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Alma I
É um termo vago, indeterminado, que expressa um
princípio desconhecido, por ém
de efeitos conhecidos que sentimos em nós mesmos. A
palavra alma corresponde
à animu dos latinos, à palavra que usam todas as nações
para expressar o que
não compreendem mais que nós. No sentido próprio e
literal do latim e das línguas
que dele derivam, significa “ o que anima”. Por isso se
diz: A alma dos homens,
dos animais e das plantas, para significar seu
princípio de vegetação e de vida.
Ao pronunciar esta palavra, só nos d á uma idéia
confusa, como quando se diz no
Gênesis: «Deus soprou no rosto do homem um sopro de
vida, e se converteu em
alma vivente, a alma dos animais está no sangue, não
mateis, pois, sua alma.»
De modo que a alma – em sentido geral– se toma pela
origem e causa da vida,
pela vida mesma. Por isto as nações antigas acreditaram
durante muito tempo que
tudo morria ao morrer o corpo. Ainda é difícil
desentranhar a verdade no caso das
histórias remotas, há probabilidade que os egípcios
tenham sido os primeiros que
distinguiram a inteligência e a alma, e os gregos
aprenderam com eles a distinção.
Os latinos, seguindo o exemplo dos gregos, distinguiram
animus e anima; e nós
distinguimos tamb ém alma e inteligência. Porém o que
constitui o princípio de
nossa vida, constitui o princípio de nossos
pensamentos? São duas coisas
diferentes, ou formam um mesmo princípio? O que nos faz
digerir, o que nos
produz sensa ções e nos dá memória, se parece ao que é
causa nos animais da
digestão, das sensações e da memória?
Há aqui o eterno objeto das disputas dos homens. Digo
eterno objeto, porque
carecendo da noção primitiva que nos guie neste exame,
teremos que permanecer
sempre encerrados num labirinto de d úvidas e de
conjeturas.
Não contamos nem com um só apoio onde firmar o p é para
chegar ao vago
conhecimento do que nos faz viver e do que nos faz
pensar. Para possuí-lo seria
preciso ver como a vida e o pensamento entram em um
corpo. Sabe um pai como
produz a seu filho? Sabe a mãe como o concebe? Pode
alguém adivinhar como se
agita, como se desperta e como dorme? Sabem alguns como
os membros
obedecem a sua vontade? Terá descoberto o meio pelo
qual as idéias se formam
em seu cérebro e saem dele quando o deseja? Débeis
autômatos, colocados pela
mão invisível que nos governa no cenário do mundo, quem
de n ós poderia ver o
fio que origina nossos movimentos?
Não nos atrevemos a questionar se a alma inteligente é
espirito ou matéria; se foi
criada antes que nós, se sai do nada quando nascemos;
se depois de haver nos
animado no mundo, vive, quando nós morremos, na
eternidade. Essas questões
que parecem sublimes, só são questões de cegos que
perguntam a cegos: que é a
luz?
Quando tratamos de conhecer os elementos que encerra um
pedaço de metal, o
submetemos ao fogo em um crisol. Possuiríamos crisol
para submeter a alma? Uns
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dizem que é espirito; porém, que é espírito? Ninguém
sabe, é uma palavra tão
vazia de sentido, que nos vemos obrigados a dizer que o
espírito n ão se vê,
porque n ão sabemos dizer o que é. A alma é matéria,
dizem outros. Porém, o que
é matéria? Só conhecemos algumas de suas aparências e
algumas de suas
propriedades; e nenhuma destas propriedades e apar
ências parece ter a menor
relação com o pensamento.
Há também quem opine que a alma está formada de algo
distinto da matéria.
Porém que provas temos disso? Se funda tal opinião em
que a matéria é divisível e
pode tomar diferentes aspectos, e o pensamento n ão.
porém, quem teria dito que
os primeiros princípios da matéria sejam divisíveis e
figuráveis? é muito
verossímil que não o sejam; seitas inteiras de
filósofos sustentam que os
elementos da matéria não têm forma nem extensão. O
pensamento n ão é
madeira, nem pedra, nem areia, nem metal, logo o
pensamento não pode ser
matéria. Mas esses são raciocínios débeis e atrevidos.
A gravidade não é metal,
nem areia, nem pedra, nem madeira; o movimento, a
vegeta ção, a vida, não são
nenhuma dessas coisas; e, sem dúvida, a vida, a
vegetação, o movimento e a
gravitação são qualidades da mat éria. Dizer que Deus
não pode conseguir que a
matéria pense, é dizer o absurdo mais insolente que se
tenha proferido na escola
da demência. N ão estamos certos de que Deus tenha
feito isso; porém se que
estamos certos de que poderia fazê-lo. Que importa tudo
o que se tenha dito e o
que se dirá sobre a alma? Que importa que a tenham
chamado entelequia,
quintessência, chama ou éter; que a tenham tomado por
universal, incriada,
transmigrante, etc., etc? Que importam em questões
inacessíveis à razão, essas
novelas criadas por nossas incertas imaginações? Que
importa que os pais da
Igreja dos quatro primeiros séculos acreditassem que a
alma era corporal? Que
importa que Tertuliano, contradizendo-se, decidisse que
a alma é corporal,
figurada e simples ao mesmo tempo? Teremos mil
testemunhos de nossa
ignorância, porém nem um só oferece vislumbre da
verdade.
Como nos atrevemos a afirmar o que é a alma? Sabemos
com certeza que
existimos, que sentimos e que pensamos. Desejamos ir
mais além e caímos em
abismo. Submergidos nesse abismo, todavia se apodera de
nós a louca
temeridade de questionar se a alma, da qual não temos a
menor idéia, se criou
antes que n ós ou ao mesmo tempo que nós, e se perece
ou é imortal.
A alma e todos os artigos que são metafísicos, devem
ser submetidos
sinceramente aos dogmas da Igreja, porque sem dúvida a
revelação vale mais
que toda a filosofia. Os sistemas exercitam o espírito,
porém a fé o alumia e o
guia.
Com freqüência pronunciamos palavras sobre as quais
temos idéia muito
confusa, e algumas vezes ignoramos o significado. Não
está neste caso a palavra
alma? Quando a lingüeta ou válvula de um fole está
estragado e o ar que entra no
ventre do fole sai por algumas das aberturas que tem a
válvula, e este n ão está
comprimido pelas duas paletas, e não sai com a
violência que se necessita para
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atiçar o fogo, as criadas dizem: – Está descomposta a
alma do fole. Não sabem
mais, e essa questão não turva sua tranqüilidade. O jardineiro
fala da alma das
plantas, e as cultiva bem, sem saber o que significa
esta palavra. Em muitas de
nossas manufaturas, os operários d ão a qualificação de
alma a suas máquinas; e
nunca discutem sobre o significado de tal palavra; não
ocorre isso com os
filósofos.
A palavra alma entre nós, em seu significado geral,
serve para denotar o que
anima. Nossos antepassados os celtas, deram à alma o
nome de seel, do que os
ingleses formaram a palavra soul, e os alemães a
palavra seel, e provavelmente
os antigos teutões e os antigos bretões não disputariam
sobre essa palavra.
Os gregos distinguiam três classes de alma: a alma
sensitiva ou a alma dos
sentidos (vê-se aqui porque o Amor, filho de Afrodite,
sentiu tão veemente paixão
por Psiquê, e porque Psiquê o amou ternamente): o sopro
que dá vida e
movimento a toda máquina, e que nós traduzimos por
espírito; e a terceira classe
da alma que, como nós, chamaram inteligência. Possuímos
pois, três almas, sem
ter a mais ligeira noção de nenhuma delas. São Tomás de
Aquino admite estas
três almas, como bom peripatético, e distingue cada uma
delas em três partes:
uma está no peito, outra em todo o corpo e a terceira
na cabeça. Em nossas
escolas n ão se conheceu outra filosofia até o século
18. E desgraçado o homem
que tomasse uma dessas almas por outra!
Há, sem dúvida, motivo para este caos de idéias. Os
homens entendiam que
quando os excitavam as paixões do amor, da cólera o do
medo, sentiam certos
movimentos nas entranhas. O f ígado e o coração foram
assinalados como sendo o
local das paixões. Quando se medita profundamente,
sentimos certa opressão nos
órgãos da cabeça, logo a alma intelectual está no
cérebro. Sem respirar n ão é
possível a vegetação e a vida; logo, a alma vegetativa
está no peito, que recebe o
sopro do ar.
Quando os homens viram em sonhos seus pais e amigos
mortos, dedicaram-se a
estudar o que lhes havia aparecido. Não era corpo,
porque o havia consumido uma
fogueira, o mar o tinha tragado e havia servido de
pasto aos peixes. Isso, não
obstante, sustinha que algo lhes havia aparecido, posto
que o tinham visto; o
morto havia lhes falado e o que estava sonhando lhes
dirigia perguntas. Com
quem haviam conversado dormindo? Se imaginaram que era
um fantasma, uma
figura aérea, uma sombra, os manes, uma pequena alma do
ar e fogo
extremadamente delicada, que vagava por não sei onde.
Andando o tempo, quando quiseram aprofundar este
estudo, convencionaram que
tal alma era corporal, e esta foi a idéia que dela teve
a antigüidade. Chegou depois
Platão, que utilizou essa alma de tal maneira que se
chegou a suspeitar que a
separou quase completamente da matéria; porém esse
problema n ão se resolveu
até que a fé veio iluminar -nos.
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Em vão os
materialistas alegam que alguns pais da Igreja não se expressaram
com exatidão. Santo Irineu diz que e alma é o sopro da
vida, que só é incorporal
se comparada ao corpo dos mortais, porém que conserva a
figura de homem para
que se a reconheça.
Tertuliano se expressa deste modo: «A corporalidade da
alma ressalta no
Evangelho; porque se a alma não tivesse corpo, a imagem
da alma não teria
imagem corpórea». Em vão esse mesmo filósofo refere à
vis ão de uma mulher
santa que viu um alma muito brilhante e da cor do ar.
Alegam que Santo Hilário disse, em tempos posteriores:
«Não há nada que não
seja corporal, nem no céu nem na terra, nem no visível
ou invisível; tudo está
formado de elementos, e as almas têm sempre uma
substância corporal.
Santo Ambrósio, no século 6, disse: «Não conhecemos
nada que não seja
material, excetuando-se a Santa Trindade.»
A Igreja decidiu, por unanimidade, que a alma é
imaterial. Os citados santos
incorreram em um erro que era então universal: eram
homens, por ém não se
equivocaram a respeito à imortalidade, porque os
Evangelhos evidentemente a
anunciam.
Precisamos nos conformar com a decisão da Igreja,
porque n ão possuímos noção
suficiente do que se chama espírito puro e do que se
chama matéria. O espírito
puro é uma palavra que não nos transmite nenhuma idéia;
e só conhecemos
matéria por alguns de seus fenômenos. a conhecemos tão
pouco, que a
chamamos substância, e a palavra substância quer dizer
o que está embaixo;
porém este embaixo está oculto eternamente para nós; é
o segredo do Criador
em todas partes. Não sabemos como recebemos a vida, nem
como a damos, nem
como crescemos nem como digerimos, nem como dormimos,
nem como
pensamos, nem como sentimos.
II
Das dúvidas de Locke
sobre a alma
O autor do artigo Alma, da Enciclop édia, se guiou
escrupulosamente pelas opiniões
de Jaquelet. Porém Jaquelet não nos ensina nada. Ataca
a Locke, porque este
modestamente disse: «Qui çá não seremos nunca capazes
de conhecer se um ser
material pensa ou não, pela razão de que nos é
impossível descobrir por meio da
contempla ção de nossas próprias idéias, se Deus teria
concedido a qualquer
porção de matéria o poder de conhecer-se e de pensar;
ou se uniu a matéria
desse modo preparada uma substância imaterial que
pensa. Com relação a nossas
noções, não nos é difícil conceber que Deus pode, se
assim lhe compraz,
acrescentar à idéia que temos da matéria, a faculdade
de pensar; nem nos é difícil
compreender que possa agregar -lhe outra substância que
possua tal faculdade;
porque ignoramos em que consiste o pensamento, e não
sabemos tampouco a
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classe de substância a que o Ser Todo-Poderoso possa conceder
esse poder, e que
pode criar em virtude da vontade do Criador. Não
encontro contradição em que
Deus, ser pensante, eterno e todo poderoso, dote se
quiser, de alguns graus de
sentimento, de perfeição e de pensamento, a certas
porções de matéria criada e
insensível, e que nos una a ela quando crer conveniente
».
Como acabamos de ver, Locke fala como homem profundo,
religioso e modesto.
Pode se dizer que Locke criou a metafísica (assim como
Newton criou a física) para
conhecer a alma, suas idéias e suas afeções. Não
estudou nos livros, porque estes
poderiam dar instrução errônea; se contentou com se
auto-estudar; e depois de
contemplar-se longo tempo, no tratado do entendimento
humano apresentou aos
homens o espelho onde se havia contemplado. Em uma palavra,
reduziu a
metafísica ao que deve ser: na física experimental da
alma.
Conhecidos são os desgostos que lhe proporcionou o
manifestar esta opinião, que
em sua época pareceu atrevida. Porém era só a
conseqüência da convicção que
tinha da onipotência de Deus e da debilidade do homem.
Não assegurou que a
matéria pensa, porém disse que não sabemos bastante
para demostrar que é
impossível que Deus agregue o dom do pensamento ao ser
desconhecido que
chamamos matéria, depois de ter nos concedido o dom da
gravita ção e o dom do
movimento, que não são igualmente incompreensíveis.
Locke não foi o único que iniciou esta opinião;
indubitavelmente já o abordou
antigüidade, posto que considerava a alma como uma
matéria muito delicada, e
por conseqüência, assegurava que a matéria podia sentir
e pensar.
Esta foi tamb ém a opinião de Gassendi, como se pode
ver nas objeções que fez a
Descartes: é verdade, diz Gassendi, que sabeis que
pensais, porém não sabeis que
espécie de substância sois. Portanto, ainda que seja
conhecida a operação do
pensamento, desconheces o principal de vossa essência,
ignorando qual é a
natureza dessa substância, da que o ato de pensar é uma
das operações. nisso
pareceis ao cego que, ao sentir o calor dos raios
solares e sabendo que a causa é
o sol, acreditara que teria idéia clara e distinta do
que é esse astro, porque se lhe
perguntarem que é o sol, poderia dizer: «É uma coisa
que aquece ». O mesmo
Gassendi, em seu livro titulado Filosofia de Epicuro,
repete algumas vezes que
não há evidencia matem ática da pura espiritualidade da
alma.
Descartes, em uma das cartas que dirigiu a princesa
palatina Elisabet, disse:
«Confesso que por meio da razão natural podemos fazer
muitas conjeturas
respeito ao alma, e acalentar algumas esperanças, porém
não podemos ter
nenhuma segurança». Neste caso, Descartes ataca em suas
cartas o que afirma
em seus livros.
Acabamos de ver que os pais da Igreja dos primeiros
séculos, acreditando na alma
imortal, acreditavam-na ao mesmo tempo, material. Por
isso diziam: «Deus a fez
pensante e pensante a conservar á.”
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Malebranche provou bastante bem que n ós não adquirimos
nenhuma idéia por n ós
mesmos, e que os objetos são incapazes de nos dar.
Disto deduzo que prov ém de
Deus. isto equivale a dizer que Deus é o autor de todas
nossas idéias. Seu
sistema forma um labirinto, no qual uma das veredas
conduz ao sistema de
Espinosa, outra ao estoicismo e a terceira ao caos.
Depois de disputar muito tempo sobre o espírito e sobre
a matéria, acabamos
sempre por não entender. Nenhum filósofo logrou
levantar com suas próprias
força o véu que a natureza tem estendido sobre os
primeiros princípios das cosas.
Enquanto eles disputam, a natureza obra.
III
Da alma
das bestas
Antes de admitir o estranho sistema que supõe que os
animais são umas
máquinas incapazes de sensação, os homens n ão
acreditaram nunca que as
bestas tivessem alma imaterial, e ninguém foi tão
temerário a ponto de se atrever
a dizer que a ostra estava dotada de alma espiritual.
Estavam em acordo as
opiniões e convinham que as bestas haviam recebido de
Deus sentimento,
memória, idéias, porém não espírito. Ninguém havia
abusado do dom de
raciocinar ao ponto de afirmar que a natureza concedeu
às bestas todos os órgãos
do sentimento para que n ão tivessem sentimento.
Ninguém havia dito que gritam
quando se as fere, que fogem quando se as persegue, sem
sentir dor nem medo.
Não se negava então a onipotência de Deus; reconhecendo
que pode comunicar à
matéria org ânica dos animais, o prazer, a dor, a
lembrança, a combinação de
algumas idéias: pode dotar a vários deles, como ao
macaco, ao elefante, ao cão
de caça, o talento para aperfei çoar-se nas artes que
se lhes ensinam. Porém
Pereyra e Descartes sustentaram que o mundo se
equivocava, que Deus dotara
com todos os instrumentos da vida e da sensação aos
animais, com o propósito
deliberado de que careceriam de sensação e de vida
propriamente dita; e outros
que teriam pretensões de filósofos, com a idéia de
contradizer a idéia de
Descartes, conceberam a quimera oposta, dizendo que
estavam dotados de
espírito os animais, e que teriam alma os sapos e os
insetos.
Entre estas duas loucuras, a primeira que nega o
sentimento aos órgãos que o
produz, e a segunda que faz alojar um espírito puro no
corpo de uma pulga, houve
autores que se decidiram por um meio termo, que
chamaram instinto. E o que é o
instinto? é uma forma substancial, uma forma plástica,
é um “não sei quê”. Serei
da sua opinião, quando chameis à maioria das coisas
“não sei quê”, quando tua
filosofia seja tão debilitada que acabe em “não sei
nada”.
O autor do artigo Alma, publicado na Enciclopédia, diz:
«Em minha opinião, a
alma das bestas é formada de uma substância imaterial e
inteligente. Porém, de
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que classe? Deve consistir em um princípio ativo capaz
de sensa ções. Se
refletirmos sobre a natureza da alma das bestas, não
nos aparece nenhum motivo
para crer que sua espiritualização as salve do
aniquilamento.
É para mim incompreensível poder ter idéia de uma
substância imaterial.
Representar -se algum objeto, é ter na imaginação uma
imagem dele, e até hoje
ninguém conseguiu pintar o espírito. Concedo que o
autor que acabo de citar
entenda conceber pela palavra representar. Porém eu
confesso que tampouco a
concebo, como não concebo que se possa aniquilar um
alma espiritual, como não
concebo a criação nem a nada, porque ignoro
completamente o princípio de todas
as coisas.
Se trato de provar que a alma é um ser real, me
contestam dizendo que é uma
faculdade; se afirmo que é uma faculdade como a de
pensar, me respondem que
me equivoco, que Deus, dono absoluto da natureza, faz
tudo em mim, dirige
todos meus atos e pensamentos; que se eu produzisse
meus pensamentos,
saberia que produzo cada minuto, e não sei; que só sou
um autômato com
sensações e com idéias, que dependo exclusivamente do
ser Supremo, e estou tão
submisso a ele como a argila nas mãos do oleiro.
Confesso, pois, minha ignorância, e que quatro mil
volumes de metafísica são
insuficientes para nos ensinar o que é alma.
Um filósofo ortodoxo dizia a um heterodoxo: «Como
conseguiste chegar a crer que
por sua natureza a alma é mortal e que só é eterna pela
vontade de Deus? –
Porque experimentei, contestou o outro filósofo.–Como
experimentaste? Por acaso
morreste? Sim, algumas vezes. Tinha ataques de
epilepsia na juventude e
asseguro que caía completamente morto durante algumas
horas. Depois não
experimentava nenhuma sensação, nem recordava o que me
havia sucedido.
Agora me sucede o mesmo quase todas as noites. Ignoro o
momento que durmo,
e durmo sem sonhar. Só por conjeturas posso calcular o
tempo que dormi. Estou,
pois, morto por seis horas a cada vinte e quatro; a
quarta parte de minha vida». O
ortodoxo sustentou que ele pensava mesmo quando dormia,
por ém sem saber o
que. O heterodoxo replicou: «Creio que penso sempre na
outra vida. Porém
asseguro que raras vezes penso nesta».
O ortodoxo não se equivocava ao afirmar a imortalidade
da alma, porque a fé e a
razão demonstram esta verdade: Porém podia equivocar-se
ao assegurar que o
homem dormindo pensa sempre. Locke confessava
francamente que não pensava
sempre que dormia; e outro filósofo disse: «O homem
possui a faculdade de
pensar, porém esta não é sua essência ». Deixemos a
cada indiv íduo a liberdade e
o consumo de estudar -se a si mesmo e de perder-se no
labirinto de suas idéias.
Não obstante, é curioso saber que em 1730 houve um
filósofo que foi perseguido
por haver confessado o mesmo que Locke, ou seja que n
ão exercitava seu
entendimento todos os minutos do dia e da noite, assim
como n ão se servia
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sempre dos braços e das pernas. Não só a ignorância da
corte o perseguiu, mas
também a ignorância maligna de alguns que pretendiam
ser literatos. O que só
produz na Inglaterra algumas disputas filosóficas,
produz em França covardes
atrocidades. Um francês foi vítima por seguir Locke.
Sempre houve na lama de nossa literatura alguns
miseráveis capazes de vender
sua pluma e atacar até seus mesmos benfeitores. Esta
observa ção parece
impertinente em um artigo que trata da alma; mas n ão
devemos perder nenhuma
ocasião de observar a conduta dos que querem desonrar o
glorioso título de
homem de letras, prostituindo seu escasso talento e
consciência a um vil
interesse, a uma política quimérica e que fazem traição
a seus amigos para adular
os n éscios. Não sucedeu nunca em Roma denunciarem
Lucrecio por haver posto
em verso o sistema de Epicuro; nem a Cícero por dizer
muitas vezes que depois
de morrer não se sente dor, nem acusaram Plínio, nem a
Varrão de ter idéias
particulares acerca da Divindade. A liberdade de pensar
foi ilimitada em Roma. Os
homens de curtos alcances e temerosos de em França se
tem esfor çado em afogar
essa liberdade, mãe de nossos conhecimentos e incentivo
do entendimento
humano, para conseguir seus fins tem falado dos perigos
quiméricos que esta
pode trazer. N ão refletiram que os romanos, que
gozavam de completa liberdade
de pensar, nem por isso deixaram de ser nossos
vencedores e nossos legisladores,
e que as disputas de escola tem tão pouca relação com o
governo, como o tonel
de Diógenes teve com as vitorias de Alexandre. Esta
lição equivale a uma lição
respeito à alma: quiçá teremos algumas ocasiões de
insistir sobre ela.
Ainda adoremos a Deus com toda a alma, devemos
confessar nossa profunda
ignorância respeito ao alma, a essa faculdade de sentir
e de pensar que devemos
a sua bondade infinita. Confessemos que nossos d ébeis
racioc ínios nada encerram
e nada acrescentam; e deduzamos de isto que devemos
empregar a inteligência,
cuja natureza desconhecemos, em aperfeiçoar as
ciências, como os relojoeiros
empregam as molas nos relógios, sem saber o que é uma
mola.
IV
Sobre a alma e
nossas ignorâncias
Fundado nos conhecimentos adquiridos, nos temos
atrevido a questionar se a
alma se criou antes que nós, se chega do nada a
introduzir-se em nosso corpo, a
que idade vem colocar-se entre uma bexiga e os
intestinos, se ali recebe o aporte
algumas idéias, e que idéias s ão estas; se depois de
animar -nos alguns
momentos, sua essência, logo que o corpo morre, vive na
eternidade; se sendo
espírito, o mesmo que Deus, é diferente deste ou é
semelhante. Essas questões
que parecem sublimes, como dizemos, são as questões que
entabulam os cegos
de nascimento respeito da luz.
O que nos tem ensinado os filósofos antigos e os
modernos? Nos tem ensinado
que uma criança é mais sábia que eles, porque este só
pensa não que pode
conseguir. Até agora a natureza dos primeiros
princípios é um segredo do Criador.
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Em que consiste que os ares arrastam os sons? Como é
que alguns de nossos
membros obedecem constantemente a nossa vontade? Que ma
é a que coloca as
idéias na memória, as conserva ali como em um registro
e as saca quando
queremos e tamb ém quando não queremos? Nossa natureza,
a do universo e a
das plantas, estão escondidas em um abismo de trevas. O
homem é um ser que
obra, que sente e pensa: é isso o todo que sabemos; por
ém ignoramos o que nos
faz pensar, sentir e obrar. A faculdade de obrar é tão
incompreensível para n ós
como a faculdade de pensar. É menos difícil conceber
que o corpo de barro tenha
sentimentos e idéias que conceber que um ser tenha
idéias e sentimentos.
Compara a alma de Arquimedes com a alma de um imbecil:
são as duas de uma
mesma natureza? Se é essencial o pensar, pensar ão
sempre com independência
do corpo, que não poder á obrar sem elas; se pensam por
sua própria natureza,
será da mesma espécie a alma que não pode compreender
uma regra de
aritmética, que a alma que mediu os céus? Se os órgãos
corporais fazem pensar a
Arquimedes, por que um idiota, melhor constituído e
mais vigoroso que
Arquimedes, dirigindo melhor e desempenhando com mais
perfeição as funções
corporais, não pensa? A isto se contesta que seu
cérebro não é tão bom; porém
isso é uma suposição, porque os que assim contestam não
sabem. N ão se
encontrou nunca diferença alguma nos cérebros
dissecados; e é ademais
verossímil que o cerebelo de um tonto se encontre em
melhor estado que o de
Arquimedes, que o usou e o fatigou prodigiosamente.
Deduzamos, pois, disto o que antes deduzimos, que somos
ignorantes ante os
primeiros princípios.
V
Da necessidade
da revela ção
O maior beneficio que devemos ao Novo Testamento,
consiste em nos ter revelado
a imortalidade da alma. Inútil foi que o bispo
Warburton tratara de obscurecer tão
importante verdade, dizendo continuamente que «os
antigos judeus desconheciam
esse dogma necessário, e que os saduceus não o admitiam
na época de Jesus».
Interpreta a seu modo as palavras que dizem que Cristo
pronunciou: «Ignorais
que Deus disse: eu sou o Deus de Abra ão, o Deus de
Isac e o Deus de Jacó? Logo
Deus n ão é o Deus dos mortos, e o Deus dos vivos ».
Atribui à parábola do mau
rico o sentido contrário ao que atribuem todas as
igrejas. Sherlock, bispo de
Londres, e outros muitos sábios o refutam; os mesmos
filósofos ingleses acham
escandaloso que um bispo anglicano tenha a opinião
contrária da Igreja anglicana;
e Warburten, ao se ver contrariado, chama ímpios a
ditos filósofos, imitando a
Arlequim, personagem da comedia titulada o Ladrão da
Casa, que depois de
roubar e arrojar os móveis pela janela, vendo que na
rua um homem levava
alguns, gritou com toda a força de seus pulm ões: – Pega
ladrão!
Vale mais bendizer a revela ção da imortalidade da alma
e as das penas e
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recompensas depois da morte, que a soberba filosofia de
homens que semeiam a
dúvida. o grande César não acreditava; disse em pleno
Senado, quando para
impedir que matassem a Catilina, exp ôs seu critério,
segundo o que a morte não
deixava no homem nenhum sentimento, e tudo morria com
ele. Ninguém refutou
esta opinião.
O império romano estava dividido em duas grandes
seitas: a de Epicuro, que
sustinha que a divindade era inútil no mundo, e que a
alma perecia com o corpo; e
a dos estóicos, que sustentava ser a alma era uma
porção da divindade, a qual
depois da morte do corpo voltava a sua origem, isto é,
ao grande todo de onde
havia emanado. Umas seitas acreditavam que a alma era
mortal e outras que era
imortal, por ém todas elas estavam conformes em fugir
das penas e as buscar
recompensas futuras.
Restam todavia bastantes provas de que os romanos
tiveram tal crença; e esta
opinião, profundamente gravada nos corações dos heróis
e dos cidadãos
romanos, os induzia a matar -se sem o menor escrúpulo,
sem esperar que o tirano
os entregasse ao verdugo.
Os homens mais virtuosos de então, que estavam
convencidos da existência de
um Deus, não esperavam na outra vida nenhuma
recompensa, nem temiam
nenhum castigo. Vemos no artigo titulado Apócrifo, que
Clemente, que mais tarde
foi Papa e Santo pôs em d úvida que os primitivos
cristãos acreditassem na
segunda vida, e sobre isto consultou a S ão Pedro em
Cesárea. Não cremos que
São Clemente escreveu a história que se lhe atribui;
porém essa história prova
que o gênero humano necessitava guiar-se pela
revelação. O que neste assunto
nos surpreende é que um dogma tão saudável tenha
permitido que cometam
brilhantes crimes os homens que vivem tão pouco tempo e
que se vem
comprimidos entre duas eternidades.
VI
As almas dos tolos
e dos monstros
Nasce uma criança mal formada e absolutamente imbecil,
n ão concebe idéias e
vive sem elas. Como podemos definir esta classe de
animal? Uns doutores dizem
que é algo entre o homem e a besta, outros, que possui
um alma sensitiva, porém
não alma intelectual. Come, bebe e dorme, tem sensações,
porém não pensa.
Existe para ele a outra vida, ou não existe? Se tem
proposto este caso, porém até
hoje não se obteve completa resolução.
Alguns filósofo tem dito que a referida criatura devia
ter alma, porque seu pai e
sua mãe a teriam; Por ém guiando-nos por este
raciocínio, se tivesse nascido sem
nariz, devíamos supor que o teria, porque seu pai e sua
mãe tiveram.
Una mulher dá à luz a uma criança que tem o rosto
achatado e escuro, um nariz
afilado e pontiagudo, olhos redondos e, apesar disso, o
resto do corpo é idêntico
almavoltaire Página
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ao dos demais mortais. Os pais decidem que tenha
batismo, e todo o mundo
acredita que possua uma alma imortal. Porém, se essa
mesma ridícula criatura
tem unhas em forma de ponta e a boca em forma de bico,
declaram-no monstro,
dizem que n ão tem alma e não o batizam.
Sabido é que em Londres, em 1726, houve uma mulher que
paria cada oito dias
um coelhinho. Sem nenhuma dificuldade, batizavam a dita
criança. O cirurgião que
assistia a referida mulher no parto, jurava que esse
fenômeno era verdadeiro, e
acreditavam. Porém, que motivo teriam os cr édulos para
negar que tivessem alma
os filhos de tal mulher? Ela a teria, seus filhos
deviam tamb ém tê-la. O Ser
Supremo não pode conceder o dom do pensamento e o da
sensação ao ser
desfigurado que nasça de uma mulher em forma de coelho,
ou mesmo que o que
nasça em figura de homem? A alma que se predisporia a
alojar-se no feto dessa
mãe, seria capaz de voltar ao vazio?
Locke observa sobre os monstros, que n ão deve
atribuir-se a imortalidade ao
exterior do corpo, que a configuração nada importa
neste caso. A imortalidade não
está mais ligada à forma do rosto ou do tórax, que à
configuração da barba o ao
feitio do traje; e pergunta: Qual é a justa medida de
deformidade para que se
considere se uma criança tem ou n ão alma? Qual o grau
para ser declarado
monstro?
Que temos de pensar nesta matéria de uma criança que
tenha duas cabeças e
que, apesar disto, tenha um corpo bem proporcionado?
Uns dizem que tem duas
almas, porque está provido de duas glândulas pineais, e
outros contestam
dizendo que n ão pode ter duas almas quem não tem mais
que um peito e um
umbigo.
Se tem questionado tanto sobre a alma humana, que se
esta chegasse a examinar
todas, seria vítima de insuportável fastio. Aconteceria
o mesmo que ocorreu ao
cardeal de Polignac em um conclave. Seu intendente,
cansado de não pode
inteirar nunca das contas da intendência, fez com o
cardeal uma viagem a Roma e
se colocou na janela de sua cela, carregando um imenso
fardo de papéis. Ficou ali
lendo as contas mais de duas horas, enquanto esperava
pela volta de Polignac.
Por fim, vendo que não obteria nenhuma contesta ção,
meteu a cabeça pela janela.
Há duas horas que o cardeal havia saído de sua cela.
Nossas almas nos
abandonam antes que seus intendentes se tivessem
inteirado do tanto que delas
nos temos ocupado.
VII
Devo confessar que sempre que examino ao infatigável
Aristóteles, ao doutor
Angélico e ao divino Platão, tomo por motes estes
epítetos que se lhes aplicam.
Parece-me que todos os filósofos se tem ocupado da alma
humana, cegos,
charlatães e temerários, que fazem esforços para
persuadir-nos de que tem vista
de águia, e vejo que h á outros amantes da filosofia,
curiosos e loucos, que os
almavoltaire
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acreditam em sua palavra, imaginando, por sugestão, que
vêem algo.
Não vacilo em colocar na categoria de mestres de erros
Descartes e
Malebranche. Descartes nos assegura que a alma do homem
é uma substância,
cuja essência é pensar que pensa sempre, e que se ocupa
desde o ventre da m ãe
de idéias metaf ísicas e de a ções gerais que esquece
em seguida. Malebranche está
convencido de que todo vemos em Deus. Se encontrou
partidários, é porque as
fábulas mais atrevidas são as que melhor recebem a
débil imaginação do homem.
Muitos filósofos tem escrito a novela da alma; Por ém
um sábio é o único que tem
escrito modestamente sua história. Compendiarei essa
hist ória segundo a
concebo. Compreendo que todo o mundo n ão estará de
acordo com as idéias de
Locke: pode ser que Locke tenha razão contra Descartes
e Malebranche, e que se
equivoque sobre Sorbonne; por ém eu falo do ponto de
vista da filosofia, não do
ponto das revelações da f é.
Só me corresponde pensar humanamente. Os teólogos que
decidam respeito do
divino: a razão e a fé são de natureza contrária. Em
uma palavra, vou a citar um
extrato de Locke, a quem eu censuraria se fosse teólogo,
por ém a quem patrocino
como uma hipóteses, como conjetura filosófica
humanamente falando. Se trata de
saber o que é a alma.
1º a palavra alma é uma dessas palavras que
pronunciamos sem entender, só
entendemos as coisas quando temos idéia delas, n ão
temos idéia da alma, logo
não a compreendemos.
2º Se nos tenha ocorrido chamar alma à faculdade de
sentir e pensar, assim como
chamamos vida a faculdade de viver e vontade à
faculdade de querer.
Alguns disseram em seguida isto: –O homem é um composto
de mat éria e de
espírito; a matéria é extensa e divisível, o espírito n
ão é uma coisa nem outra,
logo é de natureza distinta. É uma reunião de dois
seres que n ão criados um para
o outro e que Deus uniu apesar de sua natureza. Apenas
vemos o corpo, e
absolutamente n ão vemos a alma. Esta não tem partes;
logo é eterna: tem idéias
puras e espirituais, logo n ão as recebe da matéria:
tampouco as recebe de si
mesma; logo Deus se as d á, logo ela aporta ao nascer a
idéia de Deus e do
infinito, e todas as idéias gerais.
Humanamente falando, contesto essas palavras, dizendo
que são muito sábios.
Começam concedendo que existe alma, e logo explicam o
que deve ser:
pronunciam a palavra matéria e decidem o que a matéria
é. Porem eu lhes
explico: n ão conheceis nem o espírito nem a matéria.
Quanto ao espírito, só
concedeis a faculdade de pensar; e enquanto à matéria,
compreendeis que esta
não é mais que uma reunião de qualidades, de cores, e
de solidez; a essa reunião
chamais matéria, e marcais os limites desta e os da alma
antes de estar seguros
da existência de uma e de outra.
almavoltaire
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Ensinais gravemente que as propriedades da matéria são
a extensão e a solidez; e
eu os repito modestamente que a matéria tem outras mil
propriedades, que nem
vocês nem eu conhecemos. Assegurais que a alma é
indivisível e eterna, dando
por certo o que é questionável. Obrais quase o mesmo
que o diretor de um colégio
que, não tendo visto um relógio em sua vida, puserem em
suas mão de repente
um relógio de repetição inglês. Esse diretor, como bom
peripatético, fica surpreso
ao ver a precisão com que as setas dividem e marcam o
tempo, e se assombra
quando o botão comprimido pelo dedo faça tocar a hora
que a seta marca. O
filósofo não duvida um momento que dita máquina tenha
um alma que a dirige e
que se manifesta por meio dos cordas. Demonstra
cientificamente sua opinião, e
compara essa máquina com os anjos, que imprimem
movimento às esferas
celestes, sustentando em classe uma agrad ável teses
sobre a alma dos relógios,
um de seus discípulos abre o relógio e n ão vê mais que
as rodas e molas, e
mesmo assim, segue sustentando sempre o sistema da alma
dos relógios, crendo-
o demostrado. Eu sou o estudante que abre o relógio,
que se chama homem e que
em vez de definir com atrevimento o que não
compreendemos, trata de examinar
por graus o que desejamos conhecer.
Tomemos uma criança desde o momento em que nasce, e
sigamos passo a passo
o progresso de seu entendimento. Ensinaram-me que Deus
se tomou o trabalho
de criar um alma para que se alojasse no corpo de dita
criança quando este
tivesse cerca de seis semanas, e que quando se introduz
em seu corpo está
provisão de idéias metafísicas, conhece o espírito, as
idéias abstratas e o infinito;
em uma palavra, é sábia. Porém desgraçadamente sai do
útero com uma completa
ignorância; passa dezoito meses sem conhecer mais que o
peito da nutriz, e
quando chega aos vinte anos, e se pretende que essa
alma recorde idéias
científicas que teve quando se uniu a seu corpo, é
muitas vezes t ão obtusa, que
nem sequer pode conceber nenhuma de aquelas idéias. O
mesmo dia que a mãe
pare a citada criança com sua alma, nascem na casa um
cão, um gato e um
canário. ao cabo de dezoito meses, o perro é excelente
caçador, ao ano o canário
canta muito bem, e o gato ao cabo de seis semanas
possui todos os atrativos que
deve possuir e a criança, ao cumprir quatro anos, não
sabe nada. Suponho que eu
seja um homem grosseiro, que tenha presenciado tão
prodigiosa diferença e que
não tenha visto nunca uma criança; desde logo acredito
que o gato, o cão e o
canário, são criaturas muito inteligentes, e que a
criança é um autômato. Porém
pouco a pouco vou percebendo que a criança tem idéias,
memória e as mesmas
paixões que esses animais, e então compreendo que é uma
criatura razo ável como
elas. Comunica-me diferentes idéias por meio das
palavras que aprendi, como o
cão por seus distintos gritos me faz conhecer suas
diversas necessidades. Percebo
que aos sete ou oito anos a criança combina em seu
cérebro quase tantas idéias
como o cão de caça no seu, e que por fim, passando os
anos consegue adquirir
grande n úmero de conhecimentos Então que devo pensar
dele? Que é de uma
natureza completamente diferente. Não posso crer porque
vocês vêem um imbecil
ao lado de Newton, e sustentam que um e outro são da
mesma natureza, com a
única diferença do mais ao menos. Encontro entre uma
criança e um cão muitos
mais pontos de contato que encontro entre o homem de
talento e o homem
almavoltaire
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absolutamente imbecil Que opinião tens, pois, dessa
natureza? A que todos os
povos tiveram antes que a ciência eg ípcia trouxesse a
idéia de espiritualidade, de
imortalidade da alma Até suspeitarei, com aparências de
verdade, que
Arquimedes e um tolo são da mesma espécie, ainda que de
gênero diferente; que
a oliveira e o grano de mostarda estão formados pelos
mesmos princípios, ainda
que aquela seja um árvore grande e esta uma planta
pequena. Crerei que Deus
concedeu por ções de inteligência às porções de matéria
organizadas para pensar,
que a matéria está dotada de sensações proporcionadas
de acordo com a finura de
seus sentidos e que estes proporcionam a medida de
nossas idéias. Crerei que a
ostra tem menos sensações e menos sentido, porque tendo
a alma dentro da
concha, os cinco sentidos são inúteis para ela. H á
muitos animais que s ó est ão
dotados de dois sentidos; nós temos cinco, e por certo
que são muito poucos. É de
crer que em outros mundos existam outros animais que
estejam dotados de vinte
o de trinta sentidos e outras espécies muito mais
perfeitas que tenham muitos
mais.
Esta parece a maneira mais lógica de raciocinar, quero
dizer, de suspeitar e
adivinhar. Indubitavelmente passou muito tempo antes
que os homens fossem
bastante engenhosos para inventar um ser desconhecido
que está em nós, que
nos faz obrar, que n ão é completamente nós, e que vive
depois que nós
morremos. Desse modo se chegou por graus a conceber idéia
tão atrevida. No
princípio, a palavra alma significou vida, e era comum
para n ós e para os demais
animais; logo nosso orgulho nos fez suspeitar que a
alma só correspondia ao
homem, e então inventamos uma forma substancial para as
demais criaturas: o
orgulho humano pergunta em que consiste a faculdade de
aperceber-se e de
que se chama alma no homem e instinto no bruto.
Elucidarei essa questão quando
os físicos me ensinem o que é a luz, o som, o espaço, o
corpo e o tempo. Repetirei
com o sábio Locke: a filosofia consiste em deter-se
quando a tocha da física não
nos alumia.
Observo os efeitos da natureza; Por ém confesso que,
como vocês, tampouco
conheço os primeiros princípios. Tudo se reduz a que n
ão devo atribuir a muitas
causas, e muito menos a causas desconhecidas, o que
posso atribuir a uma causa
conhecida: posso atribuir a meu corpo a faculdade de
pensar e de sentir, logo n ão
devo buscar a faculdade de sentir e de pensar no que se
chama alma ou espírito,
do que não tenho a menor idéia. Os sublevais contra
esta proposição, e creéis que
é religiosidade atrever -se a dizer que o corpo possa
pensar. Porém que
contestarias –responderia Locke,– se os dissesse que
vocês sois tamb ém culpáveis
de irreligião, porque se atrevem a limitar o poder de
Deus? Quem, sem ser ímpio,
pode assegurar que é impossível para Deus dotar à
matéria da faculdade de sentir
e de pensar? Sois ao mesmo tempo débeis e atrevidos,
assegurais que a matéria
não pensa, unicamente porque não concebeis que a
matéria possa pensar.
Grandes filósofos, que decidis sobre o poder de Deus, e
ao mesmo tempo
concedeis que pode Deus converter uma pedra em um anjo
(Mateus, cap III, vers.
9.), n ão compreendeis que segundo suas mesmas teorias
e no citado caso, Deus
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concederia à pedra a faculdade de pensar? Se a mat éria
da pedra desaparecera,
não seria pedra, seria anjo. De qualquer parte que
questioneis, os vereis
obrigados a confessar duas coisas, sua ignorância e o
poder imenso do Criador:
sua ignor ância nega que a matéria possa pensar, e a
onipotência do Criador nos
demonstra que lhe é possível conseguir que a matéria
pense.
Sabendo que a matéria não perece, não deveis negar a
Deus o poder de conservar
nessa mesma matéria a melhor das qualidades de que a
dotou. A extensão
subsiste sem corpo por si mesma, já que há filósofos
que acreditam no vazio; os
acidentes subsistem independentes da substância para os
cristãos que acreditam
na substancia ção. Dizeis que Deus não pode fazer nada
que implique contradição,
porém para encontrar esta se necessita saber muito mais
do que sabemos; e
nesta matéria só sabemos que temos corpo e que
pensamos. Alguns que
aprenderam na escola a n ão duvidar, e que tomam por
oráculos os silogismos que
nelas lhes ensinaram e as superstições que aprenderam
por religião, tem a Locke
por ímpio perigoso. Devemos fazer-lhes compreender o
erro em que incorrem e
ensinar-lhes que as opiniões dos filósofos jamais
prejudicaram à religião. Está
provado que a luz provém do sol, e que os planetas
giram ao redor desse astro:
por isto não se lê com menos fé na Bíblia que a luz se
formou antes do sol, e que
o sol parou ante a aldeia de Gab ão. Está demostrado
que o arco-íris se forma com
a chuva e por isso não se deixa de respeitar o texto
sagrado, que disse que Deus
pôs o arco-íris nas nuvens, depois do dilúvio, como
sinal de que já não haveria
mais inundações.
Os mistérios da Trindade e da Eucaristia, que contradiz
nas demonstrações da
razão, não por isso deixam de reverencia -los os filósofos
católicos, que sabem que
a razão e a fé são de diferente natureza. A idéia dos
antípodas foi condenada pelos
papas e os concílios; e logo outros papas reconheceram
os antípodas, aonde
levaram a religião cristã, cuja destruição acreditaram
segura no caso de poder
encontrar um homem, que, como se dizia então, tivesse a
cabeça abaixo e os pies
acima, com rela ção a nós, e que, como disse Santo
Agostinho, tivesse caído do
céu.
VIII
Suponho que há em uma ilha uma d úzia de filósofos
bons, e que em essa ilha n ão
tem visto mais que vegetais. Esta ilha, e sobretudo os
doze filósofos bons, são
difíceis de encontrar; porém permita-me esta ficção.
Admiram a vida que circula
pelas fibras das plantas, que parece que se perde e se
renova em seguida; e não
compreendendo bem como as plantas nascem, como se
alimentam e crescem,
chamam a estas operações alma vegetativa. «Que
entendeis por alma vegetativa?
– É uma palavra, respondem, que serve para explicar a
mola desconhecida que
move a vida das plantas. – Porém não compreendeis, lhes
replica um mecânico,
que esta a desenrola os pesos, as alavancas, as rodas e
as polias?– Não,
replicarão ditos fil ósofos; em sua vegeta ção há algo
mais que movimentos
ordinários; existe em todas as plantas o poder secreto
de atrair o sumo que as
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nutre: e esse poder, que não pode explicar nenhum
mecânico, é um dom que
Deus concedeu à matéria, cuja natureza nos é
desconhecida». Depois dessa
questão, os filósofos descobrem os animais que há na
ilha, e logo de examiná-los
atentamente, compreendem que há outros seres
organizados como os homens.
Esses seres é indubitável que tem memória,
conhecimento, que estão dotados
das mesmas paixões que n ós, que nos fazem compreender
suas necessidades, e
como n ós, perpetuam sua espécie. Os filósofos dissecam
alguns animais, lhes
encontram coração e cérebro, e exclamam: « O autor
dessas máquinas, que não
cria nada inútil, lhes tivesse concedido todos os órgãos
do sentimento com o
propósito de que n ão sentissem? Seria absurdo
acreditar nisso. Encerram algo que
chamaremos também alma, na falta de outra expressão
mais própria algo que
experimenta sensações e que em certa medida tem idéias.
Porém qual é esse
princípio? É diferente da matéria? É espírito puro? É
um ser intermediário entre a
matéria, que apenas conhecemos, e entre o espírito
puro, que nos é
completamente desconhecido? É uma propriedade que Deus
concedeu à matéria
orgânica?»
Os filósofos, para estudar essa matéria, fazem
experimentos com os insetos e os
lagartos; cortam-nos, dividindo-os em muitas partes, e
ficam surpresos ao ver que
ao passar algum tempo nascem cabeças nas partes
cortadas. Ou mesmo que o
animal se reproduz, em sua própria destruição encontra
o meio de multiplicar-se.
Há muitas almas que estão esperando para animar partes
reproduzidas. Parecem -
se com árvores das quais se cortam ramos e,
plantando-os, se reproduzem. Essas
árvores têm muitas almas? Não parece poss ível. Logo, é
provável que a alma das
bestas seja de outra espécie que as que chamamos de
alma vegetativa nas
plantas, que seja uma faculdade de ordem superior que
Deus concedeu a certas
porções de matéria para dar -nos outra prova de seu
poder e outro motivo para
adorá-lo.
Se ouvisse este raciocínio de um homem violento, lhe
diria: «Sois um malvado
merece que o queime o corpo para salvar as almas,
porque negais a imortalidade
da alma do homem». Os filósofos, ao ouvir isso, se
olhariam com surpresa; e
depois, um deles contestaria com suavidade ao homem
violento: Por que acreditas
que devemos arder em uma fogueira e que o induzo a
supor que abriguemos nós
o conhecimento de que é mortal vossa alma cruel? –
Porque abrigais a crença de
que Deus concedeu aos brutos, que estão organizados
como nós, a faculdade de
ter sentimentos e idéias; e como a alma das bestas
morre com seus corpos,
acreditas também que o mesmo morre a alma dos homens.
Um dos filósofos
replicaria:
–Não temos a segurança de que o que chamamos de alma
nos animais se pare ça
quando esses deixam de viver; estamos persuadidos que a
matéria não perece, e
supomos que Deus haja dotado os animais de algo que
pode conservar, se esta é
a vontade divina, a faculdade de ter idéias. N ão
asseguramos que isto suceda,
porque n ão é próprio de homens ser tão confiados;
Porém não nos atrevemos a
pôr limites ao poder de Deus. Dizemos apenas que é
provável que as bestas, que
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são matéria, tenham recebido um tanto de inteligência.
Descobrimos todos os dias
propriedades da matéria, que antes de descobri-las n ão
tínhamos idéia de que
existiram. Começamos definindo a matéria, dizendo que
era uma substância que
teria extensão; logo reconhecemos que também teria
solidez, e mais tarde
tivemos que admitir que a matéria possui uma força que
chamamos força de
inércia, e ultimamente nos surpreendeu a nós mesmos ter
que confessar que a
matéria gravita. Ao avançar em nossos estudos, nos
vimos obrigados a reconhecer
seres que se parecem em algo à matéria, e que, contudo,
carecem dos atributos
de que a matéria está dotada. O fogo elementar, por
exemplo, obra sobre nossos
sentidos como os demais corpos; porém não tem a um
centro comum como estes;
pelo contrario, se escapa do centro em linhas retas por
todas partes; e n ão parece
que obedeça às leis de atração e de gravitação como os
outros corpos. A óptica
tem mistérios que só podemos explicar atrevendo-nos a
supor que os raios da luz
se compenetram. Efetivamente, há algo na luz que a
distingue da matéria
comum: parece que a luz seja um ser intermediário entre
os corpos e outras
espécies de seres que desconhecemos. é verossímil que
essas outras espécies de
seres sejam o ponto intermediário que conduza até
outras criaturas, e que assim
sucessivamente exista uma cadeia de substâncias que se
elevem até o infinito.
Essa idéia nos parece digna da grandeza de Deus, se h á
alguma idéia humana
digna dela. Entre essas substâncias pôde Deus escolher
uma para alojá-la em
nossos corpos, e é a que nós chamamos alma humana. Os
livros santos nos
ensinam que essa alma é imortal, e a razão está nisso
de acordo com a revelação:
nenhuma substância perece: as formas se destroem, o ser
permanece. não
podemos conceber a criação de uma substância; tampouco
podemos conceber
seu aniquilamento. Por ém nos atrevemos a afirmar que o
Senhor absoluto de
todos os seres pode dotar de sentimentos e de percep
ções ao ser que se chama
matéria. Estais seguro de que pensar é a essência de
sua alma, porém nós não
estamos; porque quando examinamos um feto nos custa
grande trabalho crer que
sua alma teve muitas idéias em sua envoltura materna, e
duvidamos que em seu
sonho profundo, em sua completa letargia, tenha podido
dedicar-se à meditação.
Por isso nos parece que o pensamento possa consistir
não na essência do ser
pensante, senão no presente que o Criador fez a esses
seres que chamamos
pensadores; e tudo isto nos faz suspeitar que se Deus
quisesse, poderia outorgar
esse dom a um átomo, conservá-lo o destruí-lo, segundo
fosse sua vontade. A
dificuldade consiste menos em adivinhar como a matéria
pode pensar, que em
adivinhar como pensa uma substância qualquer. Só
concebemos idéias, porque
Deus as quis dar. Por que o empenho em se opor a que as
tenha concedido às
demais espécies? Atrevem -se a crer que sua alma seja
da mesma classe que as
substâncias que estão mais próximas da divindade? H á
motivo para suspeitar que
estas sejam de ordem superior e, portanto, Deus lhes
haja concedido uma
maneira de pensar infinitamente mais formosa; assim
como concedeu quantidade
muito limitada de idéias aos animais, que são de um
ordem inferior aos homens.
Não sei como vivo nem como dou a vida, e querem que
saiba como concebo
idéias! A alma é um relógio que Deus nos concedeu para
dirigirmos, porém não
nos explicou a maquinaria de que o relógio se compõe.
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De tudo quanto digo não é possível inferir que a alma
humana seja mortal. Em
resumo: pensamos o mesmo que vos sobre a imortalidade
que a fé nos anuncia;
porém somos demasiado ignorantes para poder afirmar que
Deus n ão tenha poder
para conceder a faculdade de pensar ao ser que Ele
queira. Limitais o poder do
Criador, que é sem limites, e nós o estendemos até onde
alcança sua existência.
Perdoe-nos que o cremos onipotente, e n ós os
perdoaremos que restrinjais seu
poder. Sem dúvida sabeis tudo o que pode fazer e n ós
ignoramos. Vivamos como
irmãos, adorando tranqüilamente ao Pai comum. Só temos
de viver um dia,
vivamos em paz, sem proporcionarmos questões que se
decidirão na vida
imortal».
O homem brutal, não encontrando nada que replicar aos
filósofos, incomodando-
se, falou e disse muitas bobagens. Os filósofos se
dedicaram durante algumas
semanas a ler história, e depois deste estudo, eis aqui
o que disseram àquele
bárbaro indigno de estar dotado de alma imortal:
«Temos lido que na antigüidade havia tanta tolerância
como em nossa época, que
nela se encontram grandes virtudes, e que por suas
opiniões não perseguiam aos
filósofos. Por que, pois, pretendeis que nos condenem
ao fogo pelas opiniões que
professamos? Acreditavam na antigüidade que a matéria
era eterna; porém os
que supunham que era criada, n ão perseguiram aos que
não acreditavam. Disse-
se então que Pitágoras, em uma vida anterior, havia
sido galo, que seus pais
haviam sido cervos, e apesar disto, sua seita foi
querida e respeitada em todo o
mundo. Os estóicos reconheciam um Deus mais o menos
semelhante ao que
admitiu depois temerariamente Espinosa; o estoicismo,
sem dúvida, foi a seita
mais acreditada e a mais fecunda em virtudes heróicas.
Para os epicuristas, os
Deuses eram semelhantes a nossos cônegos e sua
indolente gordura sustentava
sua divindade, e tomavam em paz o n éctar e a ambrosia
sem imiscuir-se em
nada. Os epicuristas ensinavam a materialidade e a
mortalidade da alma, porém
não por isso deixaram de ter-lhes considerações, e eram
admitidos a
todos os empregos.
Os platônicos não acreditavam que Deus se tivesse
dignado criar o homem por si
mesmo; diziam que havia confiado este encargo aos
gênios, que ao desempenhar
sua tarefa cometeram muitas bobagens. O Deus dos
platônicos era um obreiro
sem defeitos, porém que empregou para criar o homem
discípulos muito
incompetentes. Não por isso a antigüidade deixou de
apreciar a escola de Platão.
Numa palavra: quantas seitas conheceram os gregos e os
romanos, teriam
distintos modos de opinar sobre Deus, sobre a alma,
sobre o passado e sobre o
porvir; e nenhuma dessas seitas foi perseguida. Todas
essas seitas se
equivocavam, por ém viveram em amistosa paz, e isto é o
que não alcançamos a
compreender, porque hoje vemos que a maior parte dos
debatedores são
monstros e os da antigüidade eram verdadeiros homens.
Se desde os gregos e os romanos queremos remontar às
nações mais antigas,
podemos fixar a atenção nos judeus. Esse povo que foi
supersticioso, cruel,
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ignorante e miserável, sabia, sem dúvida, honrar aos
fariseus, que acreditavam na
fatalidade do destino e na metempsicose. Respeitava
tamb ém aos saduceus, que
negavam em absoluto a imortalidade da alma e a
existência dos espíritos,
fundando-se na lei de Moisés, que não falou nunca de
penas nem de recompensas
depois da morte. Os essênios, que acreditavam tamb ém
na fatalidade, e nunca
sacrificavam vítimas no templo, eram mais respeitados
todavia que os fariseus e
saduceus. Nenhuma dessas opiniões perturbou nunca o
governo do Estado.
Devemos, pois, imitar esses louváveis exemplos; devemos
pensar em alta voz, e
deixar que pensem o que quiserem os demais. Sereis
capaz de receber
cortesmente a um turco que acredite que Maomé viajou
para a lua, e desejais
esquartejar a um irmão seu porque acredita que Deus
pode dotar de inteligência a
todas as criaturas?»
Assim falou um dos filósofos; e outro completou: –
«Acredite, não há exemplo de
nenhuma opinião filosófica que prejudique à religião de
nenhum povo. Os
mistérios podem contradizer as demonstra ções
científicas; nem por isso deixam de
respeitá-los os filósofos cristãos, que sabem que os
assuntos da razão e da f é são
de diferente natureza. Sabeis por que os filósofos não
lograr ão nunca formar uma
seita religiosa? Pois não a formar ão porque carecem de
entusiasmo. Se dividimos
o gênero humano em vinte partes, compõem as dezenove os
homens que se
dedicam a trabalhos manuais, e quiçá estes ignorarão
sempre que existiu Locke.
Na outra parte, se encontram poucos homens que param a
ler, e entre os que
lêem há vinte que só lêem novelas para cada um que
estuda filosofia. É muito
exíguo o n úmero dos que pensam; e estes não se ocupam
em perturbar o mundo.
Não jogariam a maçã da discórdia em sua pátria
Montaigne, Descartes, Gassendi,
Bayle, Espinosa, Hobbes, Pascal, Montesquieu, nem
nenhum dos homens que tem
honrado a filosofia e a literatura. A maior parte dos
que perturbaram seu país
foram teólogos, que ambicionaram ser chefes de seita ou
ser de partido. Todos os
livros de filosofia moderna juntos não produziram no
mundo tanto ruído como
produziu em outro tempo a disputa que tiveram os franciscanos
sobre a forma que
devia dar-se a suas mangas e a seus capuchões».
IX
Da antigüidade do dogma da imortalidade da alma
O dogma da imortalidade da alma é a idéia mais
consoladora e ao mesmo tempo
mais repressora que o espírito humano pode conceber.
Esta agradável filosofia foi
tão antiga no Egito como suas pirâmides; e antes dos
egípcios, a conheceram os
persas. Zoroastro, que cita o Sadder, quando Deus
ensina a Zoroastro o local
destinado para receber o castigo, local que se chamava
Dardarot no Egito, Hades
e Tártaro em Grécia, e n ós temos traduzido
imperfeitamente em nossas línguas
modernas pela palavra inferno. Deus ensina a Zoroastro
no local destinado aos
castigos, a todos os maus reis, a um dos quais faltava
um p é, e Zoroastro
perguntou por que razão. Deus respondeu que esse rei só
havia feito uma boa
ação em toda sua vida, e esta ação consistia em haver
aproximado com o pé uma
gamela que não estava bastante próxima a um pobre
burrico que morria de fome.
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Deus levou ao céu o pé do rei malvado, e deixou no
inferno o resto de seu corpo.
Dita fábula, que nunca se repetir á bastante, demonstra
como era na remota
antigüidade a opinião sobre a segunda vida. Os índios
também teriam esta
opinião, e sua metempsicoses o prova. Os chineses
reverenciavam as almas de
seus antepassados; e esses povos fundaram poderosos imp
érios muito tempo
antes que os egípcios.
Ainda que seja antigo o império de Egito, n ão é tanto
como os impérios do Ásia; e
naquele e nestes, a alma subsistia depois da morte do
corpo. Verdade é que todos
esses povos, sem exceção, supunham que a alma teria
forma etérea, sutil, e era
imagem do corpo. A palavra sopro a inventaram muito
depois os gregos. Por ém
não se pode negar que acreditaram que era imortal uma
parte de nós mesmos. Os
castigos e as recompensas na outra vida, formaram os
cimentos da antiga
teologia.
Ferecides foi o primeiro grego que acreditou que as
almas viviam uma eternidade,
porém não foi o primeiro que disse que as almas
sobreviviam aos corpos. Ulisses,
que viveu muito tempo antes que Ferecides, havia visto
as almas dos her óis nos
Infernos; porém que as almas fossem tão antigas como o
mundo, foi uma opinião
que nasceu no Oriente e que Ferecides difundiu no
Ocidente. Não creio que exista
um só sistema moderno que não se encontre nos povos
antigos. Os edifícios
atuais temos construído com os escombros da
antigüidade.
X
Seria um magnífico espetáculo poder ver a alma. A
máxima Conhece-te a ti
mesmo é um excelente preceito, mas preceito que só Deus
pode praticar; pois,
que mortal pode compreender sua própria essência?
Chamamos alma ao que anima; porém não podemos saber
mais dela, porque
nossa inteligência tem limites. As três quartas partes
do g ênero humano n ão se
ocupam disto; e a quarta busca, inquire, porém não
encontrou nem encontrará.
O homem vê uma planta que vegeta, e disse que tem alma
vegetativa; observa
que os corpos têm e dão movimento, e a isto chama
força: vê que seu cão de caça
aprende o ofício, e supõe que tem alma sensitiva,
instinto; tem idéias combinadas,
e a esta combina ção chama espírito. Porém que entendes
tu por essas palavras?
Indubitavelmente a flor vegeta; por ém existe realmente
um ser que se chame
vegetação? Um corpo recha ça a outro, por ém possui
dentro de si um ser distinto
que se chama for ça? O cão te traz uma perdiz, por ém
vive nele um ser que se
chama instinto? Todos os animais vivem; logo encerram
dentro de si um ser, uma
forma substancial que é a vida? Se um tulipa puder
falar e te disser: a vegetação
e eu somos seres que formamos um conjunto, não te
enganaria a tulipa?
Vamos ver o que sabes e do que estás seguro: sabes que
andas com os pés, que
digeres com o estômago, que sentes em todo o corpo, e
que pensas com a
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cabeça. Vejamos se o único auxilio da razão pode
proporcionar bastantes dados
para deduzir, sem um apoio sobrenatural, que tens alma.
Os primeiros filósofos, tanto caldeus como egípcios,
disseram: é indispensável que
haja dentro de n ós algo que produza pensamentos; esse
algo deve ser muito sutil,
deve ser um sopro, deve ser um éter, uma quintessência,
uma entelequia, um
nome, uma harmonia. Segundo o divino Platão, é um
composto do mesmo e do
outro. «Constituem-no os átomos que pensam em nós»,
disse Epicuro depois de
Demócrito. Porém como um átomo pode pensar? Confessa
que n ão sabes.
A opinião mais aceitável é sem dúvida a de que a alma é
um ser imaterial, porém
indubitavelmente concebem os sábios o que é um ser
imaterial? – Não, contestam
estes, porém sabemos que por natureza pensa. – E por
onde o sabeis? –
Sabemos, porque pensa.– Parece que sois tão ignorantes
como Epicuro. É natural
que uma pedra caia, porque cai; por ém eu pergunto,
quem a faz cair? –Sabemos
que a pedra não tem alma; sabemos que uma negação e uma
afirmação não são
divisíveis, porque n ão são partes da matéria. –Sou de
sua opinião; porém a
matéria possui qualidades que n ão são materiais, nem
divisíveis, como a
gravitação: a gravitação não tem partes, não é, pois,
divisível. A for ça motriz dos
corpos tampouco é um ser composto de partes. A
vegetação dos corpos orgânicos,
sua vida, seu instinto, n ão constituem seres a parte,
seres divisíveis; não podeis
dividir em dois a vegetação de uma roupa, a vida de um
cavalo, o instinto de um
cão, ou mesmo que não podes dividir em duas uma
sensação, uma negação ou
uma afirma ção. O argumento que sacais da
indivisibilidade do pensamento não
prova nada.
Que idéia tens da alma? Sem revelação, só podes saber
que existe em seu interior
um poder desconhecido que o faz sentir e pensar. Porém
esse poder de sentir e de
pensar, é o mesmo poder que o faz digerir e andar? Tens
que confessar que não,
porque ainda que o entendimento diga ao estômago:
digere, o estômago não
digerirá se está enfermo e se o ser imaterial manda aos
p és que andem, estos não
andarão se tem gota. Os gregos compreenderam que o
pensamento não tem
relação muitas vezes com o jogo dos órgãos, e dotaram
os órgãos da alma animal,
e os pensamentos de um alma mais fina. Por ém a alma do
pensamento, em
muitas ocasiões, depende da alma animal. A alma
pensante ordena às manos que
tomem, e tomam, porém não disse ao coração que bata,
nem ao sangue que
corra, nem ao quilo que se forme, e todos esses atos se
realizam sem sua
intervenção. Vê-se aqui almas que são muito pouco donas
de sua casa.
Disto deve deduzir-se que a alma animal não existe, o
que consiste no movimento
dos órgãos; e ao mesmo tempo há que concordar que ao
homem n ão lhe abastece
sua d ébil razão nenhuma prova de que a outra alma
exista.
Vejamos agora os vãos sistemas filosóficos que se tem
estabelecido respeito ao
alma. Um deles sustenta que a alma do homem é parte da
substância do mesmo
Deus. Outro que é parte do Grande Todo. H á sistema que
assegura que a alma
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está criada para toda a eternidade. H á outro que
assegura que a alma foi feita e
não criada. Vãos filósofos asseguram que Deus forma as
almas à medida que as
necessita, e que chegam no instante da copulação:
outros afirmam que se alojam
no corpo com os ânimos seminais. Filósofo houve que
disse que se equivocavam
todos os que o haviam precedido, assegurando que a alma
espera seis semanas
para que esteja formado o feto, e então toma possessão
da glândula pineal;
porém que se encontra algum gérmen falso, sai do corpo
e espera melhor ocasião.
A última opinião consiste em dar ao alma por morada o
corpo caloso; este é o
local que determina Peyronie.
São Tomas em sua questão 75 e seguintes, diz: «que a
alma é uma forma que
subsiste per se, que está toda em tudo, que sua
essência difere de seu poder,
que existem três almas vegetativas: a nutritiva, a
aumentativa e a generativa;
que a memória das coisas espirituais é espiritual, e a
mem ória das corporais
corporal; que a alma razoável é uma forma imaterial
quanto às operações, e
material quanto ao ser» Entendeste algo? Pois São Tomas
escreveu duas mil
páginas tão claras como esta. Por isto, sem dúvida, o
chamam o anjo da escola.
Não se tem inventado menos sistemas para o corpo, para
explicar como ouvirá
sem ter ouvidos, como olhará sem ter nariz e como
tocará sem ter mãos; em que
corpo se alojará em seguida, de que modo o eu, a
identidade da mesma pessoa há
de subsistir, como a alma do homem que se tornou
imbecil à idade de quinze
anos, e morreu imbecil aos setenta, voltar á a unir o
fio das idéias que teve na
idade da puberdade e por que meio um alma, a cujo corpo
se cortou uma perna
em Europa e perdeu um braço em América, poderá
encontrar a perna e o braço,
que quiçá se tenham transformado em legumes, ou tenham
passado a formar
parte integrante da sangue de qualquer outro animal.
Não terminaria nunca de
detalhar todas as extravagancias que sobre a alma
humana se tem publicado.
É singular que as leis do povo predileto de Deus n ão
digam uma só palavra acerca
da espiritualidade e da imortalidade da alma, nem fale
tampouco disto o Decálogo,
nem o Levítico, nem o Deuteron ômio. Também é
indubitável que em nenhuma
parte Moisés proponha aos judeus recompensas e penas em
outra vida. N ão lhes
fala nunca da imortalidade de suas almas, nem lhes
disse que esperem ir ao céu,
nem lhes ameaça com o inferno. Na lei de Moisés tudo é
temporal. No
Deuteronomio fala aos judeus deste modo:
«Se depois de haver tido filhos e netos prevaricais,
sereis exterminados em sua
pátria e ficareis reduzidos a escasso número, que
viverá espalhados pelas demais
nações.
»Eu sou um Deus zeloso que castigo a iniquidade dos
pais até a terceira e até a
quarta geração.
»Honra a pai e m ãe, com o fim de viver muitos anos.
»Sempre ter ás o que comer, a comida não os faltará
nunca.
»Se obedeceres a deuses estrangeiros, ser ás destru
ído.
»Se obedeceres ao verdadeiro Deus, terás chuvas na
primavera e no outono
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trigo, azeite, vinho, feno para os animais, e poder ás
comer e saciar-te.
»Imprimi estas palavras em seus corações, põe ante seus
olhos, escreve-as sobre
suas portas com a idéia de que seus dias se
multipliquem.
»Faz o que mando, sem tirar nem acrescentar nada.
»Se aparece um profeta que profetize sucessos
prodigiosos, se sua predicação es
verdadeira, se o que prevê sucede, se diz: vamos, segui
comigo aos Deuses
estrangeiros... mata-o em seguida, que se levante todo
o povo contra ele para
feri-lo.
»Quando o Senhor os entregue as na ções, degola sem
perdoar a um só homem,
não tenhais piedade de ninguém.
»No comais animais impuros, como o são o águia, o grifo
e o ixião.
»No comais tampouco animais ruminantes e que tenham as
unhas fendidas, como
o camelo, a lebre, o porco espinho.
»Se observais estos mandatos, sereis abençoados na
cidade e nos campos, e
serão benditos os frutos de seu ventre, de sua terra e
de suas bestas.
»Se não obedeceis todos estes mandamentos nem observais
todas as cerimônias,
sereis malditos na cidade e nos campos; sofrer ás a
pobreza e fome, morrerás de
frio, de febre e de miséria; tereis sarna, fístulas,
... os assaltarão úlceras nos
joelhos e nos músculos.
»O estrangeiro os prestará com usura, porém vocês não
lhe prestareis desse
modo, porque vocês quereis servir ao Senhor.., etc.,
etc.
É evidente que em todas estas promessas e ameaças não
se trata mais que do
temporal, e não se encontra uma s ó palavra que verse
sobre a imortalidade da
alma nem sobre a vida futura. Alguns comentaristas
ilustres acreditam que Moisés
estava inteirado desses dois grandes dogmas, e provam
sua opinião apoiando-se
não que disse Jacó, o qual acreditando que haviam
devorado a seu filho bestas
ferozes, exclamou: «Descerei com meu filho ao inferno;»
isto é, morrei, já que
meu filho está morto. Provam também sua crença citando
passagens de Isa ías e
de Ezequiel; Por ém os hebreus a quem falou Moisés, não
poderiam ter lido a
Isaías nem a Ezequiel, que escreveram muitos séculos
depois. É inútil questionar
sobre o que secretamente opinava Moisés, já que está
comprovado que em suas
leis não falou nunca da vida futura, e que limita os
castigos e as recompensas ao
tempo presente. Se conheceu a vida futura, por que n ão
proclamou este dogma?
tal pergunta contestam vários comentaristas, dizendo
que o Senhor de Moisés e
de todos os homens, reservou-se o direito de explicar
em tempo oportuno aos
judeus uma doutrina que não estavam em estado de
compreender quando viviam
no deserto. Se Moisés tivesse anunciado a imortalidade
da alma, ter-lhe-ia
combatido uma importante escola dos judeus, a dos saduceus,
autorizada pelo
Estado, que lhes permitia desempenhar os primeiros
cargos da nação e nomear
grandes pontífices a seus sectários.
Até depois da fundação de Alexandria n ão se dividiram
os judeus em três seitas: a
dos fariseus, dos saduceus e dos essênios. O
historiador Flávio Josefo, que era
fariseu, nos refere no livro XIII de suas Antigüidades,
que os fariseus acreditavam
na metempsicose; os saduceus acreditavam que a alma
perecia com o corpo, e os
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essênios, que a alma era imortal. Segundo esses, as
almas, em forma aérea,
descendiam da mais alta região dos ares, para
introduzir-se nos corpos, pela
violenta atra ção que exerciam sobre elas; e quando
morriam os corpos, as almas
que haviam pertencido aos bons, iam a morar mais além,
lá do Oceano, em um
país onde n ão se sentia calor nem frio, nem havia
vento nem chovia. As almas dos
maus iam a morar em um clima perverso. Esta era a
teologia dos judeus. O que
devia ensinar a todos os homens, condenou a estas três
seitas. Sem seu auxilio
não tivéssemos chegado nunca a compreender nossa alma,
porque os filósofos
não tiveram jamais uma idéia determinada dela, e
Moisés, único legislador do
mundo antigo, que falou com Deus frente a frente,
deixou a humanidade imersa
na mais profunda ignorância respeito deste ponto. S ó
depois de mil e setecentos
anos teremos a certeza da existência e da imortalidade
da alma. Cícero abrigava
suas dúvidas. Seu neto e sua neta souberam a verdade
pelos primeiros galileus
que foram a Roma. Porém antes dessa época, e depois
dela, em todo o resto do
mundo, donde apóstolos não penetraram, cada qual devia
perguntar a sua alma,
que és? de donde vens? que fazes? onde vais? És um não
sei que, que pensas e
sentes, porém ainda que sintas e penses mais de cem
milhões de anos, n ão
conseguirás saber mais sem o auxilio de Deus, que te
concedeu o entendimento
para que te sirva de guia, por ém não para penetrar na
essência. Assim pensou
Locke, e antes que Locke, Gassendi, e antes que Gassendi,
muitos sábios; por ém
hoje os bachar éis sabem o que esses grandes homens
ignoravam.
Inimigos encarniçados da razão, se tem atrevido a opor
a essas verdades
reconhecidas pelos sábios, levando sua m á-fé e sua
imprudência até o extremo de
imputar ao autor desta obra a opinião de que cada alma
é matéria. Perseguidores
da inocência, bem sabeis que temos dito o contrario; e
que dirigindo-nos a
Epicuro, a Demócrito e a Lucr écio, perguntamos: «Como
podeis crer que um
átomo pense? confesso-te que n ão sabeis nada». Logo
são uns caluniadores os
que me perseguem.
Ninguém sabe o que é o ser que chamamos espírito, ao
que vocês mesmos dão
um nome material, fazendo-lhe sinônimo de ar. Os
primeiros pais da Igreja
acreditavam que a alma era corporal. É imposs ível que
nós, que somos seres
limitados, saibamos se nossa inteligência é substância
ou faculdade; não podemos
conhecer a fundo nem o ser extenso nem o ser pensante,
ou seja, o mecanismo
do pensamento. Apoiados na opinião de Gassendi e de
Locke, afirmamos que por
nós mesmos n ão podemos conhecer os segredos do
Criador. Sois Deuses que
sabeis tudo? Repetimos que só podemos conhecer pela
revelação da natureza e o
destino da alma; e esta revelação não os basta. Devem
ser inimigos da revelação,
porque perseguem aos que a cr êem e aos que dela o
esperam tudo.
Referimo-nos à palavra de Deus; e vocês, que fingindo
religiosidade, são inimigos
de Deus e da razão, que blasfemam uns de outros, tratem
a humilde submissão
do filósofo, como o lobo trata ao cordeiro nas fábulas de
Esopo, e lhe dizem:
«Murmuras-te de mim o ano passado; devo beber teu
sangue». Porém a filosofia
não se vinga, se ri desses vãos esforços e ensina
tranqüilamente aos homens que
quereis embrutecer, para que sejam iguais a vós.
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Voltaire (François Marie Arouet) (1694-1778)
Nascido em Paris, em 21 de novembro de 1694, falecido
em 30 de maio de 1778, foi o pensador mais
influente do período do iluminismo francês. Em sua
época, foi considerado um dos maiores poetas e
dramaturgos de seu tempo. Hoje, a figura de Voltaire é
mais relacionada aos seus ensaios e seus
contos. O nome Voltaire, na verdade, foi por ele
adotado após a passagem pela prisão na Bastilha
durante um ano, por sua vez ocorrida devido a alguns
versos satíricos dos quais foi acusado de ser
autor. A tragédia Édipo (Oedipe) abriu passagem para
sua incursão no meio intelectual, tendo sido
escrita no período de sua detenção na Bastilha. Uma
outra obra que merece ser citada é o conto
Cândido, escrito em 1759. Já em seus escritos
filosóficos, as obras que devem ser citadas são o Tratado
de Metafísica (Traite de Metaphysique), de 1734, e o
Dicionário Filosófico (Dictionaire
Philosophique), de 1764. Seu pensamento foi calcado nas
bases do racionalismo, instrumento com o
qual procurava pregar a reforma social sem a destruição
do regime já estabelecido. Muito de sua luta
dirigia-se contra a Igreja e, na atualidade, alguns
chegam a considerar Voltaire como um predecessor
do anti-semitismo moderno, dadas seus pensamentos
acerca dos judeus, tidos por ele como fanáticos
supersticiosos. No entanto, ele se opôs à perseguição a
estes povos. Colaborou ainda com um dos
enciclopedistas mais radicais, Diderot.