Filho de uma abastada família de
judeus espanhóis que se refugiara na Holanda para escapar da perseguição da
Inquisição católica, Baruch Espinosa nasceu em Amsterdã, estudou na escola
hebraica e completou a sua educação como um livre-pensador de formação
católica. O conhecimento do latim deu-lhe acesso aos clássicos da filosofia e
às obras dos autores modernos (Descartes, Bacon, Hobbes), mas à medida que ia
delineando o seu original sistema filosófico cresceram os atritos com a
comunidade judaica de Amsterdã, que cada vez mais via naquele jovem brilhante e
excessivamente original um perigo para a ortodoxia religiosa. O conflito intelectual culminou com a excomunhão: Espinosa foi
expulso da sinagoga, abadonado pelos amigos judeus e mesmo pelos parentes ( a
irmã tentou tirar-lhe a herança paterna). Um fanático tentou apunhala-lo e
somente sua juvenil agilidade do filósofo evitou o pior. Banido de sua
comunidade, refugiou-se em um pequeno vilarejo perto de Amsterdã e começou a ganhar
a vida trabalhando como polidor de lentes ópticas. Apesar dos parcos recursos
com os quais passou a viver, sempre defendeu coerentemente suas idéias,
rejeitando os prêmios e as compensações oferecidas por nobres admiradores
católicos. Em 1673, recusou o convite para ensinar na Universidade de
Heidelberg, na Alemanha, considerando que qualquer encargo profissional oficial
teria limitado a sua liberdade de pensamento. Morreu de tubérculos três anos
depois, com apenas 44 anos.
Para Espinosa, Deus não é separável
do mundo, mas coincide com ele. Esta conclusão estabeleceu uma irremediável
fratura entre o filósofo e a tradição judaico-cristã, que concebia deus como um
ente criador e preexistente ao mundo, uma pessoa distinta do mundo.
O PROBLEMA: como é possível
definir a natureza de Deus?
A TESE: da definição de Deus como
substancia (aquilo que não precisa de
nada para existir) decorre uma série de considerações: Deus é único,
perfeito, autossuficiente, dotado de infinitos atributos, que só em parte os
homens conseguem perceber e compreender. Aparentemente, trata-se de afirmações
pouco originais, muito semelhantes às que são feitas pela tradição teológica
cristã. No entanto, Espinosa, exatamente pela identificação inicial entre ações
de Deus e substancia, atribui a essas proposições significados novos e
incompatíveis com as doutrinas cristã e hebraica. Se efetivamente Deus é a
única substancia, deve coincidir com o mundo, porque, de outro modo, existiria
outra substancia material e corpórea distinta e diferente Dele. Fazendo uma
releitura do antigo panteísmo, Espinosa sustenta que Deus é a natureza e a
natureza é Deus. E, posto que Deus é infinito, assim também deve ser a
natureza, não obstante nos pareça finita e determinada. O fato é que a nossa
mente só consegue capitar dois dos infinitos atributos (o pensamento e a
extensão) do Deus-natureza.
Dizemos que Deus é um ser de que
tudo se pode afirmar, ou seja, que possui um numero infinito de atributos, cada
um dos quais, na sua especificidade, é infinitamente perfeito.
Para que o nosso pensamento se
expresse claramente, apresentaremos quatros proporções: 1 não existe uma
substancia finita, mas cada substancia deve ser infinitamente perfeita no seu
gênero , o que quer dizer que no intelecto infinito de deus não pode existir
nenhuma substancia mais perfeita do que aquela que já existe na natureza; 2)
não existem duas substancias iguais; 3) uma substancia não pode produzir uma
outra; 4) no intelecto de Deus não existe nenhuma substancia que não exista
formalmente na natureza. (Essas são as quatros proposições relativas ao
conceito de substância)
No que concerne à primeira
proposição, ou seja, que não existe uma substancia finita, se alguém sustentar
o contrario, nós lhe perguntaremos: essa substancia é limitada por si, quis ela
mesmo ser limitada, e não ilimitada? Ou, melhor, ela é limitada pela sua causa,
que não pôde ou não quis dar-lhes mais? ( a inexistência de uma substancia
finita decorre da definição de substancia: “aquilo que não precisa de nada para
existir).
A primeira alternativa não é
verdadeira, porque é impossível que uma substância tenha por si só desejado
limitar-se, principalmente uma substancia que exista por si mesma. Então, eu
digo, deve ser limitada pela sua causa, que é necessariamente Deus. Ora, se for
limitada pela sua causa, isto se deve ao fato de que esta causa não pôde ou não
quis dar-lhe mais. Isso parece indicar ciúme: o que é impossível em deus, que é
todo bondade e plenitude. (É impensável uma substancia que se limite por si só,
somente deus poderia limitá-la, mas seria um Deus impotente e ciumento).
Nós demonstraremos a segunda
proposição – de que não existem duas substancias iguais -, dizendo que cada
substancia é perfeita no seu gênero, posto que, se existisse duas substancias
iguais, uma limitaria a outra e, neste caso, a substancia não seria infinita,
como demonstramos anteriormente. (se a substancia é infinita, não é mais
possível pensar em uma pluralidade de substancias. A substancia é única).
No que concerne ao terceiro ponto – uma
substancia não produz outra -, se alguém quisesse sustentar o contrario, nós
perguntaríamos: a causa que produziria essa substancia teria os mesmos
atributos da que é produzida ou não? A segunda hipótese é impossível, uma vez
que nada é produzido do nada. Resta porem, a primeira. Então perguntaremos
novamente: no atributo, que seria a causa do produto, a perfeição é igual? Ou,
então, é maior ou menor do que no produto? Não pode ser menor pelas razões já
apresentadas. Não pode ser maior porque senão o outro seria limitado, o que
contraria o que foi por nós demonstrado. Portanto, a perfeição deveria ser
igual e, consequentemente, as duas substancias seriam iguais, também
contrariando claramente a demonstração anterior. ( dada a definição inicial de
substancia, se uma substancia produzisse uma outra, esta deveria ser idêntica à
primeira, até coincidir com ela)
Além disso, aquilo que foi criado
não pode ter sido criado do nada, devendo necessariamente ter sido criado a
partir de alguma coisa existente: mas que a criatura possa provir de alguma
coisa sem que resulte minimamente diminuída, isso nossa intelecto não pode
compreender. (tanto a hipótese cristã de que o mundo foi criado do nada por
Deus quanto a hipótese neoplatônica da emanação são impensáveis.)
Por ultimo, se quisermos reportar
a uma causa a substancia que é principio das coisa que nascem da sua
propriedade, nós temos que buscar a causa dessa causas, e de novo a causa dessa
causa, ao infinito. De modo que, sendo preciso no final parar e repousar em algum
lugar será preciso fazê-lo nessa substancia única. (Deus, a Substancia,
Matéria, não é causado por nada, porque é causa de si mesmo)
O quarto ponto – de que não
existem substancia ou atributo no intelecto infinito de Deus, além daqueles que
existem formalmente na natureza -, nós demonstramos: 1) com a potencia infinita
de Deus, que faz com que nele não possa existir causa que o determine a criar
uma coisa em vez de outra; 2) com a simplicidade da vontade; 3) com o argumento
de que Deus não pode deixar de fazer tudo o que é bom; 4) com o argumento de
que aquilo que ainda não é não pode jamais ser, posto que uma substancia não
pode criar outra substancia. (Em Deus, a Substancia da inteira realidade, ou
Matéria, ou outro nome que queira chamar, n~qao pode existir nada mais do que
existe na natureza)
Disso tudo decorre que da
natureza afirma-se tudo absolutamente – em outras palavras, que a natureza é
composta de infinitos atributos, cada um dos quais é infinitamente perfeito no
seu gênero: o que corresponde plenamente a definição que se dá de deus. (Deus e
natureza é a mesma coisa)
Sobre o que dissemos ha pouco –
ou seja, que não existe nada no intelecto infinito de deus que não esteja
formalmente na natureza -, alguém assim objetará: se deus já criou tudo, não
poderia mais criar nada. Mas vai contra a sua onipotência que que deus não
possa criar mais nada. (pode-se objetar que a coincidência de Deus com a
natureza de certo modo limita deus).
Admitimos como primeiro ponto,
que deus não pode criar mais nada. Como segundo ponto reconhecemos que, se deus
não pudesse criar tudo o que é suscetível de ser criado, isto contradiria a sua
onipotência, mas nõadmitimos que seja o contrário à sua onipotência não pode
criar aquilo que é em si mesmo contraditório: como dizer que ele criou tudo e
ainda pode criar alguma coisa. Euma perfeição muito maior deus ter criado o que
está em seu intelecto do que não ter criado, ou jamais poder cria-lo. (mas deus
é necessidade e já deve ter criado tudo o que é possível ser criado).
Mas porque insistir tanto? Não se
deve argumentar do mesmo modo quanto à oniciencia de deus? Se deus sabe tudo
ele não pode saber mais nada, mas que deus não possa saber mais nada écontrário
a sua perfeição. Novamente, se deus tem tudo no seu infinito intelecto, e pela
sua infinita perfeição não pode saber mais nada, por que não podemos dizer que
tudo o que tem intelecto Ele produziu e fez, de tal forma que tudo aquilo
existe ou existirá formalmente na natureza? (não é blasfêmia afirmar que Deus
não pode aprender nada, porque isso decorre da sua onisciência).
Posto que sabemos que tudo está
igualmente no intelecto de Deus e que não existe motivo para que Ele tivesse de
criar uma coisa antes da outra – podendo ter pronunciado tudo no mesmo momento
-, vejamos se não poderíamos, de nossa parte, usar contra os nossos adversários
as mesmas armas que usam contra nós. Assim: se Deus jamais pode criar sem que
Lhe restem outras coisas para criar, ele não pode de fato criar aquilo que
poderia; mas, que Ele não possa criar aquilo que pode criar, é contraditório.
Logo, as razões pelas quais afirmamos que todos os atributos que estão na
natureza são um único ser, e não diversos entes, são as seguintes: (pensar que
o mundo foi criado por Deus no tempo, em etapas sucessivas, leva a insanáveis
contradições)
1) Nós
já descobrimos que deve existir um ser infinito e perfeito, e por tal só se
pode entender um ser que tenha uma certa essência deve ter atributos e, quanto
mais essência lhe for atribuída, mais atributos lhe deve ser conferidos; e,
logicamente, se esse ser, é infinito, deve ter um numero infinito de atributos,
e é exatamente por isso que chamamos de ser infinito. (sob infinitos atributos,
a natureza (deus) consiste em uma única substancia).
2) A
unidade que vemos na natureza: se existissem mais seres distintos, um não
poderia comunicar-se com o outro. (a comunicação entre seres distintos da
natureza implica a sua unidade).
3) Nós
já vimos que uma substancia não pode produzir uma outra e que se uma substancia
não existe é impossível que comece a existir. Todavia, não vemos, em nenhuma
das substancias que sabemos existir na natureza - , qualquer necessidade da sua
existência, de modo que a existência não pertence à sua essência tomada
separado: disso deve necessariamente resultar que a natureza, que não nasce de
nenhuma causa e que, todavia, nós bem sabemos que existe, deve ser um ente
perfeito a quem pertence a existência. (cada coisa na natureza tem uma causa,
mas a natureza no seu conjunto não pode ter uma causa. E posto que o que existe
sem ser causado é Deus, deus e a natureza coincidem).
De tudo que
vimos até agora, é evidente que nós afirmamos ser a extensão um atributo de Deus,
o que parece incompatível com a essência de um ser perfeito. Visto ser a
extensão divisível, o ser perfeito se comporia em partes, o que parece
incompatível com deus, que é um ser simples. Além disso, a extensão, quando é
dividida, encontra-se no estado passivo, o que é ainda mais incompatível com a
essência de Deus, que não é passivo e nada pode sofrer de outro sujeito, uma
vez que ele mesmo é causa primeira eficiente de todas as coisas... ( a extensão
é um atributo da natureza de Deus).
Depois de ter
discutido sobre a essência de deus, só nos falta falar dos seus atributos, ou
seja, daqueles que nos são conhecidos e são em numero de dois – pensamento e
extensão -, posto que falamos aqui somente dos atributos que podem ser
verdadeiramente chamados de atributos de Deus e pelos quais nós o conhecemos em
si mesmo. (pensamento e extensão são os dois atributos de deus).
Tudo aquilo que
os homens atribuem a deus fora desses dois atributos e que efetivamente se
aplica a ele deve ser ou uma denominação extrínseca – por exemplo, ele existe
por si mesmo, é único, eterno, imutável, e assim por diante – ou, então, puras
operações, por exemplo: Ele é causa predestinante, regulador de todas as
coisas. O que na verdade é totalmente próprio de Deus, sem que, todavia, se
possa aprender o que seja ele... (pensamento e extensão são as duas únicas
manifestações de Deus compreensíveis ao homem)
Devemos brevemente
distinguir a natureza em duas partes: a natureza naturante e a natureza
naturada. Por natureza naturante entendemos um ser que, por si mesmo, sem ajuda
de nenhuma outra coisa (com todas as propriedades ou atributos que já
descrevemos), é conhecido clara e distintamente. Esse é deus. (Deus é definível
como natureza naturante (criadora) e natureza naturada (criada).