máximo da glaciação Wisconsiniana. Conforme os geólogos e
Antevs, essa última glaciação, denominada Mankato, ter-se-ia produzido
aproximadamente em 25.000 a. C.
Canals
Frau supõe que nova onda emigratória asiática tenha-se produzido na época
mesolítica; essa civilização esquimó teria, há três ou quatro mil anos,
dominado a Sibéria e se teria fixado no litoral ártico da América. Esses homens
teriam atravessado a América de norte a sul a fim de atingirem a Terra do Fogo.
É
indiscutível que nossos antepassados viajavam e só a falta de documentos deu
origem ao julgamento de que esses povos se ignoravam uns aos outros, Serviam-se
das correntes naturais e a expedição Kon Tiki provou ser possível a travessia
do oceano, de jangada, desde a América até os Mares do Sul. As monções
favoreciam as viagens entre o Oriente e o Ocidente. Os malaios invadiram as
ilhas polinésias com a ajuda de grandes vapores providos de balanceiros.
Os
monumentos deixados pelos habitantes da antiga América testemunham uma
civilização adiantada injustamente podada em todo o vigor da sua seiva, quando
da invasão espanhola, no século XVI. Eis porque, nas margens do Mississipi, os
rochedos estão eivados de caracteres que parecem ser fenícios; rochedos
trêmulos que evocam monumentos druídicos; no hemisfério austral, imensas ruínas
de outeiros assemelham-se às sepulturas do norte da Ásia. A admirável pirâmide
de Paplanta, a fortaleza européia de Xochialco, o emprego do cimento no templo
situado nas imediações de Santa Fé, fazem supor que a América era conhecida
pelas civilizações hindus e européias antes da viagem de Cristóvão Colombo; a
tradição deve ter-se apagado um pouco e a mensagem das antigas civilizações nem
sempre foi transmitida.
Eis
porque, nas imediações de Montevidéu, uma pedra tumular registra, em caracteres
gregos, que um capitão heleno aportou nessa terra americana no tempo de
Alexandre. Um contemporâneo de Aristóteles também pisou o solo brasileiro. Nas
crônicas, Madoc, filho do príncipe de Gales, abriu velas em 1170, dirigindo-se
para o oeste e descobriu terras férteis; porém, já em 942, os normandos haviam
aportado na Groenlândia passando pela Islândia. Isto justificaria terem tribos
do Missouri também falado a língua céltica. Humboldt admite que os tártaros e
os mongóis tenham passado do norte da Ásia às regiões setentrionais da América
antes do século VI; os chineses comerciaram com os americanos bem como o
cartaginês Himilcon. Salomão e Hiram enviaram os fenícios para as regiões
americanas conhecidas, sem dúvida, pelo nome de Ofir e Társis.
É
um erro julgar que os povos antigos eram selvagens e bárbaros; nossa falta de
conhecimentos a esse respeito não prova essa asserção. Cristóvão Colombo deve
ter ficado surpreendido quando encontrou entre esses “selvagens” a nossa cruz
latina que figurava ainda nas esculturas colossais da cidade de Palenque, no
México.
Depois
da sensacional descoberta do Vixenu, por René joffroy (1952), compreende-se que
o prestígio das artes gregas e italianas estendia-se à Gália céltica. O oppidum
do monte Lassois (perto de Châtillon-sur-Seine) seria uma base dessa rota do
estanho; e os móveis funerários, as jóias ítalo-gregas do século VI antes da
nossa era, a bacia de bronze de fabricação etrusca, encontradas nessa parte
setentrional da Borgonha, então somente céltica, colocam um enigma que provoca
dúvidas sobre as influências da Etrúria ou das regiões greco-cíticas de
passagem pela Grécia.
Os
egípcios conheciam os movimentos planetários e as dimensões do nosso globo
terrestre quando Galileu quase foi queimado vivo por ter adotado o sistema de
Copérnico. Nossas descobertas modernas já haviam sido precedidas pela
Escritura, nossas verdades físicas foram por muito tempo desconhecidas e
ignoradas, enquanto que os Livros Sagrados ficam no limite da verdade e na
harmonia de nossas mais recentes observações, cuja exatidão são apenas
confirmadas por nossas pesquisas científicas; em compensação não havia na
Antigüidade a mesma concepção do tempo e do seu emprego de hoje; conhecimentos
provinham de uma reflexão amadurecida no recolhimento e no silêncio, alheio a
qualquer agitação.
Além
dos mercadores, as guerras muito contribuíram para a divulgação dos contos.
Essa divulgação deve-se às conquistas de Alexandre da Macedônia e ao período
helênico (do fim do IV ao II séculos antes da nossa era); depois as conquistas
árabes (1º milênio da era cristã) e finalmente à época das cruzadas (do X ao
XII séculos).
A
transmissão oral foi muito importante. Foi dessa forma que Pitágoras tomou
conhecimento das religiões da Índia, quando já convivia com os magos da
Caldéia. Esse sábio grego, contemporâneo de Buda — que talvez tenha encontrado
— e de Confúcio, participava das idéias do hindu e do chinês e esses três
homens pregavam o mesmo evangelho. As descobertas e os pensamentos existem,
pois, no tempo e se transmite de forma desconhecida.
Walter
Scott observa que a impressão era inexistente, os vedas e os edas noruegueses,
a Bíblia só foram escritos depois de haverem sido transmitidos oralmente.
Deve-se à inspiração popular a criação da Odisséia e dos Niebelungen.
As
lendas são sujeitas a interpretações bastante diferentes que se contradizem ou
se completam. Loeffler-Delachaux (Symbolisme des contes de fées (Simbolismo dos
contos de fadas, 1949) interpreta-as no sentido profano, sacro ou iniciático.
1. Teorias astrais ou naturalista
Os
povos divinizaram as grandes manifestações da natureza. Se Max Müller e Bréal
Mélanges de mythologie et de línguistique (Miscelânia de mitologia e
lingüística), cogitam nos fenômenos solares e no combate à escuridão, Kuhn e
Schwartz são de opinião de que não foram os fenômenos regulares que chocaram a
imaginação mas sim os espetáculos raros e inesperados (relâmpago, trovão); é,
pois, a escola meteorológica. Para Ploix (La nature des dieux - A natureza dos
deuses) a luz é que é adorada e conduz ao estudo dos fenômenos crepusculares.
Mannhardt encontra nas lendas explicação dos mistérios da vegetação, enquanto
que Regnaud e Renel Evolution d’un mythe (Evolução de um mito) pensam no mito
do fogo. Saintyves descobriu nesse mito antigas cerimônias estacionárias
praticadas por ocasião do ano novo e da primavera.
Deulin
em Contes de ma mere l’Oye (Contos de minha mãe gansa) refere-se a Husson para
quem as sete esposas de Barba Azul tornam-se as sete auroras da semana. Deulin
mostra que com um pouco de imaginação é possível provar que Virgínia é uma
aurora que procura esconder-se de Paulo, que nesse caso seria o sol. Dupuis
(Origine de tous les cultes - Origem de todos os cultos) mostra que Napoleão só
pode existir sob a forma de um deus solar. Entretanto, prosseguindo-se o
trabalho de Afanassiev Contes populaires russes (Contos populares russos), em 8
volumes, Miller (1833-1889) compara as variantes entre si.
É
todavia verdade que o fetichismo foi criado para isolar essas forças invisíveis
e que sua influência sobre as lendas é certa.
Os
mitos meteorológicos, os mitos do fogo, da origem e da morte humana podem pois
basear-se nessas criações literárias, mas outras teorias vieram modificar esses
temas iniciais.
2. — Teoria mitológica
Os
irmãos Grimm elevaram a criação dos contos à infância pré-histórica da pátria.
Chega-se assim à escola precedente Gubernatis Mythologie Zoologique (Mitologia
Zoológica), acha que esses mitos pertencem a um naturalismo infantil; dá,
enfim, grande importância às formas animais e chega, com seus três livros, à
tese da reencarnação: Schelling Essai sur les mythes (Ensaio sobre os mitos)
(1793), vê nesses mitos a consciência individual de um povo aliada a uma
significação religiosa.
3. — Teoria lingüística. Escola Filológica
Os
trabalhos de Baudry, Darmesteter, Van den Heyn e Angelo de Gubernatis, são
trabalhos de lingüistas. Com Max Müller esses homens estudam as lendas desde a
deformação de algumas palavras que puderam provocar um obscurecimento do
sentido primitivo original. Max Müller, por aproximações forçadas, procura
demonstrar no sentido da tese solarista. Desta forma se Dyaus na época védica
significava céu, transforma-se em Zeus. Dontenville explica assim a lenda de
Gargântua. O russo Marr estudando Tristão e Isolda cria sua sessão de
Semântica,
É
muito possível que os povos tenham empregado termos que, no curso de suas
migrações, perderam o sentido ou foram desnaturados; a lenda grega fez
empréstimos da Índia e é muito provável que essa confusão tenha sido
voluntária. Os filólogos, comparando as raízes das línguas entre si com as do
sânscrito, propuseram sábias etimologias que foram substituídas por outras mais
sábias ainda; e assim tudo encaminhou-se para o ceticismo geral.
4. — Teoria antropológica
(ou geração espontânea dos assuntos)
(ou geração espontânea dos assuntos)
Para
Taylor, Mannhardt, Andrew Lang, Gaidoz os contos e as lendas refletem modos de
pensar primitivos. Os povos civilizados herdaram esses contos e lendas do
passado; são sobrevivências religiosas e culturais extremamente elementares
fundadas no animismo, espiritualização dos fenômenos da natureza ambiente.
Mas,
as leis do desenvolvimento da humanidade nos levaram a não mais considerar as
civilizações anteriores como épocas de barbárie. O totem, objeto-tabu, a
palavra misteriosa, representam valores mágicos que a escola antropológica não
soube definir. Frazer, no seu Le rameau d’or (O ramo de ouro) (12 volumes,
1911-1915) afirma que a magia precede o animismo, isto é, a espiritualização da
natureza; a magia é, portanto, o embrião da ciência e da religião. Essa Teoria
prosetivista é combatida pelos etnógrafos soviéticos.
5. — Escola Alegórica
Creuzer
vê no mito, uma alegoria moral, o símbolo de uma antiga filosofia, nascida no
Oriente e divulgada na Grécia em linguagem figurada. Aí aparece novamente a opinião
dos filósofos neoplatônicos da escola de Alexandria (Platão e Porfírio),
Frazer: The origin of totemism (A origem do totemismo) mostra a conexão do mito
com o totemismo primitivo.
6. — Teoria orientalista ou teoria dos empréstimos
O
orientalista alemão Benfey, quando publicou em 1859 a coleção de contos hindus
o Pantchatantra, descobriu uma extraordinária semelhança entre os contos
sânscritos e os europeus.
Essas
narrações, que circulavam oralmente, foram compiladas na Índia; o budismo
tibetano mostrou-se particularmente ativo. Contudo, não seria possível afirmar
com segurança que esses contos tenham sido criados na Índia. Bizâncio e a
literatura mongólica desempenharam papel importante na exportação dessas lendas
que, da Síria e da Pérsia, se infiltraram no mundo árabe; as cruzadas relataram
esses contos maravilhosos e a Espanha, com as invasões sucessivas, usufruiu
todo o seu encanto.
Pictet:
Origines indo-européennes (Origens indo-européias) (1858) apoia Benfey e mostra
a importância da cultura dos árias primitivos. Esses trabalhos foram
continuados por Cosquin, Gaston Paris, Charles Bédier, Gédéon, Huet, Bouslaiev
e Afanassiev.
7. — Teoria geográfico-histórica ou Escola Finesa
Anderson
e H. Gaidoz contribuíram com um exame sistemático e escrupuloso das variantes,
com diagramas cronológicos e mapas geográficos dos itinerários percorridos
pelos assuntos. O catálogo dos contos de Aarne (1867-1925) é arbitrário na sua
divisão, mas facilitou a tarefa de Andreiev (1929), que adaptou esse livro ao
folclore russo. Não se desvendando a forma primitiva, Sidow tentou comparar os
contos entre si.
8. — Escola poética-histórica. Teoria
comparativista
Criada
por Vassélovski (Index bibliographique, 1921), esta teoria trata da influência
oral e escrita da poesia e depois do papel da religião cristã. E a procura do
gênero poético (epopéia, poesia, lírica, drama), das variedades, das formas.
Vsevolod Miller, abandonando a Escola dos Empréstimos procura analisar os
costumes nas canções de gesta: Études de la littérature populaire russe
(Estudos sobre a literatura popular russa); a análise crítica foi a obra de
Orestes Miller. Essas aproximações contraditórias, essas comparações
arbitrárias, foram postas em evidência por Skafttymov: Poétique et Genèse dos Bylines
(Poética e Gênese das Bilinas, 1924). A escola russa moderna preocupa-se com o
meio (folclore dos camponeses e dos operários), que traduz a vida do povo com
Sokolov: Le folklore russe (O folclore russo, 1945) e Pryjov.
9. — Teoria psicológica. Escola de Freud
Wundt:
Psychologie des peuples (Psicologia dos povos) analisa os mitos com as
condições psicológicas do povo (estados de sonho, alucinação mórbida).
Laistner, von der Leyen não conseguem dar grande importância à sua teoria.
Freud,
com seus alunos Abraham, Rank, Riklin, vê nos mitos a expressão de desejos
persistentes da mesma natureza dos que se manifestam nos sonhos. Quanto mais a
censura social se desenvolve, mais a civilização se complica. Freud mostra
ainda que “as aspirações fundamentais da humanidade, que encontram satisfação
nas diferentes crenças religiosas e os vários estados emocionais têm como fonte
conflitos intrapsíquicos que, do ponto de vista ontogênico remontam à nossa
primeira infância e, do ponto de vista filogênico, aos nossos primeiros
ancestrais humanos.”
A
escola austríaca, porém, abusou demasiadamente dos fenômenos de ordem sexual e
Regnaud: Le Rig-Veda et les origines de la mythologie (O Rig-Veda e as origens
da mitologia) é de opinião que o cérebro humano não evoluiu há milhares de
anos: Renel, Evolution du mythe (Evolução do mito).
Loeffler-Delachaux:
Symbolisme des légendes (Simbolismo das lendas, 1950) pensa num fascínio
curativo, num poder terapêutico para as doenças da alma. Os contos servem para
manter o equilíbrio psicológico e é assim que os Faraós enganados por suas
esposas, as ascensões milagrosas nas situações inesperadas, as jovens grávidas
milagrosamente fecundadas pelo deus Nauli ou Júpiter e todas essas ficções
nasceram de circunstâncias precisas. Essas narrações imaginárias são pois a
compensação dos nossos sentimentos de inferioridade e o subconsciente
acrescenta-lhes uma “supercompensação”.
10. — Origem histórica. Escola Evemérica
Schelling
publica em 1793 um ensaio sobre as lendas históricas. O cerne do mito contém a
verdade sob uma forma histórica. Spencer crê que o culto dos antepassados
origina-se nas religiões. A escola Evemérica, século IV a. C. já pretendia
serem os mitos provenientes de acontecimentos históricos e que seus personagens
reais haviam sido elevados à dignidade de deuses. Essa teoria foi retomada por
Hoffmann.
Realmente,
nossos heróis épicos são a combinação de diversos personagens históricos e se
nossas canções de gestas comportam inexatidões, esses protagonistas convergem
para a individualidade do herói.
1. — Esoterismo e Magia
O
esoterismo é subjacente em muitos de nossos atos. A religião católica não pode
se livrar dos ritos de religiões antigas e os círios e o incenso provam a
sobrevivência das oferendas, bem como a tonsura do padre indica o sítio da
espiritualidade.
O
coroamento é uma cerimônia esotérica: os braceletes tornam o rei prisioneiro de
seu povo, o cetro é a vara mágica, e a coroa o emblema da flor ritual de mil
pétalas. Th. Briant deu: Le goéland, nº 108 (A gaivota) preciosas informações
sobre o coroamento da rainha Elisabete da Inglaterra que, vestida com sua
roupagem de linho, está ritualmente nua para a unção real.
Os
povos da África, com seus conhecimentos sobre magia, se aproximam de uma verdade
transcendente que nos escapa. Os ritos esotéricos eram, porém, muito mais
empregados em tempos passados e Victor Emile Michelet: Le secret de la
chevalerie (O segredo da cavalaria) escreveu: “Os construtores de catedrais
inscreveram no secular silêncio da pedra o eco da palavra perdida que os
predestinados ouvirão.” Se os mitos sagrados fossem divulgados seriam
profanados e com isso perderiam suas virtudes místicas, diz Lévy-Bruhl: La
mythologie primitive (Mitologia primitiva, 1935). Assim é que o sentido
profundo e a virtude eficaz são revelados somente aos iniciados, os não
iniciados só encontram nesses mitos um divertimento. Os contos da Nova Guiné
expõem essa eficácia mágica.
Ora,
todos os povos fizeram uso da magia. No evangelho assistimos aos fenômenos da
levitação, à multiplicação dos pães e dos peixes; se o alcance das palavras de
encantamento nos escapa, não deixamos de sentir que esses ritos se destinam a
manter a coesão de uma civilização (Van Gennep). Saintyves: Les contes de
Perrault (Os contos de Perrault, 1923), definiu as provações e as tentações com
suas encenações prestigiosas que são ritos de iniciação.
Este
elemento sobrenatural requer uma explicação a qual tentaremos evidenciar no
estudo de algumas lendas. Pois esses costumes de iniciação, provindo de um
conhecimento profundo e de um ritual desenvolvido estão tão alterados que
perderam o seu sentido original. O símbolo do casamento, em que a bênção coloca
os eleitos sob a proteção de um poder superior; o elo sem princípio nem fim, cadeia
indissolúvel que une dois esposos romanos; o elo deve ser de ouro puro pois que
a mulher é acorrentada pelo mérito e pelas qualidades sólidas de seu noivo; mas
esse elo liga a vontade do operador ao gênio benfazejo personificado pelo
fluido invisível.
O
simbolismo do casamento é muito vasto, mas o ritual da morte — freqüentemente
tido como uma espécie de sortilégio — mereceria também ser estudado. A magia
popular deveria ocupar-se do modo de conquistar o poder com Fausto e D. Juan.
Surgiram então os feiticeiros, as invocações, os filtros, os remédios e os
venenos; essa magia natural penetrou nos contos.
O
sistema cabalista — de origem esotérica e de espírito iniciado — serviu para a
construção das catedrais. A constituição da sociedade — que teve seu apogeu no
reinado de São Luís — a música dos gregos de Eleusis, o cantochão provêm da
Cabala que serviu para estabelecer os monogramas árabes, as estátuas da Índia,
as regras para a seção do ouro. Este ensinamento profundo, freqüentemente
insuspeitado, constitui um precioso patrimônio da inteligência humana.
Os
próprios jogos têm origem esotérica (jogos de cartas, buena-dicha, de xadrez,
de damas, gamão, dominó, jogo do ganso, roleta, marelinha, esconde-esconde,
etc.). As canções populares, muitas vezes, são iniciáticas (Les compagnons de
la Marjolaine, la tour prends-garde, Cadet Roussel).
O
valor dos algarismos é nesse caso muito importante. O texto pode ser dividido
em livros, capítulos, versículos, alíneas, cujo número é ditado, (poema em doze
cantos, tragédia em cinco cantos). Às vezes é o número de personagens, o número
de anos de sua existência, o número de seus combates. O escritor multiplica os
algarismos para não se dar a conhecer e os acontecimentos descritos
ultrapassam, dessa forma, a realidade. As profecias entram nessa categoria. O
número 3, emblema sexual em Freud, é a base do princípio divino que reaparece
em todos os cultos, culto de Mitra, triade teológica céltica, ternário de
Pitágoras. São três as penitências e existem três etapas essenciais no
aperfeiçoamento individual; as fadas, como no teatro, dão três golpes com a
varinha; dez, número de Adão e Eva, falo e ovo, são a base da filosofia
pitagórica.
Os
ritos podem derivar para a superstição, o fetichismo, mas a interpretação desse
simbolismo é sempre delicada.
2. — Religião e origem sacra
As
teses religiosas são numerosas. O Pe. Banier, com sua Escola bíblica, via nos
mitos pagãos, a revelação divina; Bérard, na sua tese religiosa, explica as
cerimônias rituais.
Lenormant
e Gladstone interpretam as personalidades dos deuses a partir de personagens
bíblicas.
O
Apocalipse de São João é uma obra esotérica cujas palavras-chave servem a
religiões e ordens assaz diferentes. As religiões empregam palavras de
encantamento que devem produzir o máximo de efeito além de processos na
aparência muito simples; eis aí uma forma de magia (Anne Osmont). Diz o conde
de Larmandie a esse respeito: “Esses ritos que nada mais são do que a
realização de símbolos, têm poder natural sobre o mundo astral, que contém em
potencial e germe todo o desabrochar do mundo físico. A palavra símbolo
significa, principalmente, resumo, quintaessência; atingimos, pois,
completando-o, a causa segunda na órbita de nossa vontade: desencadeamos o
dinamismo produtor do fenômeno.” F. Ch. Barlet (A iniciação, janeiro de 1897),
diz que “a religião nas suas manifestações exteriores torna-se apenas uma alta
magia cerimonial”.
Se
Lévy-Bruhl afirma que o homem primitivo não tem o sentimento do divino, parece
que para Piobb: Formulaire de haute-magie (Formulário de alta magia) ele está
presente em toda parte mas suas leis são difíceis de discernir; são muitos os
véus que encobrem esses segredos que só se exprimem por meio de símbolos.
Contudo, toda essa ciência que provém dos colégios iniciáticos, não está
perdida. O cristianismo não soube se eximir de leis anteriores; as idéias
jurídicas em curso formaram o direito canônico; as vestes sacerdotais provêm de
Bizâncio.
3. — A arte sagrada da Índia
Estas
lendas, encontradas na Índia, pertencem à mitologia hindu que compreende os
Vedas (hinos), os Bramanas (comentários), as Sutras e Upanichads (manuais de
devoção) e finalmente as compilações de lendas Puranas.
Mallarmé:
Les dieux antiques (Os deuses antigos) fala desse berço misterioso, os Arias,
situado no centro da grande Ásia, no vale do Oxo e do qual temos poucas
referências. Suas tribos nômades emigraram para os países eslavos e depois para
a Pérsia, a Índia, a Grécia e a Itália. A mitologia persa, no seu falar Zenda,
devia influir sobre a mitologia norse para criar a epopéia escandinava.
Varuna,
autor do mundo, exprime o instinto monoteísta dos cantos védicos. Não é absurdo
afirmar que os três deuses da Índia (Varuna, Agni e Indra) representam
diferentes aspectos do Ente Infinito. Eis porque Deus, falando com Moisés, diz
nós e não eu. Outros três deuses sucedem aos três deuses antigos: o deus da
criação Brama, o deus da conservação Vichnu e o deus da destruição Civa,
portador do terceiro olho: R. Fougère, Contes et légendes de l’Inde (Contos e
lendas da Índia). Quanto a Buda, seria apenas um dos mais recentes avatares do
Vichnu e o próprio Jesus Cristo seria o reflexo desse Deus. Um livro curioso e
inspirado, La vie de maîtres (A vida dos mestres), de Baird T. Spalding (Ed.
Leymarie, 1946), retoma esse tema.
É
digno observar que a crença na transmigração é reencontrada na literatura
céltica; é que a religião druídica, de uma amplidão esquecida, estendia-se até
a Grécia e com toda certeza se achava em comunicação com a Ásia. Desta forma,
depois da morte, a alma se reencarna tomando nova forma, ora superior, ora
inferior, relativamente à vida anterior. Essa sucessão de existências pode ser
humana ou animal e ter lugar neste ou em outros mundos. A sociedade bramânica é
estabelecida em castas, cujos grupos são hereditários e hierarquizados; em seu
pináculo reinam os brâmanes, os padres.
No
século VI antes da era cristã, porém, o bramanismo se transforma sob a impulsão
de Gotama, o Buda. Depois de reencarnações sucessivas, o indivíduo chega ao
aniquilamento total, o Nirvana. Por suas concepções mais amplas e mais sociais,
todo homem tem acesso à via religiosa.
Lotus
de Paini observa que o Tao seria uma força oculta ao redor da qual todos os
valores morais evoluiriam. Esse dinamismo cósmico seria produzido por elementos
eletrizantes Iang e Iin que se aparentam ao próton e ao eléctron. Essa
sabedoria espiritual se obtinha por meio da meditação realizada sobre regras
precisas; a formação dos órgãos da clarividência só podia se produzir após as
duas fases impostas: a purificação do corpo astral e a iluminação.
Langlois
(Monuments littéraires de l’Inde, 1827) analisou essa literatura sânscrita
cujos Vedas (4500 a. C.) são os livros do conhecimento e os Vidia, os da
ciência. As quatro obras Upanichad tratam da natureza de Deus, os Upavedas são
relativos à vida corrente. Valmiki escreveu o Ramaiana, as aventuras do deus
Rama e Viasa (1000 a. C.) e é o autor de Maabarata que descreve as desgraças de
uma família real. O Bagavad-Gita é um episódio desse trabalho: o deus revela ao
seu favorito Ardjuna a origem e a natureza do universo.
Essa
literatura é escrita em sânscrito, língua dos padres e da alta sociedade mas
entremeada de dialeto Pracrit, linguagem de classes inferiores. Sob o efeito
das invasões o sânscrito foi esquecido e só em alguns santuários é encontrado.
Observemos os recentes estudos de Jones, Wilkins, Colebrooke, Wilson, e
Langlois.
Quanto
ao grande livro hindu, o Pantchatantra, foi traduzido do sânscrito para o phlvi
por ordem do rei Choroés, no século VI. A importância desse livro é
considerável uma vez que foi traduzido em antigo persa e em sírio (Calila e
Diná); traduzido em árabe (século VIII) em hebraico (século XII), passou pela
Espanha e sua tradução latina data do século XIII, quando chegou à França e à
Alemanha. Paralelamente a esse eixo, sua tradução árabe penetra na Grécia
(Stéphanit et Ikhnilate) e na língua eslava (XII e XIII) para alcançar, enfim,
a Rússia.
4. — Influência da Igreja católica
Todas
as religiões empregam os mesmos símbolos, mas os colégios sacerdotais velaram a
verdade aos profanos a fim de reservá-la aos seus iniciados; velaram-na de tal
forma que a sufocaram e não souberam mais separar as ficções. Contudo as
religiões refletem a consciência humana, as relações sociais entre os
indivíduos, toda a experiência de nossa vida. A divulgação dos contos é devida,
em grande parte, a uma propaganda religiosa. O budismo não foi o seu único
agente de difusão, há também o druidismo, o catolicismo e todas as religiões.
Os missionários e os exploradores propagavam lendas bíblicas. A religião que
nada mais é que esoterismo, pois que pode existir apenas em estado de
mistérios, age pelo seu maravilhoso e provoca uma espécie de entorpecimento da
alma. Schelling escreve: Introduction à la philosophie de la mythologie
(Introdução à filosofia da mitologia): “O conteúdo da religião é puramente
espiritual e jorra, desta forma, das profundezas mais intimas da vida humana.”
A
Bíblia é uma grande lenda histórica que abrange vários séculos e não alguns
anos. Obra de várias gerações concentradas na única vida humana, ela nos ensina
o deslocamento dos nômades, a migração do povo de Abraão que se estendeu
durante numerosos anos. A influência bíblica, por seu maravilhoso, se revela em
todas as artes e também nas procissões, nas festas e na própria vida.
5. — Criação do mito do diabo
O
antagonismo entre Deus e Satanás se encontra em todo o decorrer dos temas
orientais, persas e cristãos. E Ariman, a grande serpente da noite, adversária
de Ormuzd. O princípio do mal vem da mais remota antigüidade. Mas, na religião
católica, Deus criou ele mesmo seus anjos caídos, enquanto que Ariman é um
poder primordial, antítese da Bondade.
A
fim de combater a sensualidade, a curiosidade, os prazeres da carne e do
espírito, a Igreja católica, serviu-se do personagem de Satanás e lhe criou uma
personalidade mais intensa; dos mistérios da Idade Média ficou-lhe a truanice
que lhe deram os primeiros dramas. Assim nasceu a bruxa, serva do mau espírito.
Os métodos de feitiçaria mostram essa alucinação coletiva, comparável ao Grande
temor; mas esses métodos terminaram de maneira trágica. A Inquisição
incumbia-se de conduzir a um ponto cruciante essa extraordinária criação do
espírito.
Assim
é que Loeffler-Delachaux vê nos contos de fadas um protesto contra essas regras
inflexíveis, a fada que reabilita a sacerdotisa ou a feiticeira druida
injustamente condenada.
6. — Conclusão
Quer
se trate da Escola filológica, naturalista ou histórica, a origem e a
interpretação das lendas só tem sentido a partir de uma equação pessoal; cada
sistema crê possuir a verdade. Mas a abundância, de assuntos iguais em cada
país, a esperança que deles se desprende, a perfeição de suas formas poéticas
deixam prever a busca de temas iniciáticos capazes de elevar o indivíduo. A
aventura maravilhosa, com sua surpreendente riqueza de alma, nos alegra e nos
instrui.
Esse
personagem imortal de Goethe — às vezes de Marlowe — soube, depois de velho,
reconquistar a juventude, acumular bens, governar seu espírito com uma
compreensão, quase divina.
O
homem contrai desta forma uma aliança sobrenatural a fim de se alçar a um nível
superior e, abandonando seu arcabouço original, projeta-se num outro ente
espiritual.
Este
conhecimento é tributário da dualidade da alma humana; e Mefistófeles endossa
nossa dívida e nossos defeitos. Satanás se incumbe de nossos crimes e de nossas
baixezas; é a válvula que permite ao homem, se libertar. Mas, depois de haver
vendido seu bem mais precioso, o homem tenta zombar do Espírito do mal e almeja
finalmente o espírito supremo da Bondade.
1. — A presença do diabo
Desde
a criação do Mundo o diabo tenta nos corromper; ele é a origem da maldição
celeste; evoca o assassínio de Abel, provoca o dilúvio e a destruição de
Sodoma. Se quer tentar Jesus incita tempestades e violenta as virgens.
As
concepções demonológicas encontram-se entre os povos mais diversos: árabes,
babilônios, assírios, bem como no pensamento hebraico, na religião persa, na
doutrina cristã, na filosofia grega. Tiveram lugar dominante na vida e nos
escritos.
Mas
o cristianismo, com o fito de despertar a atenção do público cansado de
dissertações filosóficas de mistérios, criou o personagem literário do diabo.
Não é mais uma divindade inatingível mas apenas um ser ridicularizado, válvula
indispensável para o rigor do catolicismo e da justiça divina. É assim que
aparece em Le jeu des Vierges sages et des Vierges folles (O jogo das virgens
ajuizadas e das virgens loucas) em La premiere joie de Marie (A primeira
alegria de Maria) etc. Cohen busca esse rasto maravilhoso no seu Théâtre
français au Moyen Age (O teatro francês na Idade Média).
2. — As duas formas de lenda
Fausto
reflete a geração em que evolui; a conclusão difere conforme o gosto do autor
ou o interesse da religião. Esse homem que vendeu sua alma morre amaldiçoado,
abandonado pelo céu: é o drama de Marlowe e dos protestantes. Em compensação,
esse homem orgulhoso que se perverteu para satisfazer sua curiosidade natural e
que logo em seguida se revoltou contra Satanás receberá o perdão. Surge então o
drama cristão de Goethe.
3. — Origem da lenda
A
primeira forma da lenda parece ser oriunda da Ásia, com La légende de Théophile
(A lenda de Teófilo), de que Eutiquiano, sacristão da igreja de Adana, teria
sido testemunha ocular.
Teófilo,
vidama — administrador — muito estimado, é injustamente destituído de seu
cargo. A fim de reencontrar seu posto, pediu auxílio a um mágico. Satanás
concluiu o pacto. Apesar do êxito, Teófilo, arrependido, reza durante quarenta
dias e quarenta noites implorando à Virgem Maria a restituição do ato satânico.
Teófilo confessa publicamente o seu ato e morre. Essa lenda foi muito apreciada
na Idade Média: Saint-Bernard, Voragine, Rutebeuf utilizaram-na. No tímpano do
portal norte da Igreja de Notre-Dame de Paris acha-se representado esse milagre;
na mesma ocasião, Viollet-le-Duc põe em cena o artista Biscornet assinando um
pacto com o demônio a fim de completar sua obra (Serralheria das portas de
Notre-Dame de Paris).
4. — Outras formas da lenda
Em
1220, Cesário d’Heisterbach escreveu Histoire de Militarius (História de
Militarius) que, depois de uma vida de deboche, vende-se ao diabo e,
finalmente, obtém o perdão da Virgem. Com a Légende du chevalier qui donna sa
femme au diable (Lenda do cavaleiro que deu a mulher ao diabo) de origem
picarda (século XIV), a virgem, tomando o lugar da mulher caluniada, põe em
fuga Satanás.
Mais
próximo de La légende de Théophile está o texto brabantês La légende du
chevalier voué au démon et sauvé par sainte Gertrude (1612) (Lenda do cavaleiro
ao demônio e salvo por Santa Gertrude) (G. de Rébreviett) e La farse de Munyer
(A farsa de Munyer).
Dessa
forma, nessa espécie de imaginaria popular — assaz rica em textos semelhantes —
a Virgem intercede em favor de homens orgulhosos, perdulários e jogadores.
5. — A lenda de Cipriano
Santa
Justina, virgem de Antioquia, é atormentada por Cipriano que se dá à magia; mas
Cipriano constata que “o crucificado é maior do que todos os diabos”
converte-se e torna-se bispo. Voragine acentua dessa forma o poder esotérico do
sinal da cruz. Calderón recolhe a lenda para seu Magicien predigieux (1637) (O
mágico prodigioso). O pacto foi também suprimido em São Cristóvão ou Santa
Teodora.
Em
Saint Basile, évêque (São Basilio, bispo), Voragine confunde o amor com o
desejo de se elevar; Urádio, um jovem escravo, que se vende ao demônio para
poder esposar a filha do seu patrão, São Basilio conseguirá recuperar a célula
demoníaca. Achille Jubinal, depois de Jehan de Saint-Quentin, narra em seus
Contes, dits et fabliaux, várias lendas semelhantes (Le dit du chevalier et de
l’escuier - Os ditos do cavaleiro e do escudeiro), Le dit du pauvre chevalier
(O dito do pobre cavaleiro), Le dit des II chevaliers (O dito dos II
cavaleiros). Mira de Amescua: L’esclave du démon (Escravo do demônio) associa D.
Juan e Fausto. O eremita D. Gil sucumbe à tentação; dá sua alma a Satanás para
poder abraçar uma freira que não passa de um esqueleto. O pavor restitui seu
pensamento a Deus e São Miguel triunfará sobre Satanás.
Moreto:
Tomber pour se relever (Cair para se reerguer), Calderón: Joseph des Femmes
(José das Mulheres), Molina: Le damné pour manque de confiance (O maldito por
falta de confiança), pensam ainda na doutrina luterana. Thomas Mann, no Doutor
Fausto narra vários contos semelhantes (capítulo XIII).
6. — O ensinamento da lenda
Assim
sendo, para atingir um fim ardentemente desejado um infeliz vende sua alma ao
diabo, seja por intermédio de um judeu, seja por evocação direta graças a
fórmulas mágicas. O pacto é escrito com sangue, marca indelével que o torna
indissolúvel por um período de sete anos. A vítima arrependida é arrancada a
Satanás por meio de uma intervenção celeste. Esta luta é de quarenta dias —
prazo da redenção. Substitui-se a Virgem pela santa da região para que a
autenticidade seja incontestável. Teófilo busca a dignidade e as honrarias; os
cavaleiros se ocupam de riquezas; Urádio pensa no amor; e Fausto, na juventude
e no gênio.
A
Igreja reformada serve-se da lenda de Fausto para combater o ensinamento do
catolicismo.
O
inferno triunfa nas literaturas alemã, inglesa, escandinava e holandesa.
7. — O pacto satânico e a crendice popular
Fortemente
instrumentada, a crença popular é de que toda inteligência superior é
alimentada por um trato desonesto. Procura-se solapar o poder da Igreja
católica. O poder temporal do Papa Silvestre II é oriundo da colaboração do
diabo que fez com que um pastor de Auvergne fosse elevado às mais altas
dignidades: é o “homem dos três R” por ter assumido postos em Reims, Ravenne e
Roma. Abelardo, precursor do racionalismo moderno, tem a exigência de Fausto;
esse herói da crítica e da independência é derrotado por São Bernardo,
conservador da ordem. Apolônio de Tiano, Sião, o Mágico e os papas desde João
XIII até Paulo II período ativo da Reforma — são assim caluniados por espíritos
invejosos do seu poder. Alfred Neumann, ao escrever O diabo, sob o nome de Necker,
servidor de Luís XI, mostra claramente a opinião do povo que pretende ver no
êxito de um homem surpreendente um poder oculto.
8. — O personagem histórico
Fausto,
nascido nos últimos anos do século XV, talvez em Kundling, perto de Bretten,
teria morrido em 1543 ou, conforme o médico Bégardi, em 1539. E. Faligan na sua
Histoire de la légende de Faust (História da lenda de Fausto) cita escritos
históricos que provam a sua existência; Fausto, em 1507, era professor, em
1509, bacharel em teologia e recebido na Faculdade de Heidelberg. Esse
indivíduo preguiçoso, ladrão e dado à embriaguez, discípulo de Lutero, tem uma
vida movimentada. Toma como cunhado o próprio Diabo e chama o seu cão de
Prestigiar. Prematuramente envelhecido pelos excessos, sua morte impressiona a
imaginação popular. Sua vida estranha e sua morte cruel — talvez crapulosa —
deram origem a uma lenda.
9. — Nascimento da lenda
Em
4 de setembro de 1587, Johan Spies publica em Francforte L’histoire du docteur
Faust (História do doutor Fausto) (autor anônimo). Depois da evolução
psicológica dessa alma transviada, as suas aventuras extraordinárias são
relegadas, desordenadamente, para o fim do livro.
A
edição de Widmann em 1599, acentua o caráter teológico: é a contribuição
protestante. L’histoire de Wagner (A história de Wagner) é a repetição da de
Fausto. Fredericus Scotus Tolet publica em 1593 uma vida de Fausto na qual ele
viaja como sendo Cristóvão Colombo. Marlowe escreve uma farsa trágica, violenta
e sem igual, a Tragique histoire du docteur Faust (A trágica história do doutor
Fausto) (Londres, 1604). É uma obra profundamente humana na qual o autor
conclui que o inferno está em nós mesmos. Com o teatro de fantoches — os
“puppenspiele” — Fausto perde seu conteúdo ideológico para tornar-se o impostor;
o elemento trágico passa a residir apenas no destino do herói, ficando a parte
cômica com Hanswurst ou Kasperle, Polichinelo alemão.
Essas
numerosas representações inspiram Dreher e Schütz e depois, Geisselbrecht.
10. — O drama de Goethe
Em
1773 Goethe inspira-se no teatro de fantoches. Devolve a essa lenda protestante
sua nobreza primitiva: Fausto tornar-se-á um Abelardo alemão. Símbolo da vida
humana, esse drama é o do saber, o da paixão. Mas Fausto aspira a uma verdade
superior: será salvo apesar de seus erros. Mefistófeles é a antítese das boas
qualidades do sábio. Esse desdobramento de personalidade é mais notável em
L’étrange cas du docteur Jeckyll (O estranho caso do doutor Jeckyll) com
Stevenson que identificou o vício e a virtude. Essa cumplicidade demoníaca
reteve a atenção de Goethe, e o mal — força consciente — seria o reativo do
bem. Satanás torna-se então o servidor de Deus. “O diabo é um companheiro que,
provocando o homem, fá-lo também agir.” Aliás, o prólogo de Fausto assemelha-se
à conversação entre Deus e Satanás (Job, I, 6; II, 3) que é encontrada no
ensaio de Abraão (Job, 17, 1812).
Não
será esse o licor da imortalidade que foi apresentado pelo médico dos Deuses ao
Vichnu por ocasião de um dos seus avatares?
Além
do valor esotérico desse drama, eis que aparece a heroína Margarida, uma das
mais belas almas humanas. Mas nessa luta de amor pueril, sem escrúpulos e sem
remorsos, a lei da fatalidade esmaga a inocência. Se Fausto não houvesse
soçobrado na desvairada noite de Walpurgis, teria representado o amor imortal.
Goethe,
entre setenta e seis e oitenta e dois anos escreveu o segundo Fausto, soma de
saber e conhecimento. Nesse poema metafísico, de simbolismo muitas vezes
obscuro, Fausto — a ciência — casa-se com Helena, mulher perfeita, de beleza
antiga e plástica, símbolo da iniciação. Euforion é a alma no último grau da
encarnação, libertada de suas correntes materiais.
Dois
grandes filmes foram inspirados nesses temas equivalentes, um de Marcel Carné,
Les visiteurs du soir (Os visitantes da noite) e o outro de René Clair, La
Beauté du diable (A beleza do diabo).
11. Sucessão literária
Fausto
enamorado, faz lembrar D. Juan, e Grabbe desenvolve essa comparação analisada
por Micheline Sauvage: Le cas de Don Juan (O caso de D. Juan) (Le Seuil, 1953).
Mas Fausto, romântico. como Chamisso e Lenau, suicida-se. Intelectual puro para
Lessing, é um orgulhoso revoltado para Lenz, Muller, Klinger. O Fausto de Heine
desapareceu; sua ação é muito confusa conforme Soden, Klingemann e Stolte.
Herói
de todas as dúvidas e de todos os conflitos humanos, o Fausto de Turguenief é
alvo do amor culpável. Mac Orlan o faz viver entre rufiões e raparigas e uma
prostituta endossa essa terrível dívida (Margarida da noite). Em compensação,
Mon Faust (Meu Fausto) de Paul Valéry, é uma criatura que esgotou tudo o que a
vida pode dar. Mefistófeles é desviado pelas transformações do mundo moderno.
Essa fresca sensualidade aparece na comédia satírica, Lust; depois de La
demoiselle de Cristal (A jovem de Cristal), vem Le Solitaire (O solitário) que
é o drama da negação de nossa civilização; sonho intelectual de M. Teste ou de
Leonardo da Vinci, cada homem integrou-se de uma parcela diabólica. As duas
peças estão inacabadas; se Lust deixa supor o triunfo do amor, observamos o pensamento
trágico já assinalado por Rhumbs (Rumbas), Variétés (Variedades), Analectas
(Analetos).
Thomas
Mann escreveu a tragédia de um músico obcecado: O doutor Fausto. Livro de uma
extraordinária densidade e anotações perturbadoras, o Diabo aparece durante a
Idade Média. Lembramo-nos de Paganini cuja virtude era classificada entre a dos
personagens diabólicos e que não pode ser enterrado religiosamente (as
tribulações de seu cadáver duraram cinquenta e sete anos). Ferchault observa,
porém, os músicos inspirados por esse tema. São eles, Schumann, Berlioz,
Gounod, Liszt, Wagner e outros. Stravinsky orquestrou L’histoire du soldat (A
história do soldado) de Ramuz — na qual um desertor vende a sua alma — num
verdadeiro milagre de realização instrumental sonora. Bellaigue se filia aos
pintores: Étude artistique et littéraire sur Faust (1883) (Estudo artístico e
literário sobre Fausto). Depois de Ary Scheffer haver pintado Margaridas, as
melodias de Berlioz transpareceram em Delacroix.
Não
poderíamos deixar passar em silêncio La merveilleuse histoire de Pierre
Schlemihl (A maravilhosa história de Pierre Schlemihl) na qual Chamisso aponta
um pacto particular; um homem vende a sua sombra pela bolsa de Fortunato. A
tentação é feita em dois estágios; o diabo, humilde como nos tempos medievais,
compra apenas a sombra na esperança de recuperar a alma quando a desgraça se
consumar. As sombras aparecem também na obra de Mac Orlan (Père Barbançon) na
qual a sombra de Encolpe instiga uma luta sorrateira; se bem que o pacto não
apareça, a atmosfera diabólica é a mesma.
12. — Conclusão
Esta
lenda de origem satânica nasceu com L’histoire de Théophile. Pelo poder da
prece, o homem foge ao jugo do mal. O protestantismo consagra o triunfo do
inferno. Fausto denuncia uma crise literária e moral, é um universo resumido. O
drama de Fausto continua a ser, assim, o drama humano por excelência.
Possuir
pelo espírito ou possuir pelo corpo são os dois desejos insaciáveis e eternos
do homem. Fausto luta com os problemas do conhecimento. D. Juan procura enlaçar
a beleza e se inebria no furor sensual. Mas esse “benfeitor inesgotável de
todas as mulheres”, como é denominado por A. Saurès, persegue um ideal
inacessível; luta com Deus e submete-se finalmente à sua lei comungando no Amor
supremo.
D.
Juan representa nossa tentação, nosso desejo repudiado; herói da força de
sedução, essa criatura audaciosa, nobre e cavalheiresca, cínica é odiada mas
secretamente admirada. É que sob os andrajos D. Juan permanece um grande
Senhor; não é um espadachim e sua paixão, que poderia ter sido vil, o aureola.
Seu
instinto de revolta faz com que entre em conflito com instituições existentes.
D. Juan nasceu num clima quente e sensual, no estrondear das frutas maduras e
odorantes, mas sob o controle da inquisição aos dogmas rigorosos que
proscreviam a liberdade do amor:
L’oeuvre
de la chair ne désireras
Qu’en mariage seulement.(2)
Qu’en mariage seulement.(2)
Apesar
de Bernard Shaw ser de opinião que D. Juan continua “um crente fervoroso num
inferno último e de que se arrisca à excomunhão, é que o inferno lhe parece tão
distante que o arrependimento pode ser diferido até o momento em que se tiver
saciado de prazeres” (Man and superman) o povo não pode admitir a excomunhão
desse homem excepcional. D. Juan reconcilia-se com Deus; e depois da lenda de
D. Juan Tenório — que morre excomungado — aparece D. Juan Mañara.
1. — Os dois D. Juan
Depois
de haver sido o símbolo da força maligna anti-social; o individualista D. Juan
Tenório transforma-se na figura idealista de D. Juan Mañara, vítima das
realidades físicas de nossa sociedade. Escravo do nosso mundo, verá seus erros
perdoados por saber arrepender-se; é o símbolo do sofrimento e da luta.
Prosper
Mérimée mostrou em Les âmes du Purgatoire (As almas do Purgatório) que as duas
lendas eram contadas da mesma forma; entretanto, Tenório foi levado pela
estátua de pedra enquanto que o Mañara salvou-se. A Igreja manda um epílogo
moralista e quanto mais perverso é o personagem, mais a conversão será
retumbante. Bemard Shaw denomina-a “moral monástica”. Albert Camus admite que
esse refúgio em Deus “é o confinamento de uma vida totalmente penetrada de
absurdidade”; “o prazer termina aqui em ascese”,
No
decorrer de sua longa existência D. Juan se purificou.
Romântico,
persegue a imagem de uma beleza feminina, é um amante místico que vai do
desencantamento ao desespero. É um Werther que, pelas suas preocupações
intelectuais, liga-se a Fausto.
2. — D. Juan e Fausto
D.
Juan e Fausto são dois revoltados que se insurgem contra os princípios da
sociedade e da Igreja. Esses orgulhosos — serão excomungados — porque
ultrapassam os limites impostos por Deus. A aproximação desses dois peregrinos,
de um absoluto inacessível, foi materializada por Nicolas Vogt no seu poema Les
ruines des-bords du Rhin (As ruínas das margens do Reno). O paralelo foi
admiravelmente tratado por Micheline Sauvage em Le cas Don Juan (Le Seuil,
1953), onde “Fausto é a inteligência de Don Juan, Don Juan o erotismo de
Fausto”; Albert Camus: Le mythe de Sisyphe (O mito de Sisifo) é de opinião que
Fausto não sabia alegrar a sua alma enquanto que a vida cumulava D. Juan, que
sabia organizar sua saciedade.
3. — Os personagens históricos
Essa
criação imortal começa com D. Juan Tenório. Tirso de Molina, que foi o primeiro
a divulgar o tipo em, aproximadamente, 1627, deve ter conhecido obras
literárias anteriores. Uma crônica de Sevilha fixa Tenório matando o Comendador
cuja filha havia raptado e a armadilha dos frades franciscanos; este teria sido
mandado por uma estátua subitamente animada. Fez-se de Tenório o filho do
almirante Alonso Jofre Tenório, contemporâneo de Pedro, o Cruel.
Conhecemos
melhor D. Miguel Mañara. Nascido em Sevilha no dia 3 de março de 1627, casou-se
no dia 31 de agosto de 1648, após uma juventude dissipada; ao falecer sua
esposa, em 1662, ingressou na confraria “la Hermandad de la Caridad”; no cargo
de irmão maior, faleceu em 1679 em odor de santidade; quiseram beatificá-lo.
Barres:
Du sang, de la volupté et de la mort (Do sangue, da volúpia e da morte),
Théophile Goutier (Voyage en Espagne, XIV), t’Serstevens (Le nouvel itinéraire
espagnol, Segep, 1951), nos descrevem a última morada desse personagem lendário.
A partir do quadro de Valdês Leal, Montherlant (revista N. R. F. de janeiro de
1953) vê na vida de D. Juan uma contínua blasfêmia; o que contrariaria os
propósitos do Padre jesuíta Jean de Cardenas, amigo de D. Juan Mañara. Lorenzi
de Bradi estabeleceu a origem corsa desse erradio do amor, cujo tio habitava
ainda em Calvi, em 1643; foi dessa forma que pelos Cinarca, Napoleão foi
parente dos D. Miguel.
4. — Origem literária
Se
Georges Gendarme de Bévotte escreveu um livro notável, La Légende de Don Juan
(Hachette, 1906 e 1910), Lorenzi de Bradi (Don Juan - 1930), pensa no sedutor
com Zeus, “esse deus devasso, incestuoso, adúltero”, Plutão o raptor de almas e
de corpos ou Prometeu.
A
silhueta do personagem não é nova: aparece no Amadis de Gaula (1492), nas
comédias de Calderón e principalmente nas de Lope de Vega, aproximadamente em
1598.
Tirso
de Molina (1627), porém, extrai desse contemporâneo do Cid e de D. Quixote o
máximo de força. Seu herói vindicativo tem respostas breves; sua atitude é
digna e de uma calma intrépida diante da estátua animada; essa grandeza o
reabilita. O aspecto singelo desse drama dá-lhe um sabor extraordinário. No Le
truand béatifié (O truão beatificado), de Cervantes, Cristobal de Lugo morre em
odor de santidade; com Mira de Amescua: L’esclave du démon (O escravo do
demônio), D. Gil vende sua alma ao diabo a fim de possuir uma freira: enlaça
apenas um esqueleto e seu pavor o reconduz a Deus.
5. — Os outros temas do assunto
Esse
drama religioso, no qual a doutrina de Lutero e da predestinação suscita a
dúvida, comporta também o tema do convite de um morto à mesa de um vivo. O
assunto se encontra em peças escritas nos colégios de jesuítas alemães nos
séculos XVII e XVIII: um libertino, o conde Leôncio, esbarrando com uma cabeça
de morto, convida-a para jantar; o misterioso hóspede aceita o convite e leva o
anfitrião para o inferno. Bévotte observa que a lenda teria nascido na Itália,
o que é confirmado por Simone Brouwer. As estátuas animadas são freqüentemente
usadas: Aristóteles nota o assassínio de Mitis pela estátua da vitória
(Poética, XI, 6), Crisóstomo e Pausânias (Voyage en Grèce, 6, XI - Viagem à
Grécia) observam que um invejoso é esmagado pela estátua erguida ao atleta
Teógenes de Tasos; o escultor Pigmalião enamora-se de sua estátua que será
animada por Vênus.
Eckhardt
(Corpus historiarum, Leipzig, 1723) menciona o texto de um cronista do século X
referido por Gauthier de Coinsi em sua Chronique rimée des miracles de la
Vierge (Crônica animada dos milagres da Virgem): “Du Clerc qui mis l’anel au
doi Nostre Dame”. Notemos ainda Cicognini com La statue de l’honneur (A estátua
do homem). Shakespeare e o Conte d’hiver (Conto de inverno) e a Vênus d’Ille de
Prosper Mérimée.
6. — De Tirso de Molina a Molière
Depois
da obra humana de Tirso de Molina, a peça espanhola é traduzida conforme o
gosto italiano, por Cicognini, Giliberto; cenas burlescas e até vulgares foram
acrescentadas por Biancolelli. Dorimon interpreta Le festin de Pierre, em Lião
(1658), Villiers no palácio de Borgonha, em 1659. Ao título Le convié de
Pierre, preferiu-se algumas vezes Le festin de Pierre, sendo Pedro o prenome do
Comendador que deu origem ao contra-senso atual. Molière imagina, no Palais
Royal, em 15 de fevereiro de 1665, essa notável peça que só será impressa em
1682. Seu ateísmo revolta os bons costumes e a peça é condenada. Com dois novos
personagens, Sganarelle — mordomo jovial e de bom senso — e dona Elvira —
vítima inocente — D. Juan é um cético de idéias engenhosas. Calculista,
perversa, hipócrita e facciosa, essa peça é na realidade uma pintura dos
costumes da época.
7. — Superabundância literária
Cada
autor retomaria esse tema, a fim de nele se introduzir, em folhetos impressos.
Depois de Rosimond (1669), La Fontaine trata do personagem ao escrever Joconde
ou l’infidélité des femmes (Joconda ou a infidelidade das mulheres). D. Juan
passa para o teatro de fantoches, nas feiras de Saint-Laurent e Saint-Germain e
o Almanach forain de 1777, organiza uma lista.
Cokain
introduz D. Juan na Inglaterra e Shadwell transforma-o em um monstro: La
libertine. (1676) (A libertina). Byron escreve um longo poema inacabado no qual
o herói se deixa conduzir pelo destino. Em Clarisse Harlowe, de Richardson
(1751), Lovelace é uma criatura complicada que tem o gênio do mal. Choderlos de
Laclos aproveita essa mesma segurança diabólica no prazer da corrupção: Les
liaisons dangereuses (Ligações perigosas - 1782), mas nessa luz cruel onde
todos os recursos da astúcia são orquestrados, Valmont aparece mais perverso do
que D. Juan.
O
abade italiano Lorenzo da Ponte introduz episódios da sua vida em Don Giovanni;
Mozart aproveita esse texto, enquanto que Balzac cria L’elixir de longue vie (O
elixir da longa vida).
Do
personagem humano de Puchkin (1830), Musset faz apenas um ente quimérico (Les
marrons du feu, 1829, Namouna, 1832; Une matinée de Don Juan). Em 1833, Lélia,
de George Sand, ataca D. Juan que é por ela reabilitado em 1839. Mérimée (Les
âmes du Purgatoire, 1834 - As almas do Purgatório), Blaze (Le souper chez de
commander - 1834), inspiram-se em Mañara, enquanto que La chute d’un ange (A
queda de um anjo), de Alexandre Dumas, é um drama desconcertante. D. Juan
continua demoníaco em Albertus, (1831), Comédie de la mort, (1838) de Th.
Gautier.
Se
a maioria dos dramas é pueril, Baudelaire compõe um poema surpreendente, Don
Juan aux enfers (D. Juan nos infernos), que evoca talvez Delacroix (1846, Les
fleurs du mal - As flores do mal). Depois dessa síntese vigorosa, D. Juan é
novamente desiludido com Lenau (1851), Tolstói (1860). Flaubert lembrou-se dele
numa peça inacabada (Une nuit de Don Juan), enquanto que Barbey d’Aurevilly,
fê-lo contar “seu mais belo amor” nos Diaboliques (Diabólicos); Henri Bataille
também evocou esse personagem na velhice (L’homme à la rose - O homem da rosa).
Richepin obriga o sedutor entediado a amar apenas mulheres bonitas: Mille et
quatre, inconnue (Mil e quatro, desconhecida). H. de Régnier, Ed. Rostand
trazem poucas inovações. Bemard Shaw produz uma obra de fé sobre esse motivo:
Man and superman (1901-1903) (Homem e super-homem); Miguel Mañara de O. V. de
Milosz é humano e comovente; foi escrito depois de Les sept solitudes (As sete
solitudes) Scenes pour Don Juan et l’amoureuse initiation (Cenas para D. Juan e
a amorosa iniciação). L’homme de cendres (1949) (0 homem feito de cinza) de
André Obey é também Le fruit de Don Juan (1934) (O fruto de D. Juan) e do
Trompeur de Séville (1937) (O impostor de Sevilha); mas após esse homem da negação,
eis o “assassínio do amor” por Delteil (Grasset, 1930); é um fraco vencido pela
mulher. Depois deste estilo imperioso e colorido, Claude-André Puget propõe-se
dois fins em Echec à Don Juan (1941 e 1953), (Malogro de D. Juan), obra
brilhante e cavalheiresca. Para t’Serstevens, La légende de Don Juan (1924 e
1946) (A lenda de D. Juan), ele é o judeu errante do amor. Esta vibração da
carne encerra-se com êxtase, enquanto que para Fernand Fleuret: Les derniers
plaisirs, (1924) (Os últimos prazeres), Mañara morre como um libertino.
8. — Os representantes de D. Juan
Além
dos personagens históricos de Tenório — e Mañara, muitos outros sedutores
tornaram-se representantes desse herói. Ocorre-nos imediatamente a lembrança de
Alexandre com o seu harém de trezentas e sessenta e cinco mulheres, renovado
todos os anos ou a de Júlio César, o sedutor inescrupuloso. Mencionemos ainda
Henrique II de Montmorency, Nero, Francisco I, Luís XIV, Henrique IV (Le Vert
Galant). Temos ainda Lauzun, o duque de Richelieu e a vida galante da Regência.
Depois de Lázaro vêm as vidas tumultuosas de Santo Inácio de Loiola, de
Calderón ou do terrível espadachim Lope de Vega. Sade, por sua obscenidade
doentia, sua perversão sexual dificilmente se assemelha a esse voluptuoso que
não pagava as mulheres como o fazia Casanova; D. Juan não teria admitido as
astúcias de Charpillon que se assemelham às da Conchita imaginadas por Louys:
La femme et le pantin (A mulher e o títere). Nicolas Rétif La Bretonne também
se assemelha mais a Casanova do que a D. Juan.
9. — Conclusão
D.
Juan encarna a paixão humana, pertence a todos os países, a todas as épocas.
Está na base de nossa literatura: é o René de Chateaubriand, o Steerforth de
David Copperfield, L’egoiste (O egoísta) de Meredith, o Woodstock de W. Scott;
aparece ainda na obra de Montherlant, Stendhal, Maupassant. Esse sedento de
ideais integra-se na concepção de cada autor; é uma criação viva.
À
satisfação física quer acrescentar a do espírito. Esse carrasco de corações,
cortês e cavalheiresco, buscando a posse suprema, o amor absoluto, tende à
santidade. Mas não deixou de ser essa criatura inconstante, cujos desejos
insaciáveis e inesgotável curiosidade, permitiram-lhe mil e três aventuras,
verdadeiras conquistas e não simples mercancias. Iluminado, peregrino do
êxtase, judeu errante da volúpia, aventureiro que sonda corações e entranhas,
traz no seu vício uma elegância nativa para transformar-se nesse frade
arrependido.
Ao
seu lado a estátua é altiva e marcial; o mordomo conselheiro, tímido, hesitante
entre seus escrúpulos e seu interesse; Dona Enviar — ou Dona Ana — é pura.
O
drama de D. Juan com seu espírito revoltado denuncia uma crise literária e
religiosa. Mito de riqueza incomparável, é um universo com a condição do homem,
sua dualidade, seu drama da carne e do espírito. Ainda por muito tempo nos
encantará.
As
canções de gesta nasceram na excitação religiosa e guerreira; os frades e os
prestidigitadores desenvolveram seu suporte histórico, a ficção embrionária num
objetivo preciso. Não são obras coletivas; gentes de ofício fixaram uma obra
maduramente pensada. Bédier demonstrou a influência exercida pela vida dos
santos, e a marcha dessas epopéias nas vidas dos santuários; pois que essas
obras morais deviam reter e “explorar o peregrino”.
1. — Histórico das teorias sobre a origem
1.
Em 1830, para Fauriel, Wolf, Herder e Edgar Quinet, a lenda vem de um canto
popular contemporâneo ao evento histórico. A poesia nasceu espontaneamente;
esses contos são “Ilíadas em potência”
2.
Os irmãos Grimm “germanizaram” as canções de gesta. Essa poesia popular exprime
a alma da coletividade; não é escrita por um poeta, mas pelo povo. Os escribas
apenas a coletaram. J. J. Ampère é da mesma opinião;
3.
Em 1835, Leroux de Lincy denomina de Cantilenas os velhos cantos populares.
Essa teoria das origens faz parte do ensino com as Histoires de la littérature
française de Demogeot (1851) e de Gérusez (1852);
4.
Gaston Paris admite essa origem mas controla os cantos que seriam de origem
merovíngia e não tudesca;
5.
Em 1884, Pio Rajna mostra que a canção de gesta é o término da epopéia
merovíngia herdeira da epopéia franca; foi adaptada somente para a aristocracia
germânica. (Carlos Magno fala alemão). Rajna arruina a teoria das cantilenas e
mostra que a epopéia era composta de longos poemas estruturais. Mayer conserva
a tradição oral, Gaston Paris, a noção do canto lírico-épico;
6.
Bédier observa a importância dos santuários situados nas estradas das grandes
peregrinações que conduzem para São Tiago de Compostela. Assim sendo, a igreja
é o berço das canções de gesta. que nada mais são do que “a história poética de
uma estrada”. Bédier traçou a “estrada dos santuários”. A chanson de Fierabras
foi composta pela abadia de Saint-Denis para que melhor se venerasse o Cravo da
Cruz e a Coroa de Espinhos do Cristo.
2. — Situação dos ciclos
Indicamos
sumariamente a composição de três ciclos principais:
A)
Gesta do rei Carlos Magno — É o ciclo mais nobre; narra guerras santas
efetuadas pelo Imperador. A título de indicação citaremos como a mais antiga
canção de gesta a Chanson de Roland.
Observemos
a descrição das guerras santas: Da Itália (Canções d’Aspremont, d’Otinel, as
Canções Enfances d’Ogler, de Balan, de Jean de Lanson, de Bete et Milon); da
Palestina (Canção de Miran, Pèlerinage à Jerusalém, o Chevalier au Cygne,
Chanson d’Antioche); da Bretanha a fim de libertar as sete igrejas (Chanson
d’Aiquin); contra os Saxônios (Chanson de Saisnes); da Espanha (Chanson de
l’Entrée en Espagne, de La prise de
Pampelune,
de Pierabras, e d’Agolant, de Roland, de Galien, d’Anseis).
B)
A gesta de Garin de Monglane — São as pesquisas de Luis, filho de Carlos Magno,
apoiado pelo cavaleiro Guilherme. Não tratando deste ciclo, daremos alguns
dados.
1.
O coroamento de Luís — Poema do século XII que marca a chegada de Luis em
Aix-la-Chapelle. Guilherme Fierebrace — o verdadeiro herói — combate até
Corsolt, o gigante. Cogitou-se historicamente no conde de Toulouse, Guilherme,
que foi defensor das marchas meridionais contra os sarracenos. Ao retirar-se
para o mosteiro em 806, tornou-se São Guilherme do Deserto; nossos dados
limitam-se a esta descrição. Guilherme morreu antes do coroamento de Luís.
2.
O carreto de Nimes — Por ocasião da distribuição de méritos e feudos, Guilherme
foi esquecido pelo rei. Reivindica então o direito de conquistar a Espanha e o
reinado de Nimes. Penetra em Nimes disfarçado num vendedor de barris de sal
onde estão escondidos, na realidade, seus soldados. (O que nos faz lembrar o
cavalo de pau da Ilíada ou As mil e uma noites).
Guillaume
au court nez (Guilherme de nariz curto) é um herói popular; a narração é
truculenta, pitoresca e cômica. Notemos o episódio da morte do cavaleiro
Renouart no qual o autor pensa no ciclo arturiano ao falar da fada Morgana e do
rei Artur. Guilherme está ainda presente na Prise d’Orange (Tomada de Orange),
Aliscans.
Os
ascendentes de Guilherme estão presentes com:
1.
Aymeri de Narbonne — Cinco mil versos decassilábicos atribuídos a Bertrand de
Bar-sur-Aube (Princípio do século XIII), divididos em cinco manuscritos
anônimos. Aymeri, depois de haver conquistado Narbonne partiu para a Itália a
fim de desposar Hermengarda, irmã do rei dos Lombardos. Deve reconquistar dos
sarracenos aquilo que lhe pertencia.
Com
o Département des enfants d’Aymeri vemos a luta de seus sete filhos contra os
sarracenos. Aymeri morre combatendo os Centauros (os Sagitários); seus quatro
mil versos têm o titulo La mort d’Aymeri de Narbonne.
Victor
Hugo lembrou-se dessa lenda em Aymerillot (A lenda dos séculos).
2.
Girardo de Viena — Durante sete anos Girardo é sitiado em Viena por Carlos
Magno. Oliver combate ao lado de Girardo. Ora, Rolando apaixona-se por Aude,
irmã de Oliver. A fim de terminar a guerra, Rolando e Oliver empenham-se num
combate implacável; um anjo aparta os combatentes e Rolando esposa Aude.
Baseado
nesse tema, Victor Hugo escreve Le mariage de Roland (O casamento de Rolando),
La Légende des siècles (A lenda dos séculos).
Mas
os descendentes de Guilherme deram origem a: Les enfances de Vivien (As
infâncias de Vivien), Foucon de Candis, La batalhe Loquifer (A batalha
Loquifer), Rénier enquanto que seus irmãos estão presentes no Bovon de
Commarcis, Le siége de Barbastre (O sitio de Barbastre), Guibert d’Andrenas ou
La prise de Cordoue (A tomada de Córdoba). C) A gesta de Doon de Mogúncia — É a
narração da revolta dos cavaleiros rebeldes de Carlos Magno. Estudaremos melhor
na Chevalerie d’Ogier os Quatre fils Aymon (Os quatro filhos Aymon), lenda
justamente célebre e que é prosseguida por Maugis d’Aigremont e La mort de
Maugis (A morte de Maugis).
O
orgulho, a loucura, o exagero formam o fundo dessas canções onde rancores
imperdoáveis nasceram (Chanson d’Aubri le Bourguignon, de Basin, de Girard de
Roussillon, de Gormond). Mas, às vezes, os barões já não lutam contra Carlos
Magno e sim entre si (Raoul de Cambrai, Les Lorrains).
Observemos
que a história de Gormond e Isambard foi composta pelo, abade Hariulf, em 1088,
conforme a crônica de Saint-Riquier. É pois ainda um santuário que guardou a
tradição doa invasores escandinavos que ameaçaram a França em 879. E exato que
um dos Wikings se chamava Gormond, que seus bandos devastaram Ponthieu em 2 de
fevereiro de 881, e que no dia 3 de agosto de 881, Luis III os desalojou. As
crônicas anglo-saxônicas mencionam um Gormond estabelecido em Circester em 879
e um clérigo cometeu o contra-senso de confundir os dois Gormond.
D)
Finalmente os empresários dos espetáculos desejaram satisfazer os públicos mais
vulgares. As canções de gesta se transformaram em melodramas. Surgiu o tema da
inocência perseguida (Elie de Saint-Gilles, Doon de La Roche...), o das damas
oprimidas (Berthe aux grands plods, Les enfances Doon, Orson de Beauvais). São
peças moralistas onde se assiste ao castigo do crime.
1. — Tema da canção
Carlos
Magno deve negociar com o rei muçulmano de Saragoça que pede paz. Ganelon, o
traidor, permite que Marsile cerque a retaguarda comandada por Rolando. Quando
este se decide a pedir socorro a seu tio, todos os bravos, inclusive Olivier e
o arcebispo Turpin, morrem. Carlos Magno aniquila os sarracenos e em
Aix-la-Chapelle. Ganelon é esquartejado.
2. — Tema histórico
Einhard
escreve em aproximadamente 800 (Vita Karoli, IX) que o emir da Saragoça
solicitou o auxílio de Carlos contra os príncipes muçulmanos (777 em Paderborn)
No dia 19 de abril de 778 Carlos Magno atravessa os Pireneus, toma Pampelune e
malogra-se em Saragoça. No dia 15 de agosto de 778 sua retaguarda é
surpreendida pelos bascos no desfiladeiro de Roscenvales. Carlos não pode
castigar os montanheses.
Desta
forma, para os bascos, a imaginação popular teria substituído os sarracenos,
inimigos arraigados dos cristãos.
Conforme
a versão árabe de Ibn-al-Athir (século XIII), os sarracenos aliciados junto aos
francos, teriam auxiliado os bascos.
Gaston
Paris adere a esta opinião e diz que Einhard registrou um fato inexato para
poupar o amor-próprio dos francos.
3. — Arquivos históricos
Estes
acontecimentos são ainda anotados nos Anais de Angilbert, em 778, na crônica do
astrônomo Limousin Vita Kludovici.
Eis
a crônica do frade de Silos (aproximadamente 1110), ato da fundação da abadia
de Saint-Pede-Gèneres em Bearn (1096); história eclesiástica de Fleury (1109);
epístola III de Raoul le Tourtier (antes de 1114); Les exploits de Tancrède (As
proezas de Tancredo), de Raoul de Caen (1112-1118). Uma cruz adorna a gola de
Cize antes de 1106 e é mencionada numa Carta Episcopal de Baiona, em 980; os
arquivos de Pampelune (1127), falam de uma capela erguida por Carlos Magno
nesse local de carnificina.
4. — Os personagens históricos
Rolando
era verossimilmente um conde de la Marche da Bretanha. Carlos, que na realidade
tem apenas trinta e sete anos, torna-se o imperador da “Barba florida”. A lenda
deforma os fatos e, para melhor expor a bravura de Rolando, quatrocentos mil
sarracenos combatem vinte mil francos.
Costuma-se
relacionar também esses acontecimentos históricos a Guilherme, duque de
Septimânio, de Toulouse e de Aquitânia, que, em 793 foi derrotado pelos
sarracenos, em Villedaigne. Em 806, Guilherme retirou-se para o mosteiro de
Gellone onde morreu em odor de santidade (28 de maio de 812). O mosteiro fez
sua apologia e assim foi inspirada a lenda.
5. — Os manuscritos
A
versão assonante do manuscrito de Oxford (quatro mil versos em decassílabos do
início do século XII) é a mais conhecida. Bédier localiza-a entre 1080 e 1134.
Para Gregório, essa versão prender-se-ia ao episódio de Baligant. A de
decassílabos assonantes conservada na biblioteca de São Marcos, em Veneza, está
muito próxima do texto de Oxford (manuscrito IV, fundo francês). Nas versões
rimadas, notamos o manuscrito de Châteauroux; outro grupo compreende textos
semelhantes (manuscrito VII, São Marcos, em Veneza; Biblioteca Nacional de
Lião, Cambridge.
O
Rolando alemão foi escrito por Konrad (Ruolandes liet) conforme o texto de
Oxford; o mesmo se dá com a versão norueguesa redigida em, aproximadamente,
1240, por ordem do rei da Noruega Haakon V (Capítulo VIII da Karlamagnussaga).
Deve-se ainda registrar uma versão galesa (século XIV), dos poemas ingleses,
neerlandeses, latinos (Carmen de prodicione Guenonis), ou os dois poemas de Apt
em língua provençal (estudados por Mario Roques).
6. — O autor
O
último verso do poema de Oxford: Ci falt la geste que Turoldus déclinet fez com
que se procurasse o sentido de “déclinet” que tanto pode significar procurar,
refundir ou recitar. Faral (Les jongleurs en France, 1910) mostrou essa
aristocracia das clérigos menestréis. Turold seria então um “pelotiqueiro
considerado autor”, provavelmente de origem normanda. Na tapeçaria de Bayeux
aparece um Turold que se julgou ser um padre, beneditino de Fécamp, filho do
antigo preceptor de Guilherme, o Conquistador (Génin). Tavernier pensa no bispo
de Bayeux, nascido entre 1055 e 1060.
Para
Boissonnade (1923), esse clérigo pelotiqueiro, de caráter independente e fé
profunda, oriundo de Avranchin, teria sido o companheiro de Roger de Seis ou
Sai; seus nomes são encontrados numa Carta do capítulo Notre-Dame de Tudela.
7. — Origem
Sendo
a teoria das cantilenas destruída por Rajna, a crítica de Bédier parece
tornar-se definitiva. A importância dos santuários situados entre Blaye e
Roscenvales — la Via Tolosana — é confirmada na lenda que envolve a vida
secular de Guilherme. Os louvores religiosos, conservados nos anais de 1124 com
os atos de doação, certamente excitaram ainda mais a imaginação do poeta de
profissão do que a magra informação contida nos anais carolíngios.
É
por essa razão que Mireaux, baseando-se no Guide des Pèlerins (1140) investiga
se o olifante exposto em Saint-Seurin de Bordéus existia antes da canção ou se
foi originado por ela. Boissonnade liga o evento da nossa canção às empreitadas
das cruzadas francesas na Espanha nos séculos XI e XII.
8. — Valor da lenda
As
canções evocam personagens históricos. Para Pauphilet (Romania, LIX, 1933), o
principal personagem continua a ser Carlos Magno. Mas para Mireaux, a obra de
Turold visaria a glória e os desígnios de Henrique Plantageneta tornando sua a
concepção cisterciense da cruzada.
Todavia,
as memórias evocadas pelo autor são as que mais nos interessam. Mário Roques (Romania,
nº 263, julho de 1940), mostrou a preocupação do poeta perante as verdades
materiais e psicológicas. É enfim uma obra de criação poética na qual os temas
tornaram-se imortais.
Essa
lenda simboliza também as guerras efetuadas por Carlos Martel e principalmente
as de Carlos Magno a fim de realizar a unificação do catolicismo; para
agradecê-lo por este fato, o Papa Leão III coroou Carlos Magno imperador, no
dia de Natal no ano 800.
9. — Sucessão literária
Se
A. Fabre (campeão 1941) mostrou que La chanson de Roland era a origem e a base
da Chanson de Sainte-Foy, Le dit de la bande d’Igor é o tema russo em homenagem
aos “príncipes que se bateram pelos cristãos contra os exércitos pagãos”.
O
assunto inspira o romance de Gabien, as Conquestes de Charlemagne de David
Aubert. Mas depois de Spagna, o Morgante de Pulci (1485) dirige Rolando para o
burlesco. O ideal mundano aparece mais desenvolvido no Roland amoureux. Mas
Boiardo falece (1494) deixando sua obra inacabada. Ariosto vê apenas em Rolando
um amante enganado, mas seu Roland furieux (1516-1532) influencia Mairet;
Quinault (1685) compõe com a música de Lully. Vigny, ao escrever Le cor (1825)
pensa na narração de Turpin; Monin (1832) atrai a atenção dos letrados com seu
Roman de Roncevaux, enquanto Francisque Michel estudava o manuscrito de Oxford.
1. — O tema
Carlos
Magno armou cavaleiro aos quatro filhos de Aymon de Dordone: Aalard, Renaud,
Guichard e Richard. Mas Renaud, devido a uma série de derrotas, matou Bertolai,
sobrinho de Carlos Magno. Um antigo rancor gerou entre o imperador e as
fileiras de Renaud; Carlos Magno, para se. vingar da afronta, perseguiu durante
anos os quatro irmãos que provocavam a admiração de seus inimigos. Ei-los ao
lado do rei Yon lutando contra os sarracenos, desde Ardenas até Bordéus. Com o
auxílio de um primo, Maugis, o mágico, capturaram Carlos Magno para libertá-lo
imediatamente. Libertarão seu maravilhoso cavalo Bayard e Renaud parte para
combater na terra santa; essa vida de orgulho e violência termina com a
penitência e a graça.
2. — Textos análogos
Os
problemas de honra e de consciência que se impõem a esses revoltados se
encontram em La chevalerie Ogier no qual o filho de Ogier, o Dinamarquês, foi
morto pelo filho de Carlos Magno; Ogier quer se vingar; se arrependerá e
tornar-se-á frade. Em Raoul de Cambraf, Raoul, deserdado pelo pai, devasta
Vermandois. Seu implacável adversário Ybert de Ribemont, reconhecendo seus
erros, funda, no local onde estão os sete castelos — monumentos do orgulho —
sete mosteiros — testemunhos de penitência.
3. — Manuscritos
O
manuscrito do século XIII, arquivado na Biblioteca Nacional de Paris (nº
24.387, versão de La Vailière), deu origem a duas edições (Michelant, Tübingen,
1862; F, Castets, Montpellier, 1909). Treze outros manuscritos completaram esse
texto chamado La Vailière (manuscritos de Montpellier, de Veneza, estudados por
Pio Rajna, de Cambridge, ns. 766 B. N.). Um poema neerlandês (segunda metade do
século XIII), retoma a trama do manuscrito La Vallière.
4. — Estudos
Paulin
Paris localiza a ação primitiva nas Ardenas. Bédier acentua que a lenda não é
mencionada no Catalogue de 1150, mas que é bastante conhecida no princípio do
século XIII. Longnon estabelece em 1879 um paralelo histórico entre Yon de
Gasconha e o rei de Aquitânia Eudon que guerreou, não contra Carlos Magno mas
contra Carlos Martel. (Revue des questions historiques). Rajna (1884). Léon
Jordan (1908), Castets (1909) considerando a mesma tese, mas Castets, sem
demonstrá-lo, identifica os quatro filhos Aymon aos quatro filhos de Clotário:
Clodoveu, Meroveu, Gondovaldo e Childeberto.
Gaston
Paris atribui esse poema de dezoito mil versos a Huon de. Villeneuve, enquanto
que Bédier estabelece um paralelo com a vida de Santo Agilolfo, que conteria
todo o elemento histórico.
5. — Conclusão
Essa
lenda de situações dramáticas, ternas, trágicas ou burlescas é a epopéia de
vassalos rebeldes que lutam contra seu senhor. Com um fundo maravilhoso e
cômico, cenas pueris e joviais. Les quatre fils Aymon caracterizam essa
literatura feudal acentuada por uma espiritualidade cristã e pagã. A verdade
histórica desaparece perante a verdade psicológica. Mais do que na Canção de
Rolando, temos o retrato da sociedade dos Capetos na qual os vassalos são
freqüentemente insolentes e intrépidos; guardam contudo um certo senso da honra
e essa perseguição implacável dos quatro irmãos, cercada de maravilhoso,
continua a ser uma obra das mais atraentes.
O
personagem do Cid pertence à Espanha. Mas Corneille, prosseguindo com a peça de
Guillen de Castro, imortaliza o herói. Essa lenda cavaleiresca descreve a vida
rude e trabalhosa de um hábil guerreiro; é uma poesia de autenticidade na qual
o sobrenatural, o misticismo e o fanatismo desaparecem.
1. — O personagem histórico
A
Gesta Roderici Campidocti registra o nascimento do Cid em, aproximadamente,
1050; a Crónica del Cid, em 1026. Deve ter nascido em Bivar (a 8 quilômetros de
Burgos), de Diego. Laynez, descendente de Layn Calvo, juiz do condado de
Castilha.
Conforme
outras tradições, Rodrigo é um bastardo e tem três irmãos mais velhos. Guillen
de Castro faz dele um filho natural, Corneille, um filho único.
Guerreia
sob o reinado de Sancho II e depois sob o de Afonso VI que o exilou em 1081.
Rodriguez Diaz bate-se então para outros reis. Requestam-se os serviços do
Campeador (O batalhador).
Ajudando
o rei muçulmano de Saragoça, os soldados lhe deram o nome de Cid, Mio Cid
oriundo do árabe Sidi, senhor. Cumulado de riquezas e honras apoderou-se de
Valença (1094) e lá viveu até 1099 como grande senhor. Depois de sua morte, sua
mulher, Ximena, neta de Afonso V. teve que abandonar Valença (1102).
A
imaginação do povo acrescentou logo uma infinidade de pormenores
extraordinários. Esse vassalo injustamente exilado permanece um motivo ora
respeitável, ora revoltado; chefe de um bando ambicioso, pouco escrupuloso
(conforme Dozy), torna-se um cavalheiro cortês e galante. São-lhe atribuídas
intenções que são de outros tempos e de outros personagens. Mas esse homem
rude, independente, leal, representa bem a Espanha cristã; provocou a
admiração.
2. — Os documentos
O
Museu Real de Armas de Madri conserva uma das espadas do Cid (Tizona); a
catedral de Sala manca retém o ato de 1098 pelo qual o Cid dava todos os seus
bens à catedral de Valença; bem como os de Ximena (1101). Burgos tem em seu
poder o contrato de casamento entre Cid e Ximena e os. dois cofres que o Cid
teria entregue aos judeus. Os restos mortais do herói e de sua mulher descansam
em San Pedro de Cardena. Em 1272, Afonso X mandou erguer, em sua homenagem, um
ataúde de pedra.
3. — Fontes literárias
a)
Historia Roderici Didaci Campi docti, crônica latina (antes de 1238),
descoberta em 1742 pelo P. Risco, traduzida por Saint-Albin (Paris, 1866).
Só
nos restam trinta e duas estrofes desse poema;
b)
Crônica rimada, descoberta em 1844 por Enjemio de Ochoa, publicada por
Francisque Michel e Ferdinand Wolf — Tradução de Damas-Hinard em 1858. E a
juventude do Cid feudal. A narração inicia-se com a querela entre o Conde de
Gormaz e Diégo Lainez;
c)
Le Romancero é a obra mais considerável. Foi impressa em Saragoça em 1550;
d)
A crônica do Cid, quarto livro da Crónica general, teria sido composta pelo
próprio Afonso X e refundida no século XV; e) La crónica del famoso Caballero
Cid Ruy Diaz Campeador, em prosa, publicada em 1512 por Juan de Veloredo, em
1845 por Huberto, em Marburgo e em 1853, em Stuttgart;
f)
O poema do Cid (Gesta del mio Cid), publicado em 1779 por Sanchez, reeditado em
1858 por Damas-Hinard e depois por Saint-Albin. Talvez escrito por um
prestidigitador de Madenaceli em, aproximadamente, 1140; esse admirável poema
encena um Cid mais apaixonado pelas guerras do que pelo amor. A influência da
Canção de Rolando nela é indiscutível, mas os episódios sobrenaturais são
apenas quatro, sendo um a visita, do Anjo Gabriel e o outro a de São Lázaro.
Essa
grande lenda épica espanhola não precisa pois do maravilhoso;
g)
Documentos árabes. Dozy (1881) encontrou o manuscrito árabe de Ibn Bassam
(Dzakhira, terceiro volume, primeira parte), escrito em Sevilha em 1109 dez
anos depois da morte do Cid lbn-al-Cardebus et Ibn-al-Abar falaram também do
Cid.
4. — Sucessão literária
O
amor Ximena-Cid não é tratado. Essa invenção arbitrária nasceu nos romanceros,
os quais dizem que Ximena amou Rodrigo depois da morte de seu pai. Francisco
Santos no Cid ressuscitado faz com que o Cid ressuscite bastante descontente
com as fábulas que lhe são atribuídas.
a)
Guillen de Castro — No século XVII, este autor forneceu o conflito dramático da
morte do conde. Las mocedades del Cid (Juventude do Cid), composto em 1618, foi
editado em 1621; é um drama fértil em espetáculos nos quais o amor luta com o
dever durante três anos. A segunda parte de Las mocedades narra as proezas do
Cid e a ação só é iniciada vários anos depois do casamento do Cid com Ximena.
Esta
peça edificante exalta o espírito da caridade; é uma arma contra a Reforma;
b)
Corneille — Corneille retoma esse texto (dezembro de 1636) inspirando-se também
em dois antigos romances espanhóis. A lei imperiosa da unidade de tempo aboliu
esse período de três anos; Corneille, reagindo contra a apresentação dos
mistérios, suprime as cenas religiosas mas exalta o ideal de cavalaria. É
criticado pelo casamento dessa moça com o assassino de seu pai, mas na Espanha,
o rei dispunha, como queria, da mão de uma órfã.
“La
querelle du Cid”, erguida por Richelieu, tem motivos políticos (apologias do
duelo e de um herói espanhol justamente quando os éditos de 1634 proíbem esses
combates e que a França está em guerra com Madri). E nada mais do que uma
rivalidade literária, o orgulho de Corneille feriu a suscetibilidade de seus
rivais;
c)
Diamante — La Harpe e Voltaire pretenderam sem razão que o Cid de Diamante era
anterior ao de Castro. Le vengeur de son père data de 1659 e é uma tradução de
Corneille;
d)
Les tragédies — Desfontaines (Le mariage du Cid, 1635), Chevreu (La vraie suite
du Cid), Timothée Chillac (La mort du Cid ou L’ombre du comte de Górmaz, 1639),
Pierre Lebrun (Le Cid d’Andalousie, 1825), de Casimir Delavigne (La fille du
Cid, 1840) não trouxeram nenhum elemento novo.
Abel
Hugo traduziu o Romancero (1822) e Victor Hugo lembra-se de Rodrigo em La
bataille perdue (Les Orientales), Bivar, Le Cid exilé, Le Romancero du Cid (La
légende des siècles);
Em
1882, Zorilla compõe uma abundante paráfrase do romancero (La légende du Cid).
Massenet escreve sua música segundo o livreto de Gallet, d’Ennery e Blau.
Leconte de Lisle inspira-se em Rodrigo nos seus Poèmes barbares (1862), bem
como José-Maria de Herédia (Revue des Deux Mondes, 1885).
Alexandre
Arnoux publicou uma excelente Légende du Cid Campeador (Piazza, 1923) e Georges
Fourest traduziu o lamento de Ximena em La négresse blonde (Vanier-1909):
Dieu!
Qu’il est joli garçon l’assassin de papa!(3)
Qu’il est joli garçon l’assassin de papa!(3)
5. — Conclusão
Esse
canto triunfal, único texto épico de uma tradição espanhola foi, desde o
princípio, influencia.
do
pelo espirito francês que se irradiou então sobre toda a Europa. Poema de
propaganda, o autor baseou-se em documentos humanos. Debaixo de sua boa cota de
malha, o Cid combateu para ganhar a sua vida. Mas esse personagem bem espanhol
veio até nós, não tanto pela sua coragem que se assemelha à de Rolando, mas por
um fato imaginado por Guillen de Castro: a luta entre o dever e o amor.
Corneille, pela sua concisão, pelo vigor de seus versos cintilantes e imortais,
forjou sua duradoura personalidade.
O
ciclo arturiano, apresenta-se como um conjunto vasto e fértil que prossegue os
Romances corteses. E também denominado Matéria da Bretanha. A figura central
continua a ser a de Artur, rei lendário de origem céltica; pretendeu-se ver
nesse rei o mantenedor da luta contra os saxônios e que, para salvaguardar sua
ilha, deixou-se matar em 542; esse rei liberal teria nascido em Tintagel, na
Cornualha.
Artur
— ou Artus — triunfa com suas armas maravilhosas, mas também pela amizade do
mágico Merlin que é considerado algumas vezes como sendo um personagem real.
A
rainha Guenièvre, filha do rei Léodagan, figura ideal da dama da corte, toma
emprestado alguns traços a Isolda, outro personagem do ciclo. Guenièvre reina
sobre os seus cavaleiros que se reúnem em volta da Távola Redonda; o casal real
comanda empresas nobres e temerárias; o “geis” que é ao mesmo tempo um pedido
piedoso e uma injunção de defesa, cria um obstáculo que é a base de perigosas
aventuras. A fim de levar a bom termo a conquista de objetos-talismã e de taças
com virtudes mágicas que embelezarão os tesouros do rei, as fadas ajudam os
cavaleiros. Esses combates sobre naturais, esses próprios objetos, vêm de uma
tradição pagã muito divulgada.
Quando
o poderoso Artur vai penetrar em Roma, a revolta de seu sobrinho Mordret — que
talvez seja também filho do adultério e do incesto entre Artur e a esposa do
rei Loth — obriga-o a reconquistar seu reinado. Nessa campanha sangrenta, seus
leais servidores morrem. Os saxônios aproveitam-se do sucedido para invadir o
país e, no último episódio da carnificina, Artur e Mordret se ferem de morte.
É
a ruína da cavalaria bretã, mas a sua esperança sobrevive. Artur teria sido
levado vivo para o reino das fadas e um dia voltaria para restituir ao seu povo
a independência e o poderio.
O
ciclo arturiano contém a extraordinária Demanda do Santo Graal que se inicia
com um romance de cavalaria e termina como uma narrativa mística.
Essas
demandas permitiram a cada narrador de compor uma narrativa de acordo com seu
temperamento; os episódios de combate se alternam com cenas sentimentais; atos
de bravura sucedem às imagens voluptuosas e ordens breves de estratégia
guerreira, às palestras galantes. Os progressos sucessivos afastam pouco a
pouco o tema da deixa primitiva e depois os romances em prosa efetuam a fusão
entre as lendas arturianas e as narrativas do Graal.
Essa
mitologia céltica ter-se-ia formado por ocasião da invasão saxônia (450-510) e
ter-se-ia enriquecido posteriormente com a inspiração vinda do continente. A
história Britonum, atribuída a Nênio, foi retomada no século XII na História
Regum Brittaniac de Geoffroi de Monmouth (1137). Wace menciona a Távola Redonda
no seu Roman de Brut. A origem é talvez gaulesa a partir de Kuchwch e 0lwen ou
irlandesa como diz Jean Marx baseado no texto dos Mafinogion.
Chrétien
de Troyes nos legou esse conjunto extraordinário e sobrenatural. Hábil
narrador, aproveitou a tendência do povo pelo fabuloso e criou romances de
aventuras e de episódios palpitantes. Ao descrever Lancelote à procura da,
rainha (Le chevalier à la charrette), imaginou um herói que tendo merecido o
amor de sua amante arrisca-se a adormecer numa vida ociosa. Mas Yvain (ou Le
chevalier au lion), voltará ao manejo das armas. Erec, o “cavaleiro do falcão”,
depois das censuras de sua dama Enide, encontra novamente sua força.
Não
podendo citar todos os trabalhos relativos a esse ciclo (remetemos o leitor à
Histoire littéraire de la France, t. XXX e XXXI, de Gaston Paris e aos Romans
de la Table Ronde, de Paulin Paris), observaremos que o assunto continua a ser
o de um jovem cavaleiro desconhecido que, da corte de Artur, levará a bom termo
uma aventura tida como impraticável; graças às suas qualidades, desposa a jovem
que se acha envolvida e que lhe dá, como dote, um reinado.
Todas
essas lendas comportam elementos míticos, pagãos, druídicos nos quais se
envertará uma concepção mística cristã. Histórias humanas mescladas de história
sagrada, conjunto que forma a tragédia da fraqueza humana cobiçando os poderes
do espírito (o Graal). Este tema se assemelha ao de Fausto; Lancelote ficou
sendo o valete de nossas cartas e o uso da torta de reis veio até nós.
Estudaremos sucessivamente: A demanda do Santo Graal, Merlin, Tristão e Isolda.
1. — Generalidades
Para
a Idade Média, o Graal é a taça de que se serviu Jesus durante a Ceia. Nela,
José de Arimatéia colheu o sangue do Senhor ferido pelo centurião romano
Longin. Os genoveses expuseram em 1101, depois da tomada de Cesaméia, um prato
de vidro, venerado pelo nome de “Sacro-Catino”. Prato ou vaso, objeto radiante
em ouro ou em cristal, o graal tanto pode ser essa esmeralda celeste ou o livro
sagrado tal como o evangelho perdido de São João.
Esses
objetos mágicos evocam os dos contos de Mil e uma noites mas no embaralhamento
desses temas, a descrição da cena do cortejo continua primordial. Estudaremos
antes de tudo a evolução do ciclo.
2.- Os temas
a)
Chrétien de Troyes, Parsifal — Chrétien de Troyes, natural de Champanha, teve
que compor Perceval ou le conte du Graal a pedido de Filipe da Alsácia, conde
da Flandres, noivo da protetora do poeta: Marie de Champanha.
Não
sabemos onde Chrétien tirou os seus dados; o texto teria sido escrito entre
1180-1183; Wilmotte diz que foi antes do 14 de maio de 1181. Eis o assunto:
Parsifal
é criado por sua mãe num domínio solitário Depois de uma aprendizagem bastante
rudimentar, recebe a ordem de cavaleiro e liberta Branca Flor então sitiada. É
recebido no castelo mistérioso, pelo rei-pecador paralisado por uma lançada na
coxa. Espectador ingênuo assiste ao desenrolar de uma estranha cerimônia: o
anfitrião entrega-lhe uma espada. Um mordomo leva-lhe uma lança toda branca
cuja ponta está embebida de sangue; mais longe, uma jovem carrega o graal
(cálice) de ouro muito puro, guarnecido de pedras preciosas e que difunde uma
claridade sobrenatural; depois outra jovem carrega um prato de prata. Parsifal
estupefacto cala-se; no dia seguinte, afasta-se do castelo deserto. Uma jovem
ter-lhe-ia revelado que devia perguntar sobre a significação da cena; com suas
palavras libertadoras teria curado o rei enfermo e o encantamento da região
adormecida e estéril teria cessado; Parsifal recusa então dormir duas noites
seguidas debaixo do mesmo teto. Durante cinco anos realiza as mais perigosas aventuras;
esses episódios fabulosos dependem do fantástico e são de uma iniciação ritual
cujo verdadeiro sentido nos escapa. Um eremita — seu tio — aconselha-lhe então
a caridade, a humanidade e lhe transmite uma oração secreta que lhe permitirá,
talvez, encontrar o graal.
Assim
termina o romance de Chrétien, de dez mil e sessenta e um versos
octossilábicos. Entre os prosseguidores a parte “pseudo-Wauchier” se estende
até o verso 21.916 (edição Potvin) e se ocupa de Gauvain. Wauchier de Denain —
ou um autor anônimo — trata das propriedades da espada entregue a Parsifal
(verso 34.934) e faz da lança uma relíquia divina. Manessier, em 1225, a pedido
de Jeanne de Flandre, termina essa obra: Parsifal torna-se o guardião do Graal
(versos 34.934 a 45.379). Muitos outros poetas participam com a sua
contribuição pessoal, tais como Gerbert de Montreuil que compôs dezessete mil
versos insuficientes para que Parsifal pudesse recolher a sucessão do
rei-pecador. Ferdinand Lot analisou essas obras (Romania, I. VII, 1931).
Obra
enigmática com Chrétien, o tema — assume uma significação mística e religiosa.
O graal — que não era o Graal — não era nem uma relíquia santa, nem um tacho de
abundância; nenhum capelão assiste ao desfile da lança que sangra. O tema goza
rapidamente de um êxito prodigioso e inspira outros poetas.
b)
Wolfram d’Eschenbach et Guiot — Wolfram d’Eschenbach compõe Parzival entre 1200
e 1210. Diz ele: “Mestre Chrétien de Troyes contou essa história, alterando-a e
Kyot que nos transmitiu o conto verdadeiro irrita-se e com razão. O
Provençal...” Discutiu-se muito sobre a existência desse poeta Guiot ou Kyot.
Para Schreiber e San Marte trata-se de Guiot de Provins, o acre satírico da
Bíblia. Wilmotte pensa no autor de um Miracle de la Vierge (Milagre da Virgem)
entre 1150-1180. Será que Guiot precede Chrétien? A questão permanece sem
solução. Com Wolfran o cerimonial do desfile se complica, lembrando-nos a
coreografia de um ballet. O Graal é então uma pedra santificante dada por Deus
a Adão (era a esmeralda frontal de Lúcifer). Seth, terceiro filho de Adão,
obteve licença para entrar no Paraíso a fim de retomar a pedra. Lá ficou
quarenta anos — número da expiação — e esse cálice será entregue por Pôncio
Pilatos a José de Arimatéia que nele recolheu o Sangue Divino; depois de
quarenta anos de prisão e depois de Vespasiano haver destruído Jerusalém, José,
acompanhado por sua irmã Enigéia e de seu cunhado Bron, se estabeleceu na
Grã-Bretanha, no país de Hofelise onde constrói o castelo Aventureux; a cidade
de Corbenic se estendeu em volta. Pela linhagem de seu sobrinho Josafá, será
concebido Galaad.
A
ordem misteriosa dos Templeisen é encarregada de guardar essa pedra; Parsifal
sucederá a seu tio Anfortas. Le nouveau Titurel — poema de seis mil duzentas e
sete estrofes — atribuído a Albreht de Scharpfenberc (por volta de 1280),
adapta para o alemão a história de Merlin conforme Robert de Boron. A base
mística do conto se desenvolve; Montsalvage, lugar santo, seria Montségur na
França ou Montserrat na Espanha.
c)
Robert de Boron — O Saint-Graal ou Joseph d’Arimathie é uma narrativa curta, de
três mil quinhentos e catorze versos e baseada em narrativas apócrifas. — A
lenda de José alcançou grande celebridade em Lorraine. Depois do verso 2.357 o
autor dá livre curso à sua fantasia. Esse romance que recebeu a influência das
abadias de Fécamp e de Glastonbury e por meio delas, de Gautier Map, foi
composto entre 1212-1214 (F. Lot, Romania, 1931; Hoepffner, Lumière du Graal,
1951). Eugene Hucher (1875), Suchier (1892) procuraram a origem de Robert de
Boron; de anglo-normando passou-se a considerá-lo atualmente franco-condado.
O
grande mérito de Boron é haver transformado a lenda fazendo do Graal um símbolo
da divina graça a qual aspira a alma humana. A tendência é ascética e corresponde
ao ideal monástico cisterciense.
Parsifal
em prosa também é atribuído a esse poeta e é conhecido por Didot-Parsifal.
d)
Gautier Map. A demanda do Santo Graal — La queste del Saint-Graal, atribuída d
Gautier Map, teria sido composta entre 1225-1230. Os estudos de Pauphilet
(Étude sur la queste, Champion, 1921) de Etienne Gilson (Romania, L. I. 1925;
Vrin, 1932) iam provar a influência cisterciense, a doutrina mística de São
Bernardo e estabelecer uma relação com Robert de Boron. Parsifal é substituído
pelo cavaleiro casto Galaad, messias arturiano. O Graal torna-se o símbolo de
Deus. Neste “evangelho aventuroso” (Pauphilet), a exploração terrestre termina
com a descoberta de uma revelação planetária. Obra espiritual, é a história de
uma alma à procura de Deus. Esse conhecimento, com suas divulgações habilmente
graduadas, conduz à humildade, à contemplação e à compreensão. A suprema
beatitude, o êxtase levam Galaad para o céu. A Demanda que se ergue
veementemente contra o assassínio, as festas cavaleirescas e os torneios,
transformou o cortejo tradicional num ofício religioso; o Santo Graal se
desloca pela força invisível de Deus e a missa celebrada em Corbenye é dita por
Josephes, o primeiro bispo.
Gauvin
é a imagem do mau cavaleiro. É assim que o Lancelot en prose (Lancelote em
prosa) imporá duras provas a este cavaleiro falho de fé; o mesmo se dá com
Bohort.
Lancelote,
considerado como o melhor dos cavaleiros, não pode tampouco triunfar. Suas
aventuras galantes, seu amor sacrílego pela rainha tornam-no indigno dessa
conquista bem sucedida pelo seu filho Galaad, descendente de José de Arimatéia
por sua mãe. Esse puro entre os puros termina essa busca do infinito.
Aí
está a busca da perfeição terrestre onde os desejos humanos são satisfeitos:
e)
Perlesvaus — Perlesvaux, atribuído a Manessier (1225-1230) conta a aventura de
Parsifal conforme o poema de Chrétien. Sob a influência dos monges de Cluny —
esta obra — de menos valor do que a Queste — interpreta pela primeira vez a
mística do sangue divino: o sangue da lança escorre dentro do Santo Graal.
Enfim o silêncio do neófito é explicado aqui pelo seu êxtase no momento da
passagem dos objetos sagrados.
3. — Sucessão literária
O
ciclo bretão é novamente trazido à moda no século XVIII pelo conde de Tressan.
O entusiasmo romântico dele se apodera; Wagner o difunde com suas preocupações
metafísicas. Paulin Paris decifra os textos; Gast on Paris os confronta. Oscar
Summer estabelece uma notável compilação: La vulgate Lancelot (Washington,
1909); Douglas Bruce estabelece a bibliografia (The evolution of Arthurian
Romance, Baltimore, 1923), completada pelos cuidados da Sociedade internacional
arturiana que reside em Paris. As grandes universidades americanas publicam
interessantes trabalhos.
Georges
Burectud (Lumière du Graal, 1951) estabelece um paralelo entre D. Quixote e o
tema do cavaleiro santo, mas sua comparação entre o Graal e a Divina Garrafa do
Pantagruel de Rabelais me parece mais engenhosa. O segredo supremo do “Vin de
Verité” (Vinho da verdade) assemelha-se ao sangue universal; a Santa Fonte que
corre conforme a curva de uma espiral logarítmica (movimento da vida que se
enrosca), fornece o vinho desejado e mergulha o conviva num delírio báquico
próximo ao arrebatamento.
Georges
Bureaud descobre ainda esse tema em Milosz nos seus poemas dogmáticos e
metafísicos do Sangue universal (Ars Magna, Arcanes); e na obra de Péladan,
Léon Bloy, Péguy o no Château d’Argol de Julien Gracq.
4. — Origem
A
origem da lenda tem muitas controvérsias. A Matéria da Bretanha é para uns
insular (Gaston Paris, Histoire Littéraire de la France, t. XXX). Os celtistas
alemães refutam a transmissão dos temas arturianos por via anglo-normanda e
Zimmer se pronuncia a favor de uma origem armórica e não galesa. Esse sistema é
prosseguido por Foerster e Brugger, contestado por. F. Lot (Romania, XXIV,
XXVIII) e por Loth (Kritischer Jahrest bericht, I, 271). Vendryes encontra nesses temas uma sobrevivência da
literatura céltica (Cahiers do Sud); Max Gilbert e principalmente Jean Marx (La
légende arthurienne), mostram que a contribuição da Bretanha armórica foi muito
pobre mas que a literatura galesa introduziu temas admiráveis. Jean Marx
escreveu: “Essa lenda arturiana de origem pagã e profana ia, de início, sob
influências certamente inglesas (Glastonbury), e em seguida francesas
(Clairvaux) tomar uma tonalidade cada vez mais cristã.”
Blochet
(Les sources orientales de la Divine Comédie (1901) (As fontes orientais da
Divina Comédia), mostrava a civilização preponderante da Irlanda que conhecia Bizâncio
por intermédio das repúblicas italianas.
Todavia,
outros pontos permanecem litigiosos: as relações entre as obras, a data em que
foram feitas, o autor. Apesar do minucioso estudo dos dezesseis manuscritos
conservados sobre o Graal, essas questões parecem insolúveis.
5. — Interpretações
Apesar
de Jean Blondel haver escrito: “Li conte de Brétaigne sont si vain et
plaisant”, parece que esses mitos exprimem verdades veladas assimiláveis pelo
iniciado. Sentimos, na obra literária, surdirem outras interpretações.
a)
Interpretações astrológicas e naturistas — Wolfram preocupava-se com a
astrologia. Ora, o nome de Artur seria oriundo de Arthos, isto é, “ours” (Ursa)
no simbolismo astrológico da constelação polar. Esse palácio astrológico
torna-se o centro do mundo e Guénon (Le roi du monde, 1927), imagina os doze
signos zodíacos que gravitam em torno do sol como os doze cavaleiros que
rodeiam Artur. Saint-Yves evoca a zona zodíaca; nela Lotus Péralté encontra os
princípios druídicos de Crom-Lek. Loomis, diante das esculturas da catedral de
Modena, evoca também a teoria solar.
Miss
Jessy L. Weston (Cambridge, 1920) insiste sobre o aspecto ritualista e liga ao
vegetal uma interpretação pelos órgãos genitais. Observou que os ferimentos
atingem as partes viris do rei.
b)
interpretações tiradas de fontes orientais — Georges Dottin aponta na
literatura irlandesa, motivos tirados da literatura grega e na sucessão das
provas aproxima-se das narrativas hindus. Hannah Closs (Lumière du Graal) pensa
na lenda de Bagavata Purana. Baseando-se no edifício circular e irradiante que
é o Templo do Graal, pensamos na arquitetura dos templários idêntica à das
igrejas armênias e à dos templos iranianos.
Otto
Rahn localiza o castelo Aventureux em Montségur — outros em Glastonbury — e
Hannah Closs, pela descoberta de cerâmicas que aí se fez, pensa no maniqueísmo.
Guénon, (Le roi du monde) estabelece relação entre o Sangue Divino — beberagem
da imortalidade — e o Soma dos hindus ou o Haoma dos persas; depois compara a
esmeralda caída da fronte de Lúcifer — que tornou-se a taça — a Urna, pérola
frontal e terceiro olho de Civa.
Chrétien
menciona o gavião, representação oculta da consciência; ora, o gavião simboliza
o grande Horo egípcio.
Finalmente,
como na fábula antiga, os animais exprimem as paixões dos homens, e a cada animal
liga-se um simbolismo.
c)
Interpretação religiosa — Essa obra mística tornou-se finalmente a glorificação
do sacramento eucarístico. Os evangelhos apócrifos vindos de Bizâncio — e
principalmente o Apocalipse, apontam esse tema (observemos os algarismos rituais
3, 7, 12 e a cor branca). O homem se liberta da fatalidade antiga e prostra-se
diante do mistério da redenção. Chrétien considera os acontecimentos históricos
(transporte da galheta com o Santo-Sangue a Bruges por Thierry d’Alsace;
descoberta da Santa-Lança em Antioquia.); a carne se submete à alma e a alma,
ao espírito. O herói da Queste — primeiro livro filosófico — seria a
representação mística do Cristo. Mas Jean Marx (La légende arthurierine) mostra
que a igreja não adotou a aventura do Graal que continua sendo obra de um
sacristão inspirado pela doutrina espiritual de São Bernardo. Se a Igreja se
houvesse apoderado dessa lenda, os textos teriam sido conservados nos
mosteiros; mas guardados nas bibliotecas dos nobres, perderam-se em parte. A Igreja,
lembrando-se dessa origem pagã, não lhe deu muito lugar na representação
artística. Otto Rahn (Croisade contre le Graal (Cruzada contra o Graal), Stock
conclui que foi contra o Graal que se mobilizou a cruz por ocasião da cruzada
albigense.
Lotus
Péralté (L’ésotérisme de Parsifal (O esoterismo de Parsifal, Perrin, 1914), diz
que o princípio druídico é visível na Queste. Todavia, ignora-se quase tudo
sobre as grandes comunidades visitadas por São Patrício no século IV, ficando o
país de Gales ao abrigo das influências estrangeiras. O prolongamento do
druidismo foi encontrado no século XII na igreja culdeana e seu ensinamento é
básico na instituição da igreja de Roma.
d)
Interpretação esotérica
1)
Generalidades — Valores esotéricos e iniciáticos podem se sobrepor ao sentido
exterior. René Guenon (Esotérisme du Graal (Esoterismo do Graal) observa que
esse simbolismo é disfarçado e que as dúvidas, as contradições aparentes têm
talvez por objetivo desviar a atenção dos profanos. Teriam sido os autores
iniciados? Não saberíamos responder; mas a organização iniciática presente —
druídica e depois cristã — não quis que a lenda se tornasse um ritual de
iniciação ou de vulgarização. A perda do Graal parece ser o obscurecimento do
centro espiritual secundário e a iniciação deve fazer com que seja encontrado.
Victor-Emile
Michelet: Les secrets de la chevalerie (Os segredos da cavalaria, Bosse, 1928),
busca o simbolismo na forma da Távola redonda com os druidas, quadrada com José
de Arimatéia, o arcano subsiste para a da Ceia que Leonardo da Vinci
representou sob a forma de um retângulo oblongo. Percebe-se um significado
nesses símbolos e pensa-se em Gauvain que leva o pentáculo do Tarot. A cor
preta na indumentária de certos cavaleiros isenta-os de uma influência malsã; é
o pentáculo mágico. A Igreja esotérica revela dessa forma um dos aspectos da
sua face interior, o esoterismo. Esses caracteres encontram-se em Dante e no
Romance da rosa.
2)
0 centro supremo — Para Guénon (Le roi du monde (O rei do mundo, 1927), Graal
quer dizer ao mesmo tempo vaso (grasale) e livro (gradale ou graduale);
Monsalvat — o monte da Salvação — ilha sagrada ou montanha polar, terra da
imortalidade que se identifica com o Paraíso Terrestre. A lança torna-se o eixo
do mundo e o sangue que dela provém é o orvalho que se emana da Árvore da Vida.
Artur é raptado em Avallon, ilha hiperbórea, sede da realeza e da dinastia dos
padres Jean; esse Paraíso Terrestre é ainda, simbolicamente, designado pela
Índia.
Julius
Evola diz que o país do Graal não é a Inglaterra mas sim o centro nórdico
primordial, Thulé. Evola pensa também na ordem dos Templários, cujos últimos
representantes, os Rosa-Cruz, conservam o mito da citadela solar.
Guénon
imagina a representação do centro do mundo no princípio central de Omphalos e
que é também o centro de uma roda. Sua representação material continua a ser a
pedra sagrada — o menir — para os celtas — morada da Divindade. A Irlanda
fornece grande número de dados relativos a Omphalos. Guénon, observa, enfim, a
equivalência simbólica existente entre o crescente, o navio e a taça; eis
porque o Graal é designado pelo nome de Santo Vaso.
3)
0 poder oculto do sangue — Chrétien teria pretendido traduzir exotericamente
uma lenda esotérica na qual o sangue continua a ser um poder oculto excelente
pela sua figuração misteriosa. Base de todo o princípio vital é o arcano da
profecia, da evocação, dos batismos em certos mistérios. Marca a descendência
hereditária e pelo seu princípio racial a desigualdade no casamento, o
adultério, são punidos com a morte. Essa pureza de sangue é a virtude do
indivíduo, do clã, da nação, da raça.
Para
Chrétien, o sangue sublinha a alvura do cisne moribundo, esse cisne, símbolo da
pureza, que está no limiar da primeira iniciação. O sangue está ainda presente
no ferimento do rei pecador: leva em si todos os desejos violentos da carne. O
problema do sangue, licor solar, força impulsiva, vontade cósmica foi
mencionado por Théophile Briant (Le Goéland, dez. 1953). Mas talvez seja também
a sede da alma. A presença do arcano nas cerimônias religiosas é a base dessa
demanda do Graal que continua válida para todos nós. 4) 0 rito da iniciação —
Elie Lebasquais (Études traditionnelles, 1939), é de opinião que A demanda do
Santo Graal, Fausto, Rolando, são rituais de iniciação da mesma categoria que O
Pequeno Polegar. O herói, para chegar ao estado superior, busca um personagem,
um tesouro ou um objeto mágico. No simbolismo de Hiram, três mestres procuram
os restos do Grande Arquiteto. Esses ritos proviriam “de tradições antigas, de
formas tradicionais desaparecidas, conservadas pela memória coletiva mais ou
menos subconsciente do povo” (Guenon). Essa iniciação visaria aqui a conquista
de estados sobre-humanos.
5)
A alquimia e a cavalaria — Na linguagem secreta a pedra filosofal representa a
salvação; o ouro nada mais é do que o hieróglifo da espiritualidade e das
forças psíquicas de Deus. A demanda é então uma busca semelhante à dos
alquimistas que eram filósofos herméticos; citemos Alberto, o Grande, Roger
Bacon, São Tomás de Aquino, Nicolas Flamel.
O
arcano é a base da ordem da cavalaria — que deu origem ao companheirismo
operário — e à arte heráldica. “O brasão é a chave da história da França”, diz
Gérard de Nerval. Nessa cavalaria histórica, os Templários foram os guardiães
do Baphomet; os cavaleiros errantes eram atacados pelos dragões, símbolos do
guarda da entrada, ou pelo leão animal solar, alegoria da paixão interior. O
alquimismo é a conseqüência final dessa cavalaria mágica e essa viagem de
aventuras de uma epopéia religiosa e científica é a mesma que a da Demanda do
Santo Graal.
Personagem
lendário, Merlin — em céltico Myrddhin, em armoricano Marzin — foi poeta,
profeta e mágico. Companheiro do rei Artur, estabeleceu a Távola redonda e seu
nome fica ligado à demanda do Santo Graal.
1. — Textos literários
a)
A crônica latina — Na Crônica latina, atribuída a Mônio (fim do século X),
vê-se o rei bretão Wortingem abandonado pelos seus devido à sua crueldade.
Desejoso de uma fortaleza que não pudesse ser tomada, os mágicos aconselham-no
a regar o solo com o sangue de uma criança nascida sem pai. Merlin — nomeado
Ambrósio — confunde o rei com suas respostas proféticas e salva assim a sua
vida.
b)
Geoffroy de Monmouth — Em aproximadamente 1135 Geoffroy de Monmouth dá um
caráter cavaleiresco, cortês e histórico à lenda de Mênio. A pedido de
Alexandre, bispo de Lincoln, redige as Profecias (Atribuídas a Merlin) e depois
a Vita Merlini.
c)
Robert de Boron — Esse autor inclui o nome de Merlin à lenda do Graal. Sua
trilogia comporta um poema sobre Merlin que institui a Ordem da Távola redonda
(Brut de Wace mencionava a Távola redonda em 1155). Merlin é o herói de uma
epopéia espiritual.
d)
Os continuadores — O simbolismo desaparece e a profecia torna-se um meio
literário. Merlin aparece em numerosos romances (Claris et Loris). O Ariosto,
Cervantes (Don Quixote, II, 21), Rabelais, Shakespeare (O rei Lear, III, 11),
observam esse personagem que inspirou Gluck (A ilha de Merlin, Viena, 1758).
Para K. L. Immermann (Merlin, 1832) é um Fausto cristão; Heine por ele se
interessa (1835) bem como Tennyson (Vivien, 1859, 0 Santo Graal, 1870), e Edgar
Quinet (Merlin l’enchanteur, 1860). Apollinaire escreveu L’enchanteur
pourrissant (1909), Cocteau, Les chevaliers de la Table ronde e Aragon
Brocêliande (Cahiers du Rhône, 1942). Contudo, a lenda de Merlin parece estar a
caminho da extinção.
e)
As críticas — Depois dos estudos de Bâle (1559), Buchanan (1590), David Powel
(1603), é preciso esperar a de Walter Scott (1638) para tocar realmente o
assunto (The Ministrelsy). Francisque Michel e Thomas Wright (1837), tentaram
uma síntese crítica. Depois de Saint-Aignan (1921), de Eschevannés (1935), Paul
Zumthor apresentou, em 1943, uma tese à Universidade de Genebra com uma
bibliografia muito completa.
2. — Símbolo da lenda
a)
Origem de Merlin — O nascimento desse Proteu da Idade Média é muito obscuro. De
acordo com Robert Boron, o diabo seduziu uma virgem; Merlin, com sua palavra
eloqüente faz com que sua mãe, tornada responsável por esse estranho
nascimento, seja absolvida. Eis a lenda de Ambrósio cujo tema é o de Robert de
diable.
Para
La Villemarqué a mãe de Merlin teria sido uma princesa que, penetrando num
bosque atraída pelo canto de um pássaro, adormeceu e a criança que nascerá de
modo tão sobrenatural e poético, falará imediatamente. Supõe-se também que seja
um personagem real, um burdo galês ou da Cornualha do século VI; ou um deus
gaulês, parente de Mercúrio, Merddyn cujo nome vem da raiz Mercs encontrada em
Mercúrio.
b)
A ação de Merlin — Mestre do Heptacórdio formulou as regras que regiam os
cavaleiros da Távola redonda; dirige as batalhas e sua harpa encanta os poderes
hostis; comanda os demônios, encanta as fadas.
O
episódio mais dramático continua a ser o do seu amor por Viviana.
Todo-poderoso, deseja que essa mulher o procure livremente; mas o temor de
Viviana torna-se odioso. Merlin transformou-se no profeta vencido pelo amor e o
encantamento feminino.
c)
Evolução do personagem — Profeta, Merlin não é o mestre de uma alquimia
misteriosa; torna-se a seguir o fascinador. O papel de Merlin ao lado dos
cavaleiros arturianos permanece, entretanto, episódico. Seu simbolismo
corresponde às nossas exigências pessoais e finalmente nada mais é do que uma
significação poética.
Esse
par imortal influenciou inúmeros episódios do ciclo arturiano. É a epopéia do
amor que se prolonga além da morte.
1. — O tema
Tristão
de Loonois é criado por seu tio Marc, rei da Cornualha. Ferido pela espada
envenenada do Morhout da Irlanda, a quem mata, Tristão se faz tratar pela irmã
do monstro, a rainha da Irlanda, cuja filha é Isolda. Mais tarde, em nome de
seu tio, Tristão pede a mão de Isolda e dessa forma reconcilia os dois países
inimigos. Porém, durante a travessia, os dois jovens bebem um filtro de amor.
Unidos pela paixão, traídos pelos que os circundavam, banidos por Marc, os dois
amantes vivem na floresta de Morois; o rei perdoa-os; Tristão deixa Cornualha e
esposa uma segunda Isolda. Ferido, pede à sua loura amiga para tratá-lo: um véu
branco anunciará sua chegada, um véu preto sua recusa. A segunda Isolda, por
ciúmes anuncia um véu preto. Tristão morre. Isolda chega e sucumbe ao lado do
seu amante. O rei Marc, conhecendo a causa de sua paixão, perdoa e honra a sua
memória. A loucura de Tristão é um episódio desse tema e a síntese do romance.
Tristão, disfarçado em louco, quer rever Isolda. As alusões feitas aos seus
amores são ousadas e formam um resumo assaz rico da lenda; a evocação de suas
aventuras é a parte essencial do poema.
2. — As fontes
Os
romances de Chrétien de Troyes e de La Chèvre não chegaram até nós. O texto de
Béroul (1165-1170) conserva quatro mil, quatrocentos e oitenta e cinco versos
(publicados por Muret, 1904 — manuscrito de Beme); o manuscrito do
anglo-normando Thomas tem só três mil, cento e quarenta e quatro versos (dos
dezenove mil) (publicados por. J. Bédier, 1903 e 1905; manuscrito de Oxford).
A
loucura de Tristão (manuscrito de Oxford) acompanha de muito perto o poema de
Thomas (tradução de Joseph Bédier, 1907). Os poemas de Eilhart d’Oberg e de
Godofredo de Estrasburgo, os mil e quinhentos versos de um anônimo permitem a
reconstituição desse conjunto.
Para
André Mary (Tristan, N. R. F., 1941), a obra seria proveniente de jovens
sacristãos letrados de língua francesa, que conheciam as lendas da Grécia
(Teseu, o rei Midas) e que tinham lido Ovídio e Virgílio Pode-se discernir o
elemento mítico no maravilhoso do filtro e na natureza do herói vencedor de
monstros. Esse tema se encontra na Irlanda e Joseph Loth está inclinado por uma
versão galesa.
3. — A obra literária
Godofredo
de Estrasburqo prosseguiu o tema de Thomas e influenciou Friberg. Hans Sachs,
dele tirou sua tragédia (1553). 0 conde de Tressan recolhe a lenda no século
XVIII e os românticos o enalteceram. Schlegel (1800), Rückert (1839); Walter
Scott (1811), Immermann (1839) compuseram poemas. Hermann Kurtz (1844) e depois
Simrock (1855) estabelecem em alemão moderno o texto de Godofredo — Hertz
completa essa tradução com a análise do texto de Thomas. Francisque Michel
reúne os textos ingleses e normandos.
O
drama musical de Wagner escrito entre 1857. e 1859 é interpretado em Munique em
1869 e em Paris em 1899. 0 assunto ainda é encontrado com Joseph Weilen
(Breslau, 1860), L Schneegans (Leipzig, 1865), Carl Robert (Berlim, 1871) ou no
Le lai du chèvrefeuille de Marie de France.
O
filme de Cocteau (L’éternel retour) pela beleza estática de suas imagens lembra
os Visiteurs du soir de Carné no qual o amor de duas criaturas triunfará das
ciladas e da ira do diabo.
4. — Sobre alguns amantes eternos
Vem-nos
à memória Romeu e Julieta, Dafne e Cloé, Paulo e Virginia, Manon e o cavaleiro
dos Grieux, Fedro e Hipólito. Porém as desgraças de um par bem real, Heloísa e
Abelardo são ainda mais tristes.
5. — Simbolismo da lenda
Isolda
permanece virgem no adultério; engana o bom rei sem remorso aparente e essa
mulher, apesar de tudo, continua simpática. Vemos com indulgência esses amantes
que, mais do que os outros, são submetidos à fatalidade. As páginas que relatam
seus amores reprováveis tornam-se assim patéticas. A simplicidade primitiva do
conto eleva, acima de todas as leis, essa epopéia do amor.
A
velha magia céltica está presente nesse filtro que implica a fatalidade do amor
e cria esse liame misteriosamente indissolúvel. O amor, essa polaridade
magnética — polaridade devida a Deus, pois Eva, o superior feminino, vem de
Adão andrógino e é “sua sensibilidade volitiva” o que significa a separação do
ente em dois pólos, o negativo e positivo — explica-se pelos efeitos da bebida.
Porém Jean Marx (La légende arthurienne) vê em tudo isso a representação do
“geis” imposto pela mulher ao seu apaixonado. Eis a razão por que essa lenda
está sujeita ao fatalismo e à melancolia.
Em
conclusão, o ciclo arturiano com sua maravilhosa Demanda do Santo Graal é a
confirmação de um longo itinerário poético e espiritual. O esoterismo do Graal
é inegável, e se revela nessa transmutacão de uma fábula predestinada num
símbolo cristão. Exegese teológica e mística, esse tributo medieval é rico em
ensinamentos e nunca morrerá, pois sempre surgirão dele novas interpretações.
Gargântua
evoca Rabelais. Contudo Eloi Johanneau (Variorum, t. I, pág. 37), Ph. Chasles
(Tableau de la littérature française, 1829), J. Grimm (Mythologie allemande,
1837), pensam numa tradição antiga. Rabelais criou um herói nacional cujo nome
expressivo tornou-se uma imagem popular.
1. — Origem
H.
Gaidoz (Revue archéologique, set. de 1868), baseando-se na radical da palavra —
gar — vê nessa radical uma divindade; o deus da luz Garuda ter-se-ia tornado o
Hércules gaulês. Esse principio druídico estaria ainda presente no seu culto
das pedras.
Porém
os gigantes são conhecidos; e o nome de Gargântua figura na Légende de maistre
Pierre Paileu de Charles Bourdigné (1526). Tiel Ulespiègle legou a palavra
“espiègle” mas esse farsante insípido e sem espírito, comparado com Panurge,
não tem nem a sua sutileza nem a dicacidado. Rabelais teria se inspirado na
Histoire maccaronique de Merlin Cocaie (História macarrônica de Merlin Cocaie).
Com efeito, o episódio dos carneiros é também encontrado no primeiro.
2. — Os gigantes.
Como
os elfos, os anãos ou os ciclopes, os gigantes são a personificação dos grandes
fenômenos (furacões. estações, geadas...); quase deuses: Thrym rouba o martelo
do deus Thor; Mimir, o gigante das águas, aconselha Odin. São entes poderosos:
Egir é o senhor dos mares e sua esposa Ran captura os navegadores.
Para
a Igreja católica, o gigante substitui o diabo. Em 1100 os elementos pagãos e
cristãos se misturam; o povo aceita o cristianismo sem contudo rejeitar as
crenças tradicionais. E desta forma que Geoffroi de Monmouth faz evoluir
Gurgunt em sua epopéia bretã retomada por Wace (Roman de Brut, 1155).
3. — A obra de Rabelais
Depois
do êxito das Grandes et inestimables chroniques de l’énorme géant Gargantua
(Grandes e inestimáveis crônicas do enorme gigante Gargântua) (1532) — devidas
talvez a Billon d’Issoudun — Rabelais edita Les horribles et épouvantables
faíts et prouesses du très renommé Pantagruel (Os horríveis e espantosos feitos
e proezas do mui renomado Pantagruel) na editora Claude Nourry, conhecido por
Le Prince (3 nov., 1532); o livro é assinado Alcofribas Nosier; o Almanach
pantagrueline pronostication aparece em 1533 (Lião, François Juste).
A
Faculdade de Teologia condena o Pantagruel em 23 de outubro de 1533. Porém,
Rabelais, como médico, acompanha o bispo de Paris, Jean de Bellay, que parte
para Roma onde vai pleitear os interesses de Henrique VIII excomungado por
haver esposado Ana Bolena (1534). Com essa proteção Rabelais publica, em 1534,
seu Gargântua (edição definitiva, 1542, Lião, François Juste). Le tiers livre
(1546), de gosto mais rebuscado, expõe a questão do casamento, Le quart livre
(Lião, 1549) narra as buscas da “Dive Bouteille”. e da passagem do Noroeste.
4. — Valor dessa obra
Os
romances de Rabelais tiveram imensa popularidade. São os livros de um erudito
que, de maneira divertida, num estilo falado, contêm alusões políticas e
religiosas. Gargântua é um preito em favor do Renascimento e da Reforma. Apesar
de Rabelais ser prudente, de pregar sem falar demais, percebe-se nele o
pensamento de Erasmo, célebre pelo seu Institution du prince chrétien. Rabelais
também foi um iniciado.
Saulnier
(Mercure de France, 1-4-1954) mostrou que essa filosofia do beber era o símbolo
de uma busca da sabedoria. O festim perante Chaneph é erguido com alusões à
Ceia e faz pensar na Comunhão Eucarística.
Les
grandes et inestimables chroniques (1532) teriam inspirado Rabelais. Ora, nelas
encontramos novamente o mágico Merlin, que dá origem aos pais de Gargântua,
futuro servidor do rei Artur. É talvez aí que se deve buscar a analogia que
notamos entre a busca da “Dive Bouteille” e alguns episódios do Santo Graal.
Na
verdade a obra de Rabelais, de intenção evangélica, continua profundamente
esotérica com seu simbolismo aparente.
5. — A sucessão literária
Rabelais
foi muito imitado. Os livros transportados pelos bufarinheiros referem-se, em
geral, às Grandes e inestimables chroniques de 1532: é o caso de Deckherr em
Montbéliard, de Placé em Tours, de Pellerin em Epinal ou de Oudot em Troyes.
Mas
Gargântua — denominado também o Judeu Errante — passeou por todas as regiões.
Modelou o solo, formando lagos, córregos e deixando montes de lodo que são
verdadeiras montanhas. Uma crônica do século XVI diz que ele “a engendré le
fleuve du rosne en pissant trois mois, six jours, treize heures trois quarts et
deux minutes”. Essa geografia gargantuesca foi notada por A. Van Genned em Le
folklore de Bourgogne, 1934; (0 folclore de Borgonha) por Sébilot (Les
Traditions populaires, 1883) (As tradições populares), e por Carnoy (Contes
français, 1885).
6. — Conclusão
Rabelais,
fiel à tradição das crônicas de gigantes, soube exprimir, entre suas invenções
burlescas, idéias novas e profundas. Não temeu opor-se à ordem estabelecida e
traçou um programa de vida no qual o humanismo evangélico ocupa um lugar
preponderante.
O
judeu Isaac Lequedem da tribo de Levi, denominado também Ahasvero — Sapateiro —
recusou qualquer socorro a Jesus supliciado. Por essa falta de caridade,
caminhará até o juízo final conforme a maldição divina.
1. — Criação literária
Em
1228, um arcebispo da Grande Armênia, ao visitar o mosteiro de Saint-Alban,
narrou a lenda de José — ou Cartafilo — porteiro do pretório, que bateu em
Jesus e foi condenado a esperar a volta do Senhor. Caindo, de cem em cem anos,
em letargia, recupera sua aparência corporal do tempo da paixão (trinta anos).
O arcebispo diz ter almoçado com José. Mathieu Paris, recolhe a lenda e
registra-a, em 1252, na sua História Major; Philippe Mousket, bispo de Tournai,
menciona o mesmo episódio na sua Chronique rimée (em aproximadamente 1243).
Entretanto,
essa lenda não aparece no folclore armênio.
Gaston
Paris (Légendes du Moyen Age, 1912), observa que Cartafilo devia ser romano e
não judeu pois que foi empregado por Pilatos.
A.
d’Ancona mostrou (Romania, t. X e XII) que o personagem obsedava a imaginação
da Idade Média.
2. — Evolução da lenda
Uma
carta em alemão, datada de 29 de junho de 1564 afirma que Paul d’Eitzen, doutor
em teologia e bispo de Scheleszving, encontrou o Judeu errante em Hamburgo em
1542. 0 redator alemão, protestante, teve que se servir desse nome para
autentificar uma narração lendária. A narração de Chrysostornus Duduloeus
Westphalus (Leyde, 1602), teve numerosas reedições.
Em
1575 esse erradio é encontrado na Espanha; apresenta-se aos Magistrados de
Estrasburgo; Pierre Louvet o vê em Beauvais (1614). 0 advogado Bouthrays, na
Histoire de son temps (t. II, XI, 1604), observa que — toda a Europa se — ocupa
com esse personagem que inspira as artes. Depois da .publicação em Bordéus dos
Discours du véritable Juif Errant (Discursos do verdadeiro Judeu Errante)
(1609), as cartas de Prétendu Espion Turc (Pretenso espião turco) torna-se
Michob-Ader (Paris, 1680).
3. — Origem literária
Gaston
Paris pensa em Caim, o erradio fugitivo, em Samiri que foi condenado por Moisés
a caminhar sem descanso por ter adorado um bezerro de ouro. Malc, que
esbofeteou o Cristo com sua luva de ferro e gira em torno de uma coluna até o
juízo final. Mas a lenda mais notável parece ser a de Jean Boutedieu, conhecida
pelas cruzadas estabelecidas na Síria. É encontrada nos mistérios provençais,
na canção de gesta de Fierabras (Ferrabras) na qual o leproso Marcos bate Jesus
e na Espanha sob o nome de Juan Espera-en-Dios. Philippe de Novare anotou-o no
seu Livre en forme de plait (1250).
4. — Evolução do personagem
Discípulo
bem-amado ou culpado? São João, bem como José de Arimatéia são imortais e
entretanto o cristão espera apenas a graça do céu. A vida tranqüila de
Cartafilo sucede a vida errante de Ahasvero. Mas o erradio pára nas vilas,
professa, toma assento à mesa de Paul d’Eitzen. Esses dois homens são tão
diferentes que Droschen (Iena, 1668), Frantzel e uma brochura de 1645 são de
opinião de que existem dois testemunhos da paixão.
Porém,
em aproximadamente 1800, o judeu errante não pode mais parar; possui apenas 5
soldos no bolso que se renovam à medida que os vai gastando. É um timorato.
Goethe pensa em tratar dessa lenda, mas Fausto, que também pode renascer, é
muito mais humano.
5. — A sucessão literária
Depois
das obras anônimas, as edições tais como La chanson de Béranger, a ópera de
Scribe e Saint-Georges com a música de Halevy. Gérard de Ner vai traduziu
Schubart numa meditação filosófica.
Gustave
Doré firma esse personagem que permite a Eugene Sue compor o primeiro romance-folhetim.
Mélies, em 1904, consagra-lhe uma curta metragem cinematográfica e histórica;
lendas relativas à Paixão encontram-se intercaladas nessa obra. Daí as obras de
Edgard Quinet (Ahasverus, 1834), de Ed. Fleg (Albin Michel, 1953), de Alexandre
Arnoux (Carnet de route du Juif Errant, Grosset, 1931). Depois deste livro
vibrante t’Serstevens criou seu encontro com D. Juan (La Légende de Don Juan,
Gonet, 1946); num diálogo cintilante D. Juan torna-se o Judeu errante do amor.
J. C. Cordeau (Ahasverus, Jouve, 1951) observa os simuladores que vão do
desertor (Léopold Delporte, 26 de maio de 1623), aos impostores, tais como o
conde de Saint-Germain ou Cagliostro. Outros homens, seguindo a convocação
geral do ano 1000, já haviam endossado essa personalidade.
6. — Conclusão
O
Judeu Errante talvez tenha nascido da imaginação popular. Todavia, o castigo
parece desmesurado em relação ao ato e dificilmente se compreende o rigor de
Jesus que sabia perdoar. A lenda pode personificar a nação judaica que deve
viver entre os outros povos depois da destruição de Jerusalém por Tito. Pode
ser o emblema da humanidade que caminha continuamente para um fim imprevisto. É
a alegoria da guerra; a explicação mitológica transforma-a no vento que a
conduz. É também um tema protestante, um testemunho certo que fortalece a fé,
um testemunho em favor da veracidade dos fatos narrados nos Evangelhos, que
combate o mito cristão.
A
lenda permite aos autores traçar o quadro dos usos e costumes de cada país por
onde passa; ou contar a História Sagrada. Porém, o personagem, vencido por seu
erro, não goza das alegrias mortais, as únicas alegrias que poderiam lhe ter
criado na obra literária um lugar de destaque.
Este
belo e doloroso conto da Idade Média francesa canta a esperança de cada homem:
qualquer, que seja o grau de nossos pecados, podemos encontrar o caminho da
salvação. Roberto, esse ser abjeto e amaldiçoado, torna-se um santo. Obra de
moralização e de encanto, sua ação rápida, alerta, acentua os caracteres da
cavalaria.
1. — O assunto
Roberto
nasce sob uma influência infernal. Sua adolescência é marcada pelos seus atos
de crueldade; porém, ao saber do segredo do seu nascimento, quer expiar-se. Em
Roma, num recanto do palácio do imperador, imita um louco e come com os cães.
Porém, quando os sarracenos devastam a região, Roberto, com autorização
celeste, combate e expulsa o invasor.
Depois,
no anonimato, retoma o seu lugar de truão. Três anos mais tarde seu feito
glorioso se repete e a identidade do “cavaleiro branco” se desvenda; a princesa
encontra novamente a palavra para glorificar Roberto que, fugindo às honras, se
retira do mundo.
2. — Os manuscritos
Um
antigo poema de duzentas e quarenta estrofes monorrimas de quatro versos
datando do século XIII foi retomado por G. S. Trébutien (Silvestre, Paris,
1837). Outro manuscrito do século XIV (ou começo do século XV) recebeu os
cuidados atenciosos de E. Loseth (1903).
3. — As fontes
a)
Literárias — Um texto em latim — de Etienne de Bourbon, dominicano do século
XIII, publicado por Lecoy de la Marche (1877) retoma o mesmo tema, bem como uma
redação em alemão do século XV. Um regato atravessa o quarto da princesa:
imaginamos o quarto de Isolda.
Este
assunto se repete nos Mistérios de Nostradamus (llº milagre) e no Roman de
Robert, le Dyable, manuscrito de La Vallière, nº 80 (edição Frère, Ruão, 1836).
Mas “Un miracle de Nostre-Dame d’un enfant qui fu donné au dyable, quand il fu
engendré” (33o. milagre de Gautier de Coincy) é publicado pelo padre Poquet
(1857; Frère, Ruão, 1836) e Petit de Julleville (t. 149; t. II, 310) contêm
textos análogos; Paulin Paris ocupa-se do “Miracle d’un enfant que sa mere
donna ao diable à l’eure que son père l’engendra et qui fut porté en enfer”.
Mágicos presidiram também a esse nascimento: este tema de iniciação é estudado
nos temas do conto de Barba Azul.
b)
Histórico — Nas Chroniques de Normandie pretendeu-se atribuir a paternidade de
Roberto, o Diabo, a Aubert, duque e governador, da Normândia no tempo de Pépin
le Bref; depois foi Robert Courteheuse, filho de Guilherme; o Conquistador, que
teve morte gloriosa em 1134, durante a primeira cruzada. Outros viram nesse
personagem o pai de Guilherme, o Conquistador, Roberto, o Magnífico (1035).
Na
verdade Roberto, o Diabo, parece ser uma criação. É o tipo do príncipe
salteador da Idade Média.
4. — Sucessão literária
Se
Liebrecht (zur, Volkskunde) vê nessa lenda a adaptação eclesiástica de um velho
conto popular pertencente ao grupo do “Teigneux”, Borinski pensa em Robert
Guiscard.
Realmente,
muitas vezes o demônio se interessa pelas crianças para delas fazer suas
criaturas. Guillaume d’Orange, as lendas alemãs de Orendel e de Wolf Dietrich,
as sagas de Thidrek têm pontos de semelhança estudados por Cosquin nas
literaturas do Cambodge, de Zanzibar, da Sibéria, etc. A criança se liberta
desse jugo maléfico mas conserva os benefícios da iniciação nos segredos
importantes.
Edelestand
do Meril (Etudes d’archéologie), Littré e Gaston Paris (Romania, IX, 523; XV,
260) estudaram essa lenda que Edouard Fournier, depois de uma tradução (Denty,
1879), fez representar no Gaieté, no dia 2 de março de 1879. Fora a ópera de
Meyerbeer (Paris, 1831), as obras de Scribe e de Delavigne são interpretações
livres.
5. — Seu ensinamento
Este
conto, cujo texto é de uma pureza exemplar, adotou as idéias do cristianismo
medieval. Faz lembrar Saint Alexis que, no dia de seu casamento, para se
mortificar, foge às alegrias de sua família. Esta idéia de penitência, de
elevação, depois de uma decadência nativa, tem bem um caráter popular e
moralizador. Roberto, o Diabo, continua a ser uma das lendas francesas mais
recentes.
Obra
moralizadora é a narrativa de um amor fiel; sua singeleza transmite-lhe uma
graça e uma suavidade bem características dos Romans courtois (Romances
corteses) nos quais tudo é encantamento e prodígio.
1. — O tema
Pierre
de Provence rapta Maguelone, filha do rei de Nápoles. Mas durante a viagem,
Pierre, ao perseguir um pássaro que se apoderou de uma jóia, extravia-se. Muito
tempo separados, os dois amantes se encontram finalmente e formam o par mais
unido.
2. — As fontes
a)
Literárias — Romance anônimo conhece-se o manuscrito de Coburgo e a edição
gótica de Lião, atribuída a Barthélémy Buyer em, aproximadamente, 1477. Parece
que esse texto foi escrito nas regiões do sul da França em, aproximadamente,
1442. As edições Le Roy, em Lião (1485) inspiraram-se no mesmo tema muito
popular na Idade Média.
Conforme
Gariel (Idée de Montpellier, 1665), o assunto teria sido estudado por Petrarca
segundo um texto de Bernard de Tréviez. Esta hipótese é posta em dúvida por
Ancona (1889), rebatida por Gaston Paris (Romania, t. XVIII, l889,pág. 511).
Parece mais certo ser Tréviez o escultor que ornou o lintel da porta da
catedral de Maguelone.
b)
Histórico — Vêm-nos ao pensamento a ilha de Maguelone, perto de Montpellier e
nos condes de Toulouse; supôs-se ser o bom rei René o conde de Provença
(1435-1480). Mas com mais certeza pensou-se em Pierre de Melgueil que ofereceu
o seu condado ao papa Gregório VII, no dia 27 de abril de 1085. Sua esposa era
Almodis. Esse generoso conde, glorificado pela Igreja de Roma, tornou-se uma
figura popular (estudo de A. Germain, 1854).
3. — A sucessão literária
Duas
vezes Cervantes citou Pierre de Provence em D. Quixote. As poesias de Tieck,
com a música de Brahms, foram editadas em Berlim, em 1911. Mistral trata de
Maguelone (Trésor du Félibrige, II, 244) (Tesouro do Felibrige) Esse tema popular
inspira numerosos artistas e um sarcófago de mármore existe na catedral de
Maguelone.
Os
elementos desse romance se encontram nas Mil e uma noites (história do príncipe
Camaralzanam e da princesa Badur), no poema italiano Ottinello e Giulia, no
romance francês L’Escoufle. O furto de jóias por um pássaro é um caso comum na
literatura.
O
romance persa Histoire des amours de Cofroès (História dos amores de Cofroès)
lembra ainda a narrativa francesa.
4. — Paris e Vienne
Esse
romance terminado em 1443 (conforme Biedermann, em 1427), compara-se a Pierre
de Provence.
É
a história de um invencível cavaleiro que cativa o amor de Vienne, filha do
Delfim do Vienense. Paris, como Pierre, é aprisionado no Oriente, na Síria e na
Alexandria. Finalmente desposa Vienne.
Esse
texto é conservado na biblioteca de Carpentras (nº 172). Podemos ainda pensar
no amor de Flora que corre para o palácio do Sultão na Babilônia a fim de lá
arrancar Brancaflor. Aucassin et Nicolette retoma o tema e Aucassin, depois de
aventuras cômicas, consegue desposar a filha de Garin de Beaucaire que se
opunha aos seus amores.
5. — Conclusão
Paris
e Vienne dão um lugar importante aos feitos da cavalaria, mas os dois textos
são histórias de amor edificantes nas quais a constância dos amantes triunfa.
Pierre de Provence continua sendo uma obra mais humana e mais elegante; o
estilo é simples, direto. A clareza e a uniformidade dessa narrativa muito
sóbria foram a razão do seu êxito.
CARTOUCHE ET MANDRIN
Dois
célebres bandidos de proezas diferentes que souberam cativar a imaginação
popular: Cartouche tornou-se assim o bom ladrão enquanto que Mandrin é um
salteador temível que socorre os humildes. Desde a morte desses dois
personagens, os livros se apoderaram de suas personalidades.
a)
Sua vida — Louis Dominique Cartouche, nascido em outubro de 1693 no bairro de
La Courtille, em Paris, teve uma educação bastante rudimentar. Aos onze anos
foi raptado por um bando de boêmios e aos dezoito já roubava pelos belos olhos
de uma pequena roupeira. Recrutador, organizou mais tarde o seu bando de acordo
com os principios militares; seus tenentes chamavam-se Duchâtelet, bem como
Duplessis d’Entraigues, Louis Marcant, estudante de direito, Pélissier, cirurgião.
Como a França estava coberta por uma rede de agentes (teve trezentos e sessenta
e seis cúmplices) Pélissier pode atacar o correio de Lião. A audácia desses
homens é inacreditável: um pregoeiro proclama a busca de Cartouche, esse se dá
a conhecer e apavora a multidão que nada faz para detê-lo. Suas evasões são
espetaculares (Fort-l’Evêque).
Apesar
de enriquecido pela rua Quincampoix onde François Le Roux despojava os
visitantes do banco Law, Cartouche tornou-se receoso — ele próprio foi delator
junto a M. d’Argenson. Duchâtelet vende o seu chefe no dia 14 de outubro de
1721; encarcerado no Chatelet e depois na Conciergerie, sua pena de morte
foi-lhe comunicada no dia 26 de novembro de 1721. No dia 27, na praça de Greve,
já sem esperanças de ser salvo pelos seus, denunciou seus cúmplices, enquanto
que no interrogatório, apesar do suplício dos sapatos de ferro, nada confessou.
b)
Sua popularidade — Esse bandido sanguinário, supliciado na roda aos vinte e
oito anos, foi exposto em casa do ajudante do carrasco: cada curioso pagava um
soldo. A Confraria dos Barbeiros-Cirurgiões trouxe o corpo para seu hotel e
durante três dias os parisienses puderam desfilar para vê-lo. O molde de sua
máscara é conservado na biblioteca de Saint-Germain; outra figura no Museu do
Homem.
Sua
biografia aparece em 1721, L’Histoire de la vie et du procès du fameux
Louis-Dominique Cartouche (História da vida e do processo do famoso
Louis-Dominique Cartouche), mas Legrand e Quinault já havia atualizado sua peça
quando vieram ver Cartouche na prisão; os italianos seguiram o teatro francês e
representaram-no como Arlequim. Uma multidão se formou para assistir essas
peças. A aristocracia velo para ver o bandido prisioneiro, o próprio regente
saiu das suas comodidades; os gravadores venderam seu retrato, os poetas, entre
eles Racot de Grandvai (1725), glorificaram sua coragem, sua inteligência, seu
gênio de comando:
Ainsi finit Cartouche, et la Fleur des Guerriers
Laisse sur l’Echafaud sa vie et ses lauriers.(4)
Laisse sur l’Echafaud sa vie et ses lauriers.(4)
a)
Sua vida — Nascido em Saint-Etienne-de-Saint-Geoirs em Dauphiné, no dia 11 de
fevereiro de 1725, Louis Mandrin é um contrabandista popular com poses de
gentil-homem. Em Chambéry é recebido pela nobreza. Mandrin organiza um bando
disciplinado e promove verdadeiras campanhas contra os Fermiers généraux. Sua
sexta campanha foi sangrenta. Mandrin não ataca os particulares mas obriga os
administradores oficiais e intermediários a comprarem os seus produtos
contrabandeados; fornece recibos regulares. Mandrin é o gerente de um
estabelecimento comercial; escrupuloso quanto aos pesos, as quantidades,
insurge-se todavia contra os impostos descontados por quarenta mil empregados
detestados. Malesherbes, primeiro presidente da Corte de Apelação, havia também
condenado esse abuso.
Mandrin
retoma as façanhas de Puymoreau que em 1548, com um bando organizado de seis
mil homens lutou contra o imposto da gabela e tomou Saintes, Cognac, Bordéus,
libertando os contrabandistas arrestados.
Audacioso,
afugenta as tropas de Luís XV que se lhe opõem, ataca cidades inteiras: Autun,
Bourg-en-Bresse — (5 de outubro de 1754), Beaune (dezembro de 1754). Liberta os
prisioneiros, menos os assassinos e os ladrões; assina libertações e endereça
cartas corteses, porém firmes, às mais altas autoridades.
Depois
de uma batalha decisiva contra os hussardos da legião de Fitscher, refugia-se
na Savóia. Seis regimentos de infantaria e dois de cavalaria foram mobilizados.
Mas na noite de 10 para 11 de maio de 1755, raptado por soldados de La
Morliêre, do castelo de Rochefort, em território Sardo, os Fermiers généraux
instauram imediatamente um processo. A Corte de Turim manifesta-se contra essa
violação de direitos e de seu território, mas, no dia 26 de maio de 1755 era
executado em Valença. Em seguida, a França humilhou-se perante a Casa de
Sardenha e libertou dois companheiros de Mandrin injustamente aprisionados.
Mandrin não denunciou nenhum de seus companheiros, fez supor que não era responsável
por nenhuma morte; aos trinta e um anos sua morte foi edificante.
b)
Sua popularidade — Suas aventuras galantes, suas fugas, suas façanhas
audaciosas, seu papel de benfeitor para com a população à qual vendia produtos
de excelente qualidade a preços muito acessíveis, fizeram com que o nomeassem
“capitão geral dos contrabandistas da França”. Seus irmãos Antônio, Francisco e
Cláudio, bem como sua irmã Mariana, ficaram incumbidos de continuar a
organização do irmão.
Entre
1755 e 1760, vinte e cinco contrabandistas foram supliciados à roda ou
esquartejados e cinco foram enforcados. O povo chorou a morte de Mandrin. O
abade Regley criou para os Fermiers généraux uma Histoire de Louis Mandrin
(1755) com “detalhes das suas crueldades, dos seus assaltos e do seu suplício”;
o que nada mais é do que uma rede de calúnias encontradas em algumas
“madrinades”. Os Fermiers généraux pretendiam assim desviar a opinião geral:
Mandrin nada mais era do que um salteador. Foi confundido com Cartouche. De
fato, a Revolução francesa ia realizar a obra sonhada por esse contrabandista.
Conclusão
— Esses homens, com sua coragem audaciosa, tomaram proporções sobrenaturais.
Com os louvores desses homens criou-se a lenda. O mecanismo dessa miragem da
imaginação popular é assim bem evidenciado. Mais recentemente lembramo-nos de
Bonnot cujas façanhas foram multas vezes comentadas, ou do bandido siciliano
Giuliano glorificado nas telas cinematográficas. Mas essas lendas ainda novas
já não deixam lugar ao simbolismo, somente ao maravilhoso. A lenda de Santa
Teresa de Lisieux poderia ser considerada sob esse prisma.
Perrault,
depois do êxito de Pele de Burro, pensou em transcrever Les contes de la mère
l’Oye; suas fontes nos são desconhecidas mas os motivos existem numa literatura
coletiva, talvez criada pelo produto inconsciente da imaginação proveniente de
fontes multo antigas.
Se
o texto age por encantamento, descobre também um sentido que ultrapassa a
simples moralidade devida a Perrault, que aliás se desinteressou pelas fontes
iniciais. Bacon escreve: “Confesso simplesmente que desde sua origem as fábulas
antigas foram alegóricas e encerravam lições importantes”.
1. — Valor do conto
Ora,
encontramos de novo o mesmo repertório de contos — com seus temas iniciais
semelhantes — em cada país e em cada latitude; essa migração prova um ritual
unicamente acessível aos iniciados. Mas essas palavras de encantamento, forma
de uma magia vinda até nos Evangelhos, não são apenas simbólicas. Além das
cerimônias iniciáticas, o conto interpreta a vida e as tradições regionais. Por
suas virtudes místicas, o encanto dessas ficções não pode ser nem pueril nem
grotesco. E é preciso abandonar nossa atitude racional de homens que querem ser
instruídos e inteligentes para desfrutar o sabor desses contos que nos lembram
a alvorada de nossa infância.
2. — Tese solarista
Despertou
grande interesse a tese solarista de B. Busson. Barba-Azul é uma alegoria do
sol que mata cada dia a Aurora, sua nova esposa. A Aurora é curiosa; ela
penetra por toda parte. Mas no aposento proibido estará encerrado o trovão; a
Aurora é libertada por dois cavaleiros, os Açvins do Rig-Veda, os dois
crepúsculos. O Pequeno Polegar relacionar-se-ia com os sete raios do alvorecer.
André Lefevre, Frédéric Dillaye compartilham essa opinião. Na mitologia antiga
podemos encontrar o sol com o seu emblema de chaves.
Porém,
Barba-Azul pode ser Saturno em luta com o novo ano, sua nova esposa; contudo as
pesquisas para justificar a significação do número 7 conduzem a outras
interpretações cujo caráter esotérico não poderia nos escapar.
3. — Valor do algarismo 7
Se
as sete esposas de Barba-Azul, ou os sete irmãos do Pequeno Polegar, as sete
fadas da Bela Adormecida no Bosque, as sete filhas do papão, as sete mulheres
do gigante podem se assemelhar aos sete dias da semana, o valor desse número é
extraordinário. Encontramos as sete solenidades do Judaísmo, os sete ramos do
Castiçal de ouro, os sete filhos de Macabeu, enquanto que Tóbis é o sétimo
esposo de Sara. O Espírito Santo tem sete dons, a Virgem, sete dores, o
evangelho sete demônios e sete anjos planetários. Temos ainda os sete sacramentos,
os sete diáconos, os sete selos do Apocalipse, os sete pecados mortais, as sete
virtudes, as sete cores do raio luminoso, as sete notas musicais, as sete
maravilhas do mundo. Para Anne Osmont cada um dos sete planetas do Pater se
aplica a um dos planetas que compõem a antiga astrologia enquanto que para os
hindus a terra se dividia em sete planetas.
Sete
seria o símbolo da vida eterna, da ação e da evolução; a própria iniciação tem
sete graus. Esse algarismo, que se liga a três e onze, é ainda encontrado
numerosas vezes.
4. — Simbolismo
O
conto — que se reúne à lenda pela transformação do seu tema — reflete, no que
concerne sua interpretação, a moda intelectual do dia. Os heróis podem
personificar fenômenos naturais, mitos meteorológicos, usos cotidianos de todos
os povos. O internacionalismo desses contos nos conduz a pensar numa
transmissão oral. Os presentes das fadas podem constituir ritos de aniversários
e Pele de Burro torna-se uma rainha de carnaval. Se voltarmos às nossas origens
poderemos encontrar novamente o frescor da nossa alma de criança, e assim, num
mundo deformado, evoluem esses heróis dotados pela natureza; mesmo sendo os
personagens minúsculos, podem realizar grandes feitos pela sua coragem e pelos
benefícios da iniciação. Os animais são bons e os próprios objetos tornam-se
atributos do poder; o boné torna invisível, o bastão invencível e a sandália é
o signo da velocidade.
Este
simbolismo dos objetos é discernível na água de Juvência, nas beberagens de
imortalidade e o herói, para alcançar um estado superior, põe-se à busca de um
objeto que pode ser um objeto mágico, um tesouro, uma noiva. Na história de
Gata Borralheira o herói busca a luz e os três vestidos cósmicos (céu, lua e
sol) participam da vida universal.
O
conto representa um mundo sobrenatural no estado de pureza; não mais se ocupa
do sentido literal e chega até o absurdo para se preocupar apenas com um
simbolismo bastante aparente. O ouro torna-se o emblema da energia solar e os
cabelos, símbolos da vida, são de ouro. A Bela Helena, assim como Pele de Burro
assemelham-se a Aquiles- e Ménégal.
Os
contos, apólogos religiosos, ensinam, a moderação de nossos desejos na
aceitação da nossa condição. (Les souhaits ridicules, Griselidis) (Os desejos
ridículos), mas são também uma evasão. Em vista da credulidade popular receber
mal o desaparecimento do herói e criar uma lenda que o faz reviver desde o dia
da sua morte, alguns desses personagens imaginários podem reviver; da mesma
forma como nunca se admitiu a morte de Joana d’Arc, de Napoleão ou de Hitler,
não se pode admitir a morte de heróis dotados de qualidades excepcionais.
É
por isso que os contos divertem e instruem ao mesmo tempo.
5. — Os predecessores de Perrault
Esses
contos de tradições antigas, “memórias coletivas”, como diz Guenon, foram
compilados por vários autores.
Antes
da publicação dos contos de Perrault (1697), outras compilações já existiam.
Citaremos apenas as mais importantes, sendo as variantes particulares anotadas
no seguinte estudo esquemático. Antes de tudo é a engenhosa reunião de contos
que parecem engendrar uns e outros: o livro de Mil e uma noites.
Antes
dos Contes du Perroquet (Contos do Papagaio), os Contes du Vampire (Contos do
Vampiro), o compêndio mais antigo é o Pantchatantra que se havia multiplicado
na forma ocidental do Roman des sept sages (Romance dos sete sábios) e na forma
árabe no Le livre de Kabile et Dimna.
Entre
os que tomaram a dianteira de Perrault notemos o Decameron de Bocáccio, Les
nuits de Straparole e o Pentameron de Basile. Perrault e em seguida Mme
d’Aulnoy, adaptaram essas ficções ao gosto do público francês. Walter Scott fez
o mesmo na Inglaterra, os irmãos Grimm na Alemanha, Afanasieff na Rússia e
Asblörnsen na Noruega.
1. — Teses históricas
a)
Alain Bouchard (Les grandes chroniques, 1531) e Alberto Magno (La vie de saint
Gildas, 1680), registram que o rei bretão Comorre, tendo um oráculo lhe predito
que seria assassinado pelo próprio filho, teria matado suas sete esposas.
Influência da lenda grega, sem dúvida mas sua última esposa, Santa Triphime, é
ressuscitada por Santo Gildas. O tema aparece nos afrescos da capela de
Saint-Nicolas (Bieuzy, Morbihan);
b) Collin de Plancy, Ch. Giraud, Michelet crêem que Gilles de Rais, marechal
de França, fiel companheiro de Joana d’Arc, inspirou a lenda. Entretanto, desposou
uma única mulher, Catherine de Thouars, que a ele sobreviveu. Este homem
letrado que atemorizava seus herdeiros com suas despesas fastosas, foi
condenado e executado em Nantes (26 de outubro de 1440) com a idade de trinta e
seis anos por haver degolado trezentas crianças em sessões de magia. Esse
processo parece suspeito e S. Reinach e F. Fleuret tentaram reabilitá-lo. Tal
como a imaginação popular censurava aos primeiros cristãos sacrifícios humanos,
parece que Gilles de Rais tenha sido vítima de sua fortuna e de seus ataques
políticos.
c)
Pensou-se em Henrique VIII da Inglaterra que esposou seis mulheres e fez com
que duas morressem no cadafalso. Maspero e Gaston Paris fazem dele um vampiro
que bebe sangue humano. Doente, neurótico, Barba-Azul é comparado aos grandes
criminosos como Landru ou John Christie;
d)
A cor extraordinária de sua barba assemelha-o a Indra, a Bés, o Egípcio, ou a
Júpiter. Tem uma barba azul quase preta, ou azul-celeste (Oh!) e Sébillot
menciona uma barba vermelha. No simbolismo das cores é preciso ver o símbolo do
iniciador, o condutor de almas que faz transpor as portas da morte espiritual.
2. — Tema da curiosidade. Iniciação
O
tema da curiosidade é comum a todos os países e visa principalmente a mulher.
Na. Bíblia achamos Loth, Eva e Sodoma. As Mil e uma noites fazem da curiosidade
uma ampla interpretação. Esse segredo conjugal está presente em Parsifal onde a
duquesa de Brabante perde seu esposo por lhe haver perguntado quem era ele.
Essa curiosidade visa um ritual que nos escapa; talvez o da preparação para o
casamento. A jovem é sujeita a uma prova difícil: a tentação do local secreto.
Em seguida vem a última prova, o simulacro da morte; ritual de morte e de
ressurreição na qual o neófito, despojando o velho, desperta num mundo novo, o
do conhecimento. É o caso da religiosa colocada no seu ataúde. Para essa
cerimônia de iniciação a mulher pode vestir seus mais belos adornos, ou se
impor a nudez ritual do batismo dos primeiros cristãos (forma nivernesa da
lenda). A magnificência da morada de Barba-Azul lembra os castelos encantados e
esse grande senhor, cortês e feio, não dá a razão dos seus crimes.
3. — O quarto secreto
Esse
local secreto parece ser o lugar do saber por excelência. É a loja. Um conto de
Carnoy L’homme de fer (O homem de ferro), mostra que a criança desobediente não
pode conhecer o derradeiro segredo. A forma original do Conte du magicien et
son apprenti (Conto do mago e seu aprendiz) parece ser a Histoire du radja
Madama Kdma na qual um príncipe instruído por um feiticeiro tenta e consegue
escapar-lhe; Cosquin (Études folkloriques) e W. Crooke (North Indian Notes and
queries, 1894) narram contos semelhantes.
Porém
o quarto secreto aparece mais claramente na introdução do livro mongol
Siddhi-Kûr, no qual o caçula descobre a “chave da magia” espiando pela fresta
de uma porta. A curiosidade é pois recompensada. Os contos de Velay (Cosquin),
da ilha de Zanzibar, de Bosnia permitem, ao iniciado triunfar depois de haver
transgredido um regulamento de interdição. Este último conto, recolhido por
Desparmet, assemelha-se ao de Aladin (As mil e uma noites): um jovem sem
fortuna quer desposar a filha do rei.
Contudo,
quase sempre, essa curiosidade é nociva.
O
homem é expulso do paraíso pelo seu gesto da desobediência (conto hindu de
Somadeva Rhatta; história do Terceiro calendário de mil e uma noites). Sem se
instruir nos três estágios impostos (purificação, saber, poder), o neófito quis
penetrar no santuário secreto: da mesma forma é enxotado dessa confraria (Roman
des sept vizirs (Romance dos sete vizirs), enquanto que o príncipe do Fidèle
serviteur (Fiel servidor) (Carnoy) enamora-se de um retrato conservado num
quarto interdito.
L’enfant
de la Vierge Marie (O filho da Virgem Maria) (Grimm), Le bénitier d’or
(Cosquin), Maria Morewna (Ralston e depois Marnier) e numerosas variantes mencionadas
por Saintyves, referem-se ao tema da interdição do Quarto Secreto. Doze quartos
corresponderiam aos doze apóstolos, o décimo-terceiro quarto sendo o do Santo
dos Santos.
Carrouges
estende esse simbolismo aos romances policiais para interpretar o mistério dos
quartos fechados.
4. — O objeto denunciador
Um
objeto mágico denuncia o culpado que tentou penetrar no local, secreto. É o
caso do conto de Perrault, do Oisel emplumé (Pássaro emplumado) de Grimm, de La
veuve et ses filles (A viúva e suas filhas) de Loys Brueyre. O objeto pode ser
uma chave, um ovo, um pequeno cofre, um retrato e até uma região.
Depois
o próprio objeto mágico tornou-se a representação do quarto iniciativo. Essa
“casa dos homens”, esse centro de reunião de iniciados transforma-se num cofre
que encerra o saber. Andrew Lang vê nisso tudo a sobrevivência do culto
primitivo e acrescenta o anel jogado ao mar e encontrado depois no corpo de um
peixe. Mas a chave, símbolo axial, pode ser considerada pelo seu poder de ligar
e desligar; seu conhecimento tem então o mesmo poder que a palavra de Ali Babá
ou a do Pequeno Polegar. Às vezes o objeto desaparece: um sinal aponta o
culpado; são os cabelos de ouro do Homme de fer (Carnoy) ou o dedo dourado de
uma criança desobediente (Steele Swahili, Tales, 1870; Contes Cambodgiens,
1868; Conte Chao Gnoh); o ouro é então o emblema das energias solares.
5. — Auxílios
Essa
luta entre o iniciado e o iniciador implica auxílios exteriores. Esses auxílios
provém dos pais, de um religioso, de um sábio, de um jovem (W. Crooke observa o
caso de um herói aconselhado pela filha de seu inimigo). Os mortos que
aconselham são numerosos (Cosquin, Steele, L’oiseau de vérité (Pássaro de
verdade), Les trente-deux récits do Trône (As trinta e duas narrativas do trono)
ou Vicramaditia, La légende de la mort (A lenda da morte) (de Le Braz); D. Juan
também recebeu os conselhos do comendador. Os animais, aliados do homem, sob a
influência da Índia, previnem contra o perigo. Com Perrault essa parte é
abreviada e os irmãos chegam inopinadamente.
6. — Conclusão
Parece
que o conto de Barba-Azul visa a iniciação de um ser; sua curiosidade impede-o
de beneficiar do ensinamento desta arte mágica. Os elementos interiores desse
tema, conhecido em todos os países, se encontram num ritual que parece
reservado aos iniciados.
1. — Tradição mitológica
Depois
de Hyacinthe Husson que assimila a heroína à luz celeste invadida pela noite ou
pelo inverno — sendo a noite, neste caso, representada pela floresta — Charles
Ploix (Le surnaturel dans les contes) (O sobrenatural nos contos) nele descobre
o despertar matinal. Mas, a primavera livre das correntes do inverno tem
numerosos adeptos: Husson (La châine traditionelle) (A cadela tradicional), Max
Muller (Essais de mythologie comparde) (Ensaios de mitologia comparada),
Bachelin (Sept contes roumains) (Sete contos Rumenos). A versão siciliana
(Suli, Perna et Anna, G. Pitre, 1875), ou a versão hindu compilada por Frère no
Deccan Days, 1868 (La laitiére et la griff e du Rakshasa (A leiteira e a garra
do Rakshasa) se aparentam a essa origem primaveril que reencontramos em
Pentamérone (V, 5) ou ao conto alemão Rosa de espinho.
Para
Gédéon Huet (Les contes populaires) é o sono mágico, de aspecto extático que
reencontramos no Sept Dormants.
2. — A presença da fada má
As
Parcas, perto dos berços, prediziam o futuro das crianças. André Lefevre
compara a fada má à “Fatumantique” enquanto que Sébillot, Husson e Dillaye
pensam numa bruxa (Légendes locales de la Haute-Bretagne, t. II) (Lendas locais
da Alta Bretanha). A lenda egípcia apresenta no nascimento de Montemonia em
Louqsor, de Ahmasi em Deir e de Cleópatra em Erment, sete fadas madrinhas. Isto
faz lembrar os sete Lipikis hindus que anotavam durante a vida dos homens seus
procedimentos nos sete planos de suas consciências (sensação, emotividade,
inteligência, intuição, espiritualidade, vontade e presciência do divino).
Desta forma era determinado o destino do indivíduo na ocasião de sua
reencarnação. Suas boas ações anteriores tornavam-se dons inatos. As fadas que
assistiram ao nascimento de Ogier, o Dinamarquês, são apresentadas nas
Croniques du Roy. Perceforest (século XIII), por ocasião do parto da rainha
Zelandina ou na Heurcuse peine (Mme. Murat, 1698). No La biche au bois (A corça
do bosque) e Le serpentin vert (A serpentina verde) encontramos duas fadas que
foram esquecidas. As vezes, as fadas, ao invés de adormecer, petrificam-se (La
reine des abeilles (A rainha das abelhas) de Grimm, (L’arbe qui chante) (A árvore
cantante), L’oiseau qui dort, (O pássaro que dorme), Le fidèle Jean (O fiel
João) de Carnoy. Em A bela e a Fera as duas más irmãs tornam-se estátuas.
3. — Simbolismo do fuso
Na
maioria desses contos, a virgem adormece depois de uma picada, quase sempre, de
um fuso. Loeffler-Delachaux, notando que nas tribos primitivas e atualmente na
África equatorial, a educação das crianças é confiada a pessoas idosas,
geralmente estranhas à família acha que a fiandeira inicia a adolescente
perturbada com a sua metamorfose. A teoria freudiana interpreta o fuso como um
emblema fálico.
Loeffler-Delachaux
(Symbolisme des contes de fées, 1949), observa as prostitutas sagradas doa
templos de Afrodite que se apresentavam com a cabeça cingida por um fio; esse
penteado foi adotado por Ariadne cujo nome significaria fuso, e depois
baseando-se na palavra fenícia Khr, demonstra que a palavra cruz (de onde
provém cruzamento) relaciona-se à atividade sexual; e em inglês arcaico Rod
significa ao mesmo tempo, cruz ou pênis. Depois de sua curiosa demonstração, o
autor conclui que o fio representa a perpetuação da espécie.
É
exato que em L’adroite princesse (A hábil princesa), as rocas de fiar das duas
princesas Nonchalante e Babillarde se quebraram quando elas foram seduzidas e
que o rei soube que só “a roca de Finette permanecera intacta”. Laideronnette,
instruída pela sua boa fada, acalma sua repugnância pelo Serpentin vert.
Brynbild mergulha num sono letárgico com a picada de um , espinho. (Beauvois,
Histoire légendaire des francs, V) (História lendária dos francos).
Loeffler-Delachaux
dá também uma significação cósmica ao fuso que simbolizaria “o começo do dia ou
a origem de um mundo no momento em que os átomos que o constituem são
polarizados pelo magnetismo cósmico”.
4. — As interdições
Para
Saintyves essas interdições eram no princípio do ano, pois fiar é ligar e o
bobinamento podia frear o movimento do renovamento. É um ritual mágico que
muito se aproxima da superstição.
5. — As Belas adormecidas
Além
da Valkyrie Brynhild adormecida por Odin, lembramos também o sono de Adônis e
Osiris, a inatividade da virgem Perséfone.
O
conto dinamarquês da compilação de Svend-Grundvjg (H. Husson) menciona o sono
de uma jovem mulher que durou sete anos; Loys Brueyre (Contes populaires de la
Grande-Bretagne), cita La princesse grecque et le jeune jardinier (A princesa
grega e o jovem jardineiro); Vieillesse d’Oisin (Velhice de Orsin);
L’Enchantement du comte Gérald (O encantamento do conde Geraldo), Musique du
ciel (Música do céu); Les escaliers du géant Mac Mahon (As escadas do gigante
Mac Mahon). Uma jovem camponesa adormece assim na floresta e desposa o terceiro
cavaleiro (Bujeaud, Chanson populaire de l’Ouest, 1866). 0 filho do pescador
desperta a princesa Tournesol (Luzel, quinto relatório dos Arquivos das missões
científicas). A história de Suria Bai (Frère, Old Beccan Days) é mais completa.
Filha de uma leiteira, raptada pelas águias, é arranhada pelo filho de uma
bruxa e adormece. O rajá desperta-a e a esposa; a primeira esposa do rajá
afoga-a e Sourya se transforma então em várias plantas para enfim encontrar sua
mãe e o amor do rajá.
Branca
de Neve (Grimm) assemelha-se com Suria Bai; as águias são substituídas pelos
sete anões, a unha venenosa por um pente venenoso. Branca de Neve não se
transforma em flores mas deitada no seu esquife de vidro recebe os lamentos dos
animais. Bidasari, poema malaio (Backer, Plon, 1875), retoma esse tema. Grimm
com Rosa dos bosques se aproxima de Perrault, bem como o conto siciliano Bull,
Perna et Anna Pitré, 1875.
Le
coffret volant (O cofrinho voador) de Andersen é de influência asiática.
No
Roman de Perceforest, Zelandina acordada, se desespera por ser mãe; ela se
casará finalmente com Troylus seu amante, mas à brutalidade desse conto
segue-se a suavidade do jovem que se ajoelha diante da princesa ou dá-lhe um
casto beijo.
Com
o Pentameron (o sol, a lua, e Tália), o príncipe é casado; a jovem que se torna
mãe sofre a cólera da esposa que quer mandar matar os filhos de sua rival. No
conto francês tudo se ameniza e idealiza. O sono letárgico aparece no Tapete
mágico, Le bonnet invisible (O barrete invisível) (Glinski, Hachette, 1864), no
qual um país inteiro é adormecido por castigo celeste como em Mil e uma noites
(História do cavalo encantado).
João,
o Urso, liberta Pomme d’Or (Conto de Provença) e o cavalo encantado nos Contes
français de Carnoy, 1885).
O
poeta cretense Epiméride, menciona, seiscentos anos antes de Jesus Cristo, o
sono de um jovem que penetrou numa caverna, onde dorme durante cinqüenta e sete
anos.
A
caverna dos sete adormecidos é célebre no Oriente; murada por ordem do
imperador Décio em 251, os irmãos mártires lá dormiram cento e cinqüenta e sete
anos. Finalmente o imperador Frederico Barba-Roxa dorme ainda debaixo da
montanha de Kyffhoeuser na região de Turíngia.
As
princesas dormem “como as lembranças no fundo de nosso inconsciente” e o
príncipe encantado que as desperta é “nosso consciente chamando as imagens
ancestrais necessárias à sua ação“ (Loeffler-Delachaux). Algumas dessas
princesas são apenas encerradas numa torre, um poço “postas à margem da ação”. É
o caso do conto tártaro Ac-Beiaz, filha de Abdala Yusuf (edição Lehoucq, 1783).
Esses
fatos sugerem as cerimônias iniciáticas — sala de reflexos, esquife — onde o
neófito se recolhe fora de todo o contacto humano. Essa forma de lenda se
assemelha talvez aos misteriosos poços das igrejas onde os penitentes deviam
ser mergulhados antes da absolvição (Gosselin); diz-se ainda “a Verdade vem do
poço”. Este gesto é tão simbólico quanto a água, é purificadora.
Quanto
aos despertares, corresponderiam à lei cíclica de periodicidade.
6. — A floresta
Nos
hinos védicos o oficiante deve ser isolado e garantido. As portas desse local,
rodeadas por uma paliçada, só se abrem nas horas de festividade (Abri-vos,
portas eternas, cantava o ritual). A proteção e o isolamento do taumaturgo são
feitos ainda por um traçado intransponível para os poderes ocultos nocivos.
Nesse caso a floresta forma esse isolamento ritual. Sigurd substitui essa
floresta por um círculo de chamas. Saintyves nela descobre a árvore de Suria
Bai, a árvore sagrada aos pés da qual Buda foi iniciado. Realmente é na Índia
que se encontra esse símbolo de uma vegetação que é preciso afastar a fim de
poder penetrar a nova civilização. Loeffler-Delachaux observa (Symbolisme des
Contes de fées) que o sono coletivo da corte marcaria o tempo de repouso entre
duas encarnações e que essa inextricável vegetação substitui o gigante
enterrado, no corpo do qual é preciso se introduzir para penetrar no segredo
(lenda finense, o-Kalevala). Mas encontramos mais certamente nessa narrativa um
aspecto do quarto interdito. Para esse autor, a penetração no corpo da pessoa
adormecida representa, num sentido profano, a cópula, num sentido sagrado, a
imagem da invasão do consciente no inconsciente, num sentido iniciático, a
descoberta de arcanos de uma civilização desaparecida.
1. — Motivos
a)
Esses dois contos têm grande analogia. Loys Brueyre (Contes populaires de la
Grande-Bretagne) observa duas tradições nas quais se confundem. O anel e o
chinelo desempenham o mesmo papel e Miss Mariam Roalfe Cox estuda as suas
trinta versões (Cinderella, Londres, 1893).
b)
Pele de Burro — O rei promete à rainha moribunda só desposar uma mulher mais
bela do que ela (Perrault) ou aquela em cujo dedo servisse o anel da rainha
(Sicília, 159, 186; Rússia, 171, 172; Noruega, 181; Portugal, 184); ou que
pudesse vestir os mesmos vestidos (Grécia, 176; escocês, 151) ou os sapatos
(italianos, 134, 150). Ora, só a filha do rei preenche as condições. Para fugir
a essa união criminosa, a princesa formula três desejos que o rei consegue
satisfazer. Disfarçada, foge e serve miseravelmente em casa de um príncipe que
descobre quem é a pretensa serva e esposa-a.
c)
Gata Borralheira — Tratada por suas irmãs como uma empregada, Gata Borralheira,
por uma ajuda exterior — fada, animais — consegue ir três vezes ao baile onde
encontra o príncipe; mas terminando o encantamento numa hora definida, a
heroína, na fuga, perde seu sapatinho que permite ao príncipe encontrá-la e
esposá-la.
2. — Variantes
a)
Pele de Burro — O incesto forma o ponto de partida desse conto. Por esse motivo
Deulin pensa em Prajapati, senhor da criação, que violentou sua filha Uchar. Em
1550, com Straparole (primeira noite, conto IV), o príncipe Thibaut quer
desposar sua filha Doralice. Na Histoire de Sainte Dipne (História de Santa
Dipne) (Ribardeneira, Fleur des vies de saints, 1616) (Flor das vidas de
santos), o rei pagão da Irlanda tenta desposar sua filha Dipne e finalmente
mata a fugitiva; é Pele de Burro sem seu maravilhoso. Se Luzel (5o. relatório
das Missões Científicas), Schleicher (Litaüische Màrchen), relatam lendas
semelhantes, Deulin cita outras variantes tais como a Belle Hélène de
Constantinople (Bela Helena de Constantinopla), onde o suposto parto de animais
lembra o Chevalier au cygne (Cavaleiro do cisne).
Num
conto hindu (Le trône enchanté) (O trono encantado), a princesa casa com um
burro que se metamorfoseia em príncipe. Pernette, conforme Bonaventure de
Perriers (Nouvelles Récréations et Joyeux Devies) veste uma pele de burro para
enojar um amigo. Se Pétriosa (O Pentameron) se transforma em ursa, Noel du Fail
(1547) e Grimm aproveitam a idéia (La reine dos abeilles) (A rainha das
abelhas), La gardeuse d’oies (A guardadora de gansos), La vrai fiancée (A
verdadeira noiva). Enfim a extraordinária cozinheira enegrecida com sebo de
Peau de toutes les bêtes (Pele de todas as feras) (Grimm), que casa com o
príncipe depois de aparições que se assemelham às de Roberto, o Diabo.
b)
Gata Borralheira — A sandália da cortesã Rodopis foi levada por uma águia e
caiu subitamente diante do faraó admirado; Rodopis descansa agora sob a
terceira pirâmide (Estrabão, liv. XVII). Ellen (Histoires diverses, XIII)
reproduz essa anedota para glória do rei Psametico. Cosquin regista dois contos
anamitas nos quais gralhas levam os sapatos dourados da Gata Borralheira ao
palácio real. Mas geralmente a heroína perde os sapatos fugindo. Lembramo-nos
de Penélope, de Berta dos pés grandes (Henry Pourrat, Marie Cendron, t. I).
Ei-la num conto malgaxe (Ferrand, 1893, nº 35), mas depois de Finette Cendron,
Landes relata contos anamitas (Saigon, 1886) e Leclêre, versões tjame e
cambodgeana. Se Miss Cox anotou essas variantes, Cosquin firmou algumas versões
cabilas, silesianas, islandesas (Contos Populares, t. II). Realmente esse
ensaio do sapatinho constituiria o rito da eleição, a posse de um novo lar.
Temos um exemplo em Rute (IV, 7-10) no qual Booz recebe dessa maneira Rute, a
Moabita.
3. — Interpretações
a)
Para Gubernatis, a aurora, perseguida por seu pai, veste o casaco da noite;
para H. Husson, Ch. Ploix, a aurora se oculta sob a bruma a fim de se entregar
ao sol levante. Conforme versões nórdicas, Loys Brueyre vê nessas versões, o
casamento ritual do ano com o novo sol. Saintyves pensa na evocação do
carnaval, liturgia primaveril na qual as duas heroínas vestem os trajes e os
atributos de uso.
b)
O traje — Esse revestimento de peles de animais consta do Gênese (III, 21). “E
Deus fez para o Homem e para a Mulher roupas de peles e com elas os vestiu”;
ora, conforme o esoterismo, toda matéria universal é viva. Esse disfarce que
muda a personalidade assemelha-se ao fenômeno da reencarnação que encontramos
na Índia. Se Gata Borralheira usa vestidos que se assemelham às estações ou ao
tempo (Rússia 153; Grécia 176), Miss Frère refere-se a um conto hindu no qual
uma jovem disfarça-se em mendiga (retomado no conto toscano 285). No folclore
italiano as virgens encerram-se em estátuas de velhas e algumas vezes em sua
pele (Cosquin). O sapatinho de veiros denota a pureza e a beleza. Encontramos
essa transformação em Riquet à la Houppe. c) O nome de Gata Borralheira — Mine
d’Aulnoy e Perrault referem-se às cinzas da lareira e o Pentameron à Gata das
Cinzas. Saintyves, ao estudar essas variantes, é de opinião que as cinzas
desempenham papel degradante; é a humilhação, a penitência. Ulisses, humilhado
por Areté e Alcínoo, senta-se nas cinzas; os hebraicos cobrem a cabeça com
cinzas em sinal de luto. Para Loeffler-Delachaux, Gata Borralheira é uma vestal
presa ao culto do Sol, da Luz e do Fogo; ora, o fogo é o símbolo da Vida e do
Amor.
d)
A madrasta — Freqüentemente a madrasta é representada por uma feiticeira (Cox
Bulgária 127; Irlanda 9 e 10; anamita 68 e 69); às vezes por uma mágica (Cox
Eslováquia 33; Grécia 17; Noruega 67, 110, 70); Luzel (Contes de Basse-Bretagne,-
III (Contos da Baixa-Bretanha); Le chat noir (O gato negro) e Saintyves —
confundem-na com o ano velho.
e)
As ajudas — As ajudas que vêm socorrer são fadas, animais — muitas vezes
pássaros — e até a defunta mãe (Cox, Contos dinamarqueses 38, 43, 64;
norueguês, 87; Grimm 2); algumas vezes cultuam-se os ossos dos animais
protetores (contos tjames 69). Desparmet (Contes populaires) menciona ajudas
semelhantes.
f)
As carruagens — Passeiam os deuses no Olimpo e conduzem as fadas aos batizados.
Os coches são os veículos das forças cósmicas e da alma durante o decorrer. da
reencarnação (Arjuma no Bagavad-Gita). — Os animais têm significação alegórica;
Loeffler-Delachaux diz que o carro do sol é puxado por cavalos brancos e que as
fadas podem ter carruagens de paz ou de cólera (La biche au bois de Perrault).
Na Finlândia, a carruagem é substituída pelo trenó; o garanhão representa a
energia sexual libertada; esses raptos de mulheres figuram na Calevala, Le
joyeux Lemmikaïgen. Os corcéis não podem ser emprestados (Gracieuse et Percinet
de Perrault, La gardeuse d’oies de Grimm.; o Pentameron.
g)
Objeto denunciador — Gata Borralheira e Pele de Burro são reconhecidos graças a
um objeto perdido (sapatinho), ou dado como penhor (anel, colar, alfinete,
relógio, chave). O anel sem começo nem fim, liame mágico da vida, talismã, como
a pulseira ou o colar, simboliza ritualmente o encadeamento de duas vidas. É
encontrado numa iguaria e permite o descobrimento da heroína disfarçada.
Vimos
anteriormente que a ajuda sobrenatural vem muitas vezes de um pássaro. Totem
individual ou gênio protetor, esses animais alados são agentes de união,
confidentes; em Florine., Serpentin vert, puxam a carruagem da bela que vai ao
encontro de seu príncipe encantado. Simbolizam os sonhos ternos, os beijos, as
carícias; são prestativos, permitem encontrar a coroa de ouro do rei (Grimm,
Les deux compagnons en tournée) (Os dois companheiros em tournée); procura
distrair os prisioneiros (Andersen, Les cygnes sauvages) (Os cisnes selvagens).
Prince et princesse (Príncipe ou princesa), ou previnem dos perigos (Carnoy, Le
fidèle Jean; tema do aprendiz feiticeiro). L’oiseau bleu (O pássaro azul) (Mme.
d’Aulnoy) e ele próprio é o príncipe encantado amado por Florine.
O
pássaro muitas vezes branco — desempenha papel primordial no tema de o pássaro
da verdade. Para curar uma rainha; para defender uma pessoa, é preciso
encontrar três objetos encantados: a árvore que canta, o pássaro que fala e a
água de ouro (Carnoy, Contes français). Madrastas impelem crianças nessa
aventura perigosa e num mundo desértico — o do Graal — moços foram
transformados em pedra por não serem capazes de respeitar o pacto; o malefício
desaparecerá assim que o herói conseguir apoderar-se dos objetos maravilhosos.
Para atingir a Árvore da vida é preciso atravessar uma região desértica; ora,
essa árvore está no centro do Paraíso terrestre, no centro de Jerusalém
celeste; tem doze frutos e talvez devamos ver a concordância que há com os doze
Aditias. Esse tema aproxima-se muito do. da demanda do Graal e aliás, conforme
Orígenes, o próprio Cristo é a árvore da vida. “O Cristo que é a virtude de
Deus, a Sabedoria de Deus é também a árvore da vida pela qual devemos ser
tentados,”
Muitas
vezes esse tema liga-se ao do Chevalier au cygne, romance da Idade Média. A mãe
do rei anuncia falsamente que sua nora deu à luz cães e gatos com o intuito de
mandar matar as crianças e repudiar a esposa detestada. Mas um vassalo condoído
não pode cometer esse crime horrível; entrega as criancinhas a um eremita e
apenas tira-lhes o colar de ouro. As crianças que perderam assim o poder de um
pentáculo mágico, se transformam em cisnes. Depois de muitas tribulações,
encontram novamente sua forma primitiva com a posse do seu colar.
Cosquin
menciona essas variantes nos seus Contes lorrains (Contos lorenos). Mais
conhecido do que o conto siamês (Asiatic Researches, 1836), é o de duas irmãs
que têm ciúmes da irmã caçula nas Mil e uma noites, que se assemelha ao conto
caucasiano traduzido por Schiefner (Mémoires de l’Académie des Sciences, t.
XIX). Este último tema é o que mais liga ao tema inicial de Pássaro da verdade.
Pois
finalmente toda a verdade é revelada por esse pássaro falador. Muitas vezes
esse papel é desempenhado por um ancião (Grimm 96; Gubernatis; Carnoy). Mme
d’Aulnoy retoma esse tema em La princesse Belle-Etoile (A princesa
Bela-Estrela) e Henry Pourrat (Trésor des Contes, t. I (Tesouro dos Contos)
aproveitou um conto semelhante.
Observemos
que muitas vezes é uma jovem que leva a bom termo essa busca perigosa. Pela sua
vontade, maior do que a sua força, ela fará com que cesse o malefício que reina
na região e restitui dessa forma a vida a esses cavaleiros malogrados que foram
transformados em pedra. O paralelo com o Graal é evidente. As vezes, porém, a
jovem muito frágil, serve-se de um ardil: é o artifício de tampar os ouvidos
com cera a fim de não ouvir o horroroso tumulto; o tema não é novo. A heroína
se apodera de três objetos maravilhosos e ao voltar esposa o ancião compadecido,
o que estava encarregado de aconselhar; é o eremita iniciador de João, o Urso.
Com esse casamento o personagem é libertado e o ancião se transforma num
príncipe encantado.
1. — O motivo
Collin
de Plancy descreve a história de uma camponesa de Finistère que deu ouvidos aos
propósitos de um desconhecido; volta com o rosto enegrecido e macilento;
encontrou o diabo, o espírito da astúcia. No conto de Grimm (26) e na maioria
das outras versões a menina devorada pode ser retirada do ventre do lobo. Em
Perrault o fim trágico é um castigo desproporcional ao erro.
2. — Interpretações
Se
Perrault vê nesse conto uma moral que proibe às moças conversarem com
desconhecidos pelo caminho — tema da proibição violada — Husson pensa no mito
védico de Vartica, no qual o Acvins são os crepúsculos e a adolescência, uma
aurora interceptada pelo “sol devorador sob a forma de um lobo” Essa escuridão
pode ainda ser o inverno (Lefèvre, Dillaye). Para Ploix o lobo é o inverno.
Saintyves nele vê uma rainha de maio: a cor vermelha sugere a alegria,
atemoriza as feiticeiras enquanto que o bolo e o vinho — o vinho de maio seriam
oferendas rituais. Essa alegria mágica envolvendo o sol novo teria sido
resumida na versão francesa onde o clima é mais sereno. As versões nórdicas são
mais completas. Depois da permanência no corpo do lobo — espécie de
aprisionamento que encontramos no conto O lobo e os sete cabritinhos, de Grimm
— O chapeuzinho vermelho sai da barriga do lobo graças ao auxílio de um
caçador. Pretendeu-se ver nessa lenda a interpretação do ciclo estacional.
Esse
conto de origem iniciática interpreta a luta de uma criança franzina contra o
papão.
1. — Interpretações
Para
Husson, o Pequeno Polegar é a luz da manhã; — na floresta — durante a noite —
ele joga seixos — as estrelas; o sol — o papão — devora suas crianças, os
primeiros raios do alvorecer Saintyves pensa nas provações de iniciação; o
Pequeno Polegar, franzino antes da iniciação, torna-se poderoso. Essa
transformação para a virilidade efetua-se nesse recinto sagrado representado
pela floresta. As fontes védicas são, desta forma, aparentes para Cosquin e P.
Régnaud (1897).
2. — Os temas
É
um anão ou uma criatura franzina; sua inteligência ativa permite-lhe triunfar
do gigante de espírito lento. É também, Tom Ponce, cavaleiro do rei Artur
(Brueyre); em Grimm, (37, 45) na Dinamarca, na Áustria, é pequeno como um
dedinho. Prudente, o Pequeno Polegar demarca o caminho com o auxílio de
pequenos seixos ou com um rasto de cinza (contos de Mekidech, Cabilia).
Graças
à substituição de objetos, consegue fugir com seus irmãos. O papão — ou o diabo
-. enganado mata a sua progenitora. Saintyves observa numerosas variantes deste
tema que é encontrado nos contos berberes (H. Basset), ou nos de Lorraine
(Histoire de Courtillon).
Finalmente,
por meio de uma falsa inépcia, de uma fingida ignorância, o herói consegue
livrar-se do próprio papão: por exemplo, pergunta ao feiticeiro como poderia
penetrar num forno; o papão nele penetra e fica trancado. É o tema da caldeira
que aparece nas variantes de Barba-Azul. Saintyves evoca desta forma a
iniciação dos guerreiros, nas tribos do Sul da África, por ocasião da cerimônia
da circuncisão.
3. — O papão
Pretendeu-se
ver no papão o símbolo das devastações húngaras; mas para Gaston Paris, ele
herdeiro dos racsas da Índia. O papão — ou diabo — Saintyves nele vê uma
sobrevivência dos ritos de antropologia e refere os contos zulus, malgaxes
(Renel). Para Loeffler-Delachaux ele é Saturno que devora seus filhos à medida
que Cibele (a Terra) os põe no mundo.
4. — Os objetos mágicos
Os
pantufos mágicos permitem a Chao Gnoh (Cambodge) viajar no ar. As botas de sete
léguas são novamente mencionadas em Sébillot (Mélusine., III), Cosquin; os
sapatos mágicos nos contos de Cachemira (Brihat-Katha), Madagascar (Capa),
Pérsia (Tutiname); são da mesma natureza que o chapéu da invisibilidade ou a
espada do poder. Hermes era o deus das sandálias aladas e ocultava os bois de
Apolo como freqüentemente o faz o Pequeno Polegar (Gastão Paris).
A
troca de trajes, túnicas, anéis, penteados, induz o papão ao erro (Saintyves,
Deulin). No Ino de Eurípedes, Temisto mata seus filhos tendo Ino, sua rival,
trocado as túnicas. L. Brueyre menciona uma variante escocesa, bem como Carnoy
(Courtillon) e Sébillot (La Perle e le Petit-Peucerot) (A Pérola e o Pequeno
Peucerot).
Existe,
assim, grande número de contos nos quais um grupo de crianças perde-se,
intencionalmente, na floresta. O tema do Pequeno Polegar se aparenta ao do
Cavaleiro do cisne, no qual os filhos do rei, perdidos intencionalmente por
ordem de sua avó ciumenta, encontram um auxílio protetor antes de retornarem ao
meio a que têm direito. Perseu, Édipo, Ciro, Páris, Rômulo são, da mesma forma,
expostos à morte, mas salvos, cumprem, sozinhos, a prediçâo anunciada. Essas
crianças solitárias são muitas vezes salvas por animais selvagens ou pastores,
como Mowgli, o menino-lobo, imortalizado por Kipling. Houve, contudo, casos
muito mais pungentes e precisamos nos lembrar particularmente daquelas pobres
criaturas humanas, Amala e Camala, que viveram com animais e morreram em,
aproximadamente, 1930. Moisés foi recolhido por uma princesa egípcia e João,
por uma loba ou por uma ursa. O leite colhido desse animal compassivo deu-lhe
uma força excepcional. Esse adolescente leva uma vida vegetativa até o dia em
que encontra o primeiro homem, o iniciador; é a adolescência de Parsifal no
Graal ou o de um dos numerosos heróis do Pássaro da Verdade. João, o Urso pode
tornar-se um cavaleiro cortês e instruído, cuja força sobre-humana faz com que
seja classificado acima dos seus companheiros,; ascende assim aos mais altos
graus; contudo, continua um jovem de espírito estreito. Esse pesado gorducho
vive nos contos de Cosquin (Contes lorrains), Grimm (Le jeune géant) (O jovem
gigante), Asbjoernsen e essa estupidez aparece ainda no conto caucasiano
Oreille d’ours (Orelha de urso). Geralmente, esse jovem que cresce em força e
beleza executa trabalhos extraordinários; pode ter tido um nascimento
comparável ao de Roberto, o Diabo; mas João, o Urso consegue triunfar
continuando bom para os seus semelhantes; por fim desposa uma princesa (Carnoy,
Contes français, 1885).
Ritual
nupcial, Riquet mostra o poder mágico do amor sobre o ente amado.
1. — As variantes
Saintyves
analisa esses contos nos quais o amor transforma a cônjuge. A mutação animal
pode ser completa e constante (Le crapaud ) (O sapo) ou episódica (Le loup
gris, L’homme Crapaud) (O lobo cinzento, O homem-sapo). O marido pode deixar
sua mulher que não soube guardar um segredo (Le roi de Pietraverde). O homem,
transformado em bicho, torna ao seu estado assim que uma mulher se decidir a
beijá-lo ou a desposá-lo. (A Bela e a Fera, O Pentameron). As vezes a esposa é
o personagem encantado (Perceval, La chaise de crapauds) (Parsifal, A cadeira
dos sapos).
2. — Interpretações
A
bela — a aurora — desposou o Sol que obscureceu; mas ao tornar-se cintilante
ela deve segui-lo do Oriente ao Ocidente até a porta do palácio da noite.
Essa
proibição de interrogar o ente amado significa para Saintyves o respeito de
tabus nupciais. La veuve et ses filles torna-se ma das variantes de Barba-Azul:
a história do casamento infeliz. Essas metamorfoses se referem às práticas de
sociedades secretas pagãs ou religiosas: os membros, durante sua iniciação,
revestiam peles de animais ou máscaras de animais.
É
assim que essas narrativas mágicas de metamorfoses deram origem aos Pururavas,
a Psiquê, a Riquet à la Houppa ou aos contos de Mme Leprince de Beaumont (Kusa
le prince spirituel) (Cusa, o príncipe espiritual).
1. — Variantes
Se
encontramos um conto semelhante em Pentameron (Gagluso), o conto de Zanzibar
Sultant Darai assemelha-se muito ao nosso Gato de Botas. Mas quando a gazela
benfeitora adoece, Darai esquece o que lhe deve; somente o povo lhe dedicará
funerais públicos.
2. — Interpretações
A
raposa da versão mongol é, sem dúvida, esse animal sagrado da Ásia
mediterrânica, o gato é um animal feiticeiro (Europa); os gatos pretos
acompanham as feiticeiras (Bodin). O gato calçado como os oficiantes persegue
ritualmente a raposa e sem dúvida liga-se à liturgia egípcia: é o servidor do
Sol.
Esse
papel de proteção relaciona-se ao ritual da instauração dos antigos padres-reis
das sociedades primitivas. Saintyves observa que o casamento prepara a ascensão
ao trono e o futuro esposo troca de nome bem como o futuro rei.
Purificado
pelas águas do rio, o herói veste novos trajes, é o cerimonial do coroamento;
os súditos encontrados prestam obediência ao novo rei que toma posse do seu
palácio: ritual de instauração real. Na maior parte dos contos o homem é
ingrato; mas o animal pode demitir o rei que tem obrigações para com o seu
povo.
A
água é o emblema da ressurreição e da vida eterna. Com as águas maternais adquire-se
um corpo novo que é o ritual do batismo. A água, essa fonte de Juvência,
permitirá que Hera volte à virgindade depois de cada imersão na fonte de
Canatos em Nauphie; eis ai uma reencarnação da qual aproveita o nosso marquês
de Carabas.
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1827).
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