sexta-feira, 13 de abril de 2012

O Santo-de-Pau-Oco


Cláudio Teles




O Santo-de-Pau-Oco
Só não digo quem sou,
Se mesmo sem quem sou?
Tudo indica que,
Tudo implica que,
Só sei do que serei.
Nada  além disso.
Tudo é esplendor da vida,
Faz, deixa sua marca no mistério da existência.
Eu penso por que existo?
Palavras não são saberes?
Me persuade com a força dos opostos.
Tudo indica que,
Tudo aponta que,
Sou essa tal de vida.
 Sei o que é esse troço!

















 PRÓLOGO

Pronto-Socorro, Juiz de Fora
          24: 00
O velho garimpeiro João Maranhão despertou afogante em um dos leitos do grande hospital público Pronto-Socorro de Juiz de Fora. Estava com a cabeça enfaixada e respirando por aparelho oxigenado. Tentou desesperadamente pegar uma caneta e um bloco de receitas numa mesa ao lado. Fez força tentando levantar-se, mas não conseguiu. Estava com as duas pernas quebradas. Procurou lembrar como tudo aconteceu.   Levei os rapazes para o baile em Matias Barbosa e, na volta, a neblina estava muito forte. Devo ter confundido a entrada de Simão Pereira com uma curva para Monte Verde e certamente caído nas rochas do Rio do Peixe. De fato, Maranhão, absorto em seus pensamentos do Terceiro Caminho, passou reto entre as duas curvas que davam acesso à esquerda para Simão Pereira, e à direita para Monte Verde e foi cair nas rochas do leito do Rio do Peixe descobertas pelas águas em período de estiagem.
Maranhão retirou o soro do encaixe e com o encaixe na mão, puxou a mesa que estava próxima. Com esforço pegou a caneta e o bloco de receita do médico. Tudo é difícil. O esforço que fazia deixava-o mais debilitado e a morte era iminente. Preciso escrever a Onório. Os médicos do hospital já tinham feito os preparativos para a retirada dos órgãos. Três horas depois, Marta entra no centro de recuperações de pacientes vindos do Centro de Tratamento Interno. Estranhou a bagunça do leito. Olhou para João Maranhão e viu que segurava uns pedaços de papéis e uma caneta. Tocou e examinou-o. Está morto.
Ela tira-lhe a caneta e os papéis das mãos. Curiosa, leu rapidamente o texto que o velho Maranhão tinha escrito. A primeira mensagem era: por favor, entregue a Onório. 9888667710(são 10 números?). Olhou o verso da folha e leu a inscrição: sou doador de um único órgão, o cérebro. Nada mais além do cérebro.
      O senhor Maranhão era dono de duas balsas de extração de ouro no estado de Minas Gerais. Uma das balsas fazia o percurso no Rio do Peixe, de Monte Verde a Cotegipe, um pequeno povoado de uma antiga estação de trem, no município de Matias Barbosa. Conhecia todos os garimpos brasileiros. Foi pioneiro do garimpo de Serra Pelada. Participou do ciclo do ouro dos garimpos das regiões de Itaituba, Porto Velho e Alta Floresta. Na região de Itaituba foi o primeiro a explorar os garimpos de Cripurizinho, Abacaxi, Tabocal, Pista Nossa Senhora da Conceição. O velho João Maranhão foi o primeiro a modernizar a extração de ouro, do método de chupadeira de baixão para chupadeira de mergulho, nos rios Cripuri, Jamanxim, Tapajós e Madeira. Transladou suas balsas por todos esses rios e mais o Rio Doce, Rio Guaporé, Rio das Velhas. Tudo que arranjou no garimpo, investiu no garimpo. O garimpo lhe dava e imediatamente lhe tirava o que lhe tinha dado. Só lhe restavam duas balsas porque a terceira tinha naufragado no Rio Pomba a três quilômetros de Cataguases.
       Quando o dia amanheceu, Marta pegou o celular e ligou para o numero 9888667710 (são 10 números?).

Capítulo 1

Poção de Pedras
08:00

Onório Rodrigues procura por um objeto dentro de seu carro; quando encontrou, guardou-o. Pegou um saco de farinha de puba e guardou-o na mala do carro. Um conservado fuscão branco com teto solar adaptado.
     O velho Maranhão não esquece sua farinha. 
Seu celular começou a vibrar e emitir um som de alerta dentro de seu bolso.
Olhou no visor.
     Desconhecido! Quem será?
Onório atendeu o celular.
    – Alô?
    – Senhor Onório? – disse uma voz de mulher – descupe-me, eu sou Marta. Sou enfermeira do hospital de Juiz de Fora. Seu amigo João Maranhão morreu e deixou uma coisa para você. Entre em contato comigo.
    ─  O velho Maranhão morreu?
Onório ficou imóvel sem saber o que fazer. Veio-lhe a angústia, o temor da morte.
Foi-se um homem que poucos tiveram a chance de conhecer como eu o conheci. Sempre querendo o novo, intelectual e misterioso. Um amigo. Um verdadeiro amigo.
Sem acreditar, ligou para o celular do velho. Uma voz eletrônica dizia "o número para o qual você ligou está fora de área ou desligado". Não atende.
Onório dirigiu-se imediatamente à casa de Dona Francisca das Chagas na Rua Ribeirão.
    – Bom dia dona Francisca – foi dizendo Onório a uma velha gorda e de aspecto doentio com um terço de rosário na mão.
    – Bom-dia meu fio, ainda pu aqui. Disistiu da viage foi?
    – Não, Dona Francisca. Mas não sei como dizer. Aconteceu uma desgraça.
    Dona Francisca, rezadeira dos velhos tempos, rezava em sua casa todos que dela precisasse. Dentro da casa, por uma porta semiaberta, via-se uma vela acesa embaixo de uma mesa. Sigino-salomãos desenhados no chão com giz davam um aspecto sinistro de mistério sobrenatural.
    – Pois diga logo meu fio. Do que se trata? Pra mim num tem disgraça maior que ficar longe de meu veio. Vive no garimpo a vida toda. Nun deixa me fartar nada é verdade. É um home bom. Mas o home nun acridita in Deus. Rezo todo dia pra Deus tocar in seu coração. Outo dia... Hô meu fio, entra e senta! Mas qui cabeça a minha.
    – Obrigado, dona Francisca – Onório entra e se agasalha em uma cadeira de macarrão verde.
     – Como tava dizendo, outo dia, quando Jão istava aqui, ante de ir pras mina geral, disse qui tava com uns pobrema. Eu fiz uns trabaio pra ajudar ele, mas ele sorriu de mim.
    – Do que se tratava, dona Francisca? Que Trabalho era esse?
    – Meu fio Jão istava pesado e pricisava fazer arguma coisa, mas ele num acreditou. Chamei ele pra ver cumo era verdade e ele saiu num riso qui quase dismaia de tanto rir. Chamei pro meu quarto de oração e mostrei a vela qui eu coloquei ali! Venia ver! – Onório entrou no quarto, viu uma mesa com várias imagens de santos – Meu fio, a vela qui eu coloquei pra atrair as coisa qui estava mandano pra ele, ataiou tudo. Ele me disse se algum dia eu provasse pra ele qui o qui eu tava dizeno era verdade ele acriditava.
    – E o que a senhora atalhou, dona Francisca?
    – Meu fio o prato in qui eu coloquei a vela istava cheio de bisouro, e dos grande. Sabe o que ele me disse quando parou de rir?
    – Imagino!
    – Você também num acridita. Num é seu Onóro?
    – Não é isso, dona Francisca. Mas é que eu conhecia muito bem meu amigo. E certamente deve ter dito que colocaria uma vela menor e atrairia mais mosquito do que a senhora. Porque os mosquitos parece se alimentarem da luz, mas na verdade ele fica desordenado e esbarra em luz.
    – Foi ixatamente o qui ele disse. Mas você disse qui cuicia? Ele sempre vivia dizeno qui não murria. Qui ele era imortal. Aquela é a sala dele. Vamo intrar pra você ver! – Onório observou a sala desorganizada com vários papéis espalhados sobre uma mesa, uma máquina datilográfica e um computador. Ao lado do computador tinha uma grande estante com vários livros. Com paciência foi olhando os títulos dos livros.
 Satiricon, Odisseia, O Príncipe, Seis Dramas, Cartas Persas, Utopia, A República, Apologia de Sócrates, A Política, O Vermelho e o Negro; Monarquia; O Código Da Vinci; Misquoting Jesus: the Story Behind who Changed The Bible and Why; Le Ciel et l’ Enfer; La Magdalena: El Ultimo Tabu Del Cristianismo.
    – Quando ele istava aqui, passava a noite no cumputador iscreveno um livro e quando vai imbora diz que leva o livro impindurado no pescoço dento dun pen dravi. Meu fio você falou numa disgraça e qui cuicia Juão! Acunticeu arguma coisa cum ele?
    – Foi, dona Francisca, João Maranhão morreu.
    Dona Francisca sentou em uma cadeira. Todos morrem. Até mermo Juão Maraião.
    Ficou observando Onório folheando alguns papéis.
    – Se quiser arguma coisa meu fio, pode levar. Esses livros não me seve de nadinha. Dá uns pra Aparicida. Ela é professora.
    – Obrigado, dona Francisca. Vou levar alguns.
                                              
Capítulo 2

Centro educacional Manoel Oliveira

A diretora da escola, a senhora Juliana, inicia a reunião com o corpo docente da escola.
    – Este ano está sendo incluída a disciplina de Filosofia. É uma disciplina nova na grade curricular do ensino fundamental desde o 6º ao 9º ano. Portanto segue o mesmo método de distribuição de disciplinas. Para completar a carga horária devemos distribuir as diversas disciplinas entres os senhores e senhoras, independentemente do grau ou área de formação ou aptidão. Como todos já têm suas disciplinas do ano passado, eu pergunto: quem fica com a disciplina de Filosofia?Os professores ficaram trocando olhares por um instante.
    – Eu aceito – falou a professora Sofia. – Completo a minha carga horária com a disciplina de Filosofia.
    – Professora Sofia – retomou a diretora. – Devo lhe dizer que os conteúdos abordados dentro da sala de aula têm que obedecer rigorosamente aos Parâmetros Curriculares Nacionais e aos Temas Transversais.
    – Com toda certeza, senhora diretora. Tenho consciência disso. Dentro dos seis temas eleitos pela equipe que elaborou os programas optarei pela ética em vista de ser, não o único, mas o principal tema trabalhado no pensamento filosófico contemporâneo. Não porque sou uma filósofa, estou longe disso, mas porque me é possível abordar questionamentos sobre o papel da educação, apresentado pelos pedagogos, e os rumos que tomou. Porque ela aponta a necessidade de “formar cidadãos” para uma “excelente competição trabalhista” – deu uma pausa – que absurda ideologia! Ninguém cresce com o trabalho. Essa foi uma forma encontrada por especialistas intelectuais dominantes para escravizar ideologicamente as pessoas a trabalharem sem nunca poderem alcançar o verdadeiro sentido da vida. Respeitar as diversidades culturais e políticas não forma “cidadãos”, mas subservientes. Esses conhecimentos, elaborados em convenções dominantes e impostas à juventude, não podem ter o status de “necessário ao exercício da cidadania”.
   Este não é o retorno que se espera da contribuição obrigatória devida ao estado porque fomenta o consumo de produtos que desqualificam o verdadeiro sentido da vida (que não pode ser viver, mas contemplar a vida. Porque quem é vivo sempre está vivendo) e o livre exercício de sua vontade de potência. Essa forma de ver o trabalho como realização pessoal gera um ciclo vicioso irreversível em que cada indivíduo torna-se uma peça de reposição fundamental da engrenagem sistematizada, tão desqualificante que a peça “estragada e alienada” não consegue retificar-se por não saber retratar-se. Também não consegue ratificar-se. E a vida, fundamento maior da existência, não pode mais fluir sua plenitude.
   Pretendo trazer para a sala de aula uma reflexão sobre a liberdade de escolha.  E a pluralidade cultural é um tema que me faz crer possa permitir fazer um paradoxo discriminatório religioso.
    – Discriminação religiosa, professora! Confesso que nunca ouvir falar em tal discriminação – retrucou a professora aparecida. – Isso já foi superado. Protestantes e católicos, Judaísmo, Cristianismo, Islamismo e Zoroastrismo já não se enfrentam mais.
    – Até mesmo a senhora pode ser uma dessas pessoas, professora, que discrimina exatamente porque faz parte de uma religião. A discussão hoje não está entre religiões, mas pela a falta de religião. A falta de crença e de fé.
    – Confesso que não estou entendendo. Por acaso a professora sabe me dizer de onde nasce a fé?
    – Ora, todo aquele que se julga incapaz de crer e tem consciência disso, não precisa se convencer da existência de Deus por provas ulteriores, mas tão somente caminhar para a fé. E a fé cresce fazendo esforço como se acreditasse que crer. O caminho para a fé nasce indo para a missa, rezando, acendendo vela para os mortos, tomando da água benta e por aí vai até se tornar "mansinho". Foi assim que me perguntei por que creio.
    – Você não acredita em Jesus?
    – Acreditar em Jesus é diferente de seguir Jesus. Até porque ninguém segue. Mas seus ensinamentos são dignos de confiança no que diz respeito mútuo. Mas saiba a senhora que Sócrates foi condenado por não acreditar nos deuses e Jesus por acreditar demais. Eu adoro os Judeus, sabe professora! Porque foram eles que inventaram essa grande religião monoteísta eliminando não os deuses, mas coligindo todos em um único nome. E essa religião vigente está baseada na adoração de alguém que foi reconhecidamente Judeu. Mas que estupidez. Jogaram areia nos olhos do público. Jesus Cristo que todos dizem que era, e ainda é “Deus”, não era nada mais nada menos que um homem Judeu. Tipicamente Judeu. Pegaram um Judeu e transformaram, depois de morto, em um Deus. Desculpe-me, senhora diretora, mas eu nunca vi uma mistura de porcarias e de tolices mais asquerosas que essa religião cristã. Digo mais, senhora diretora, eu não acredito que exista Deus e não acredito no dogma da ressurreição da religião cristã, nem de qualquer religião. É tudo mentira. É tudo conversa fiada, lengalenga e mais nada. O que existiram foram super-homens que conseguiram mudar o rumo da história do seu tempo. Jesus foi fundamental, o autor principal, para quebrar os ícones da sociedade de sua época. Cada super-homem é preciso que seja lembrado como tal, mas não como Deus. Porque suas ações foram frutos de espíritos naturais de pessoas diferenciadas, que no primeiro momento não foram compreendidas, mas ao longo do tempo é possível tirar desses grandes homens o que de melhor existia em suas análises. Não posso negar que Jesus foi um grande conhecedor do espírito humano. Mas esse conhecimento se deu por indução. Observando a si mesmo foi que disse: "aquele que não tem pecado que atire a primeira pedra". 

Capítulo 3

Depois de esperar por Aparecida, assistindo televisão, sentado em um sofá, Onório sai até a porta da rua, dá uma olhada para ver se ela já estava vindo. Que demora. Volta ao sofá e depois de dez minutos ela entra.
    – Desculpe a demora, estávamos em reunião com os pedagogos da escola. Espere um pouco enquanto trago algo para beber. – Aparecida não demorou voltar com uma garrafa de vinho e duas taças.
    – E então vai mesmo viajar para Minas Gerais? – colocando vinho na taça – fiquei sabendo de seu Maranhão.
    – Estou de partida. É preciso resolver algumas coisas por lá. Mas pretendo voltar logo.
    – Jura que quando voltar vamos nos casar? Já falei com as meninas que vão arrumar a igreja. Vai ser uma festa simples. Do seu jeito.
    – Aparecida, é mesmo necessário casarmos na igreja e no papel?
    – Por que fala assim? Não é assim que todos casam?
    – Não acredito que para uma boa convivência seja necessário receber a benção de um padre ou selar em um papel.
    – Há! É o padre que te incomoda? Não entendo. Você sempre foi um frequentador da igreja. Quando você era adolescente foi coroinha da igreja e participava de todas as missas e agora não quer nem falar na igreja. O padre Jeremias vivia dizendo que você era o melhor acólito. Hoje ele diz que você foi o melhor sacristão da matriz. O que aconteceu? Posso saber?
    – Não tenho nada contra a Igreja e contra nenhum padre. Eles poucos têm culpa.
    – Culpa de quê, homem de Deus? Eu já me divorciei e não existe nada que nos impeça agora de  casar.
    – Por que se casou?
    – Já te falei mil vezes. Você foi para o garimpo e passou três anos sem dar notícias. Pensei que não lembrava mais de mim. Fiquei só com nossa filha. A minha sorte foi ter passado no concurso para professora e a ajuda, de meio salário mínimo, que o padre Jeremias dava para nossa filha. Esperei-te por dois anos e meio. Com seis meses de casada você aparece.
    – Por que ele dava essa ajuda?
    – Ele disse que fazia questão de ajudar a filha do melhor amigo dele.
    – Penélope esperou vinte anos por Ulisses. Você não espera três? – ironizou com um sorriso maroto.
    – Só que Penélope, meu amor, era uma personagem fictícia enquanto que eu sou real. Mas sempre te amei. E você sabe disso.
    – Você não é uma mulher religiosa?
    – Sou, e o que tem isso há ver?
    – De acordo com a Bíblia não podemos nos casar.
    – O quê! Você tem cada uma – tomou um gole de vinho. – Por acaso você já leu a Bíblia alguma vez? O padre Jeremias, às vezes, pedia para você fazer a leitura na missa, mas isso não significa que conhece a Bíblia.
    – Estou falando sério. Pois me diga o que fazer se a lei de Moisés diz: “Todo aquele que se divorciar de sua mulher deve dar-lhe um atestado de divórcio” enquanto que Jesus diz que todo aquele que se casa com uma mulher divorciada comete adultério?  E diz mais, diz ele que o ato de cometer adultério não está só na prática sexual, mas, “Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Mas eu vos digo: todo aquele que olhar para uma mulher com pensamento de luxúria em seu coração já cometeu adultério com ela”. E o que dizer de uma mulher que se encontra em tal situação como você? O seu ex-marido lhe deu o atestado de divórcio para que você ficasse livre para um outro matrimônio sem o risco de cometer adultério. Mas nenhum homem pôde casar com você porque Jesus disse que ele estaria cometendo adultério mesmo você sendo divorciada. E eu que gostaria de casar com você já cometi adultério só porque pensei em casar com você. Como é que um homem pensa em casar com uma mulher qualquer, se não existe nesse homem: exuberância, lascívia, sensualidade e uma moderada libertinagem. Não é um sentimento natural e necessário para a conquista do sexo oposto?
    – Não, não e não! Isso não é justo. Deve ter alguma coisa errada nessa lei. Não pode Deus ter feito um coisa assim. Isso é coisa de homem. Alguém deve ter mudado. Deus disse uma coisa e Jesus outra! Pai e filho não se entendem?
    – E mudaram! – Sorrindo e agasalhando-se no sofá. – E se nem Deus, nem Jesus disse essas coisas que estão na Bíblia? – acrescentou.
    – Quê? Por que fala assim? Quer me assustar, é? Se bem que nesse caso...
    – Não quero assustar ninguém. Mas lembras quando nós éramos adolescentes e que na Semana Santa fazíamos aqueles teatros representando a paixão de Cristo?
    –  Como era bom, Onório. Bons tempos que não voltam mais. Você representava tão bem o papel de Jesus rumo à crucificação no calvário. Eu era Maria Madalena só para ficar junto de você. A Rosinha ficava muito tempo sem falar comigo. Quando o ignorante do Agostinho batia em você com força, eu pisava no pé dele. Ele ficava bobo da vida só porque era soldado romano.
    – Pois é, minha linda. Foi naquela época que algo me chamou atenção. – Tomou um gole de vinho.
    – O que foi?
    – Representávamos todos os anos, lembras? Quando eu passava na rua as crianças diziam: mãe!  Lá vai Jesus! Hei Jesus! – dando um tchauzinho com a mão.
    – Meu amor, está com remorsos de ter sido Jesus, é?
    – Não, Aparecida, não é remorso. Foi um desentendimento que eu tive com o padre Jeremias.
    – Você teve coragem de discutir com o padre Jeremias? Meu Deus! O que eles conversaram!? Por quê? Então é por isso que não quer casar na igreja?
    – Uma pergunta de cada vez, ta bom?
    – Credo! Eu hein!
    – A discussão começou quando ele me deu o texto que queria que Jesus dissesse no momento da morte. Eu ameacei-o de não participar da apresentação. Mas ele implorou que eu apresentasse, alegando que o povo não tinha culpa de nada. Ainda mais porque estava muito encima para procurar um novo ator. Disse que depois eu o procurasse para uma conversa franca.
    – E vocês conversaram?
    – Conversamos. 
    – Do que se tratava? Que conversa foi essa?
    – Eu perguntei para ele porque ele estava mudando o texto da paixão de Cristo todo ano.
    – Como assim, mudava o texto, eu não percebi. Por que então ele mudava?
    – Não era ele que mudava, explicou-me depois. Era a Bíblia que tinha sido mudada.
    – Você deve está ficando louco. Quem mudou a Bíblia e por quê?
    – Mudaram por várias razões. Eu comecei a desconfiar que alguma coisa estivesse errada quando toda vez que eu estava crucificado, antes de morrer, eu pronunciava palavras diferentes da apresentação anterior.
    – Como assim? Que palavras eram mudadas?
    – Uma vez eu dizia: “Pa,i nas tuas mãos eu entrego o meu espírito.” Logo em seguida morria. Outra vez era assim que eu dizia: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonastes?” logo em seguida, alguém colocava, com uma esponja, água em minha boca, significando vinagre ou vinho. Só depois disso eu dava um grito e morria. – Colocou vinho na taça, bebeu um gole – Mas na última apresentação que eu fiz, não foi nenhuma dessas duas versões. Eu, na cruz, estava olhando para vocês, as Três Marias, que estavam juntas: mamãe, a rosinha representando a Maria de Cléofas e você, representando Maria Madalena. Então eu disse para minha mãe que você era meu discípulo amado. Depois pedi um pouco de bebida. Porque eu disse: “tenho sede”. Eu não sei como adivinharam que eu ia pedir água, porque puseram ali um vaso cheio de vinagre. Deram-me de beber em uma esponja embebida de água amarrada na ponta de uma cana. Bebi, mas não era água, nem vinagre, era vinho. Então eu disse: “Tudo está consumado”. E inclinei a cabeça e morri. Na verdade, essa é a palavra: “morreu”.
    – Meu Deus do céu! Só agora é que percebo que existem as três versões. E o que pode ter acontecido? Afinal de contas, Jesus entregou seu espírito a Deus ou foi abandonado por Deus?
    – Nenhuma das duas. Talvez a última seja a mais correta. "Tudo está consumado" é o mesmo que "tudo está acabado" – deu um sorriso observando a perplexidade de aparecida. – Minha querida, existia dentro do cristianismo primitivo uma briga interna entre os cristãos.
    – Por que brigavam então, que briga era essa?
    – Eles brigavam por vários motivos. Ainda hoje existem brigas, entres inúmeras igrejas, para saber qual a doutrina e o dogma correto. Nesse caso “entregar o espírito a Deus”, “ser abandonado por Deus” ou "tudo está consumado" era uma briga sobre a divindade de Jesus.
    – Confesso que não estou entendendo nada.
    – Havia uma corrente dentro do cristianismo primitivo cujos seguidores eram considerados “separacionistas” porque dividiam Jesus em Dois seres. Jesus era um homem como qualquer homem, e Cristo um Deus. De forma que Deus não pôde experimentar a morte que se separou de Jesus nesse momento. Outra, foi a que prevaleceu, era a que dizia ser Jesus um Deus.  A outra corrente, da qual compartilhava João, era da corrente dos Gnosticismo. Esses não viam Jesus como Deus, mas um sábio homem que pregava o conhecimento para se chegar à salvação.
    – Meu Deus! Quem poderia imaginar?
    – Tem muito mais. Lembras quando eu carregava a cruz para o calvário e vocês todos me escarneciam, me chamavam de rei dos Judeus, botaram uma coroa de espinho na minha cabeça, e veio Simão que, forçado, me ajudou a levar a cruz. Mas eu nada dizia. Ficava o tempo todo calado?
    – Se lembro, eu era a única que ficava aflita com tudo aquilo. Você fazia o papel de Jesus tão bem que parecia de verdade. Aguentava todo aquele sofrimento sem dizer uma palavra.
    – Só que tem um detalhe.
    – Estou ouvindo.
    – Na mesma cena no ano seguinte muitas de vocês ficavam batendo no peito se lamentando. E eu tinha que falar com vocês dizendo para que vocês não chorassem por mim, mas chorassem por vocês mesmos e por seus filhos. Porque viria um tempo em que vocês iriam dizer que “felizes as estéreis, e os seios que não geraram e os peitos que não amamentaram. Então iriam começar a dizer aos montes para "cai sobre nós" e aos outeiros: "cubram-nos". Por que, se isso fez na madeira verde como se fará na madeira seca?".
    – Jesus amado! Você está dizendo que...
    – É isso mesmo, dois relatos diferentes. Um narrado por Marcos contando que Jesus vai o calvário sem pronunciar uma palavra sequer. E outro por Lucas que engata uma conversa desenfreada com as mulheres. Devo lhe dizer que Marcos foi o segundo evangelho escrito, não se sabe o certo, por volta do ano 63. É nessa ordem cronológica que se encontra na Bíblia. O primeiro é Mateus. Marcos não foi testemunha ocular da vida de Cristo. O que escreveu sobre Jesus foi através da amizade que teve com Paulo, Pedro e seu primo Barnabé. Marcos foi auxiliar de Paulo no trabalho da evangelização, como afirma o próprio Paulo em atos dos apóstolos ou em Colossenses quando ele saúda Marcos. Para falar a verdade, não existiu nenhuma pessoa, na época de Jesus, que pudesse acompanhá-lo em todos os lugares. Todos, por algum motivo, não puderam acompanhá-lo. Problemas de saúde, necessidades fisiológicas e quantas que possam ser possíveis. Certamente ficavam aqueles fuxicos: “E aí! Ele disse algo interessante quando eu estava ausente?” “Há! Sim, ele falou que vai ressuscitar em dois dias". – O outro: – Não, ele disse que seria em três dias”. – Um outro: – Que interessa quantos dias o importante é ressuscitar"! "Ressuscitou Lázaro não vai ressuscitar a si mesmo; aliás, não há motivo para duvidar da ressurreição visto que vimos que Lázaro estava morto e ele o ressuscitou." – Não consigo entender como os discípulos de Jesus não acreditaram nele quando o abandonaram no caminho do calvário. Já que não só a ressurreição de Lázaro foi presenciada por eles como também a ressurreição do filho da viúva da cidade de Naim. Lucas diz que “ia com Jesus seus discípulos e muito povo”. Muito povo que acompanhava Jesus e muito povo que levava o defunto para ser sepultado. Nessa oportunidade, até o profeta João foi incrédulo e mandou dois de seus discípulos perguntarem a Jesus se era ele mesmo o enviado ou teriam que esperar por outro. O profeta não reconheceu o objeto profetizado. Por ironia Jesus diz aos dois enviados por João dizendo: “os cegos veem”, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, “aos pobres é anunciado o evangelho”. – Bando de idiotas – teria dito Jesus – faço tudo isso em tempos difíceis e querem outro melhor do que eu! – Ou aquele povo sofria de amnésia ou nada disso aconteceu. Por que se alguém conseguir hoje ressuscitar um defunto quem duvidaria que ressuscitasse a si próprio? Mas existe um bando, de idiotas, analfabeto que diz que a bíblia tem que ser interpretada. Nisso eu concordo. Mas qualquer interpretação que não está de acordo com suas concepções fanáticas, não é correta. Portanto, quando a interpretamos dizem que não é a interpretação correta. Bando de imbecis! E por que eles, que são uns analfabetos, não dizem a interpretação correta para os que são críticos textuais de oficio? Minha querida, basta você contar um fato para uma pessoa e pedir que ela  divulgue o fato. Pergunte sobre o fato que você iniciou, contando para uma quinta pessoa se o fato mudou ou não.
    – É verdade. E essa é uma dinâmica que costumo usar com meus alunos. Mas não acredito! Talvez porque um deles se esqueceu de contar.
    – Ou acrescentar, você que dizer. Se observar o que está escrito no primeiro capítulo de Lucas, logo em seu prólogo, como ele mesmo diz que apesar de muitos já terem narrado a história, até mesmo os que presenciaram, parecia também, a ele, que nada presenciou, conveniente, depois de muita investigação escrever para seu amigo Teófilo (amigo de Deus) os fatos de todos já conhecidos.
    – Ele disse isso foi?
    – Com todas as letras e, se não acredita– Onório pegou uma pequena Bíblia de bolso e abriu no exórdio de Lucas. – Olhe! – Aparecida leu.
Visto que muitos já tentaram pôr em ordem a narração das coisas que entre nós se realizaram, como nos já contaram, todos aqueles que desde o princípio as viram e foram encarregados da palavra, pareceu-me também a mim, depois de ter investigado com muito esforço tudo desde o principio, escrever-te por ordem, excelentíssimo Teófilo, para que conheças a solidez dos ensinamentos dos quais recebestes.
    – Santo Deus! Lucas então usou outras fontes para escrever seu evangelho. Copiou Tim-Tim por Tim-Tim o que achava conveniente. E o que achava que não estava de seu agrado mudou. E é esse texto que venho acreditando o tempo todo como sendo um texto inspirado por Deus?
    – Nossa! Você também não é professora por acaso. É exatamente assim. Mas você não viu nada ainda, quantos livros da bíblia você já leu? Não digo um capitulozinho aqui outro acolá. Mas um livro todo. Pode ser do velho ou do Novo Testamento.
    – Para ser sincera, nenhum.
    – E essas pessoas que vão constantemente à missa ou a um culto com a Bíblia debaixo do braço, você acha que algumas delas leem?
    – Tens razão no que dizes, meu amor. Sou professora e lhe garanto que mesmo que lessem não conseguiriam interpretá-las porque na sua maioria são analfabetos funcionais. E aqueles que sabem ler não têm o hábito da leitura. Nem todo mundo tem capacidade de fazer uma crítica literária de um texto e não tem conhecimento de teoria literária.
    – Não tem esses conhecimentos que você citou, é verdade. Mas também não tem atenção no que está sendo lido e aceitam tudo como sendo a palavra inquestionável de Deus.
    – Não posso dizer que não tem razão.
    – O padre Jeremias sempre pedia para que eu lesse uma passagem qualquer da Bíblia que ele escolhia para seu sermão. Para enfatizar a importância da mulher no Dia Internacional das Mulheres ele me pediu para que eu lesse “as santas mulheres no sepulcro”. Antes de começar a missa eu fui dar uma lida para não tropeçar na leitura. Na missa, quando chegou o momento e a hora da leitura, eu perguntei ao padre Jeremias qual leitura das santas mulheres ele queria que eu lesse. Ele me perguntou do que eu estava falando. Eu disse para ele que encontrei quatro versões das “as santas mulheres no sepulcro”. Qual das leituras eu devo ler: A que fala que Maria Madalena e a outra Maria que foram, as duas, ao amanhecer do primeiro dia da semana ao sepulcro. Ou Maria Madalena, Maria mãe de Thiago e Salomé foram, as três, no primeiro dia da semana, ao sepulcro. Ou Maria Madalena, Joana, Maria mãe de Thiago e as outras mulheres que estavam com elas, um grupo de mulher, foram ao sepulcro no primeiro dia da semana. Ou aquela que Maria Madalena foi sozinha ao sepulcro no primeiro dia da semana?
    – Você está de brincadeira! E o que ele disse?
    – Você não vai acreditar! No primeiro momento ficou perturbado. Mas se refez e disse: “Aquela que Maria Madalena vai sozinha ao sepulcro, ninguém sabe da verdade mesmo e esse povo aí não sabe de nada mesmo”. Então eu abrir o evangelho de João e li em alta voz: “Jesus aparece a Maria Madalena”. – Pararam de conversar por um instante. Tomaram vinho. Onório organizou os livros.
    – Pois bem, vou deixar com você estes livros e estes papéis. Estava na biblioteca do velho Maranhão. Você não imagina o que ele estava escrevendo. E esses papéis, alguns são rascunhos. Outros são cópias de relíquias encontradas em Nag Hammadi em 1940, no Egito.
    – E o que diz aí?
    – Minha querida, estes são alguns dos livros que não foram aceitos pela igreja cristã primitiva como não sendo inspirados. Não sei se é possível escrever um livro sem inspiração. Mas que agora e aos poucos estão sendo revelados ao público. Não resta dúvida de que se trata de palavras pronunciadas por Jesus. Se é que as da bíblia também as são. E não é só isso, andei pesquisando depois de minha conversa com o padre Jeremias, e encontrei varias histórias, de antigos povos, que foram escritas antes dos primeiros livros da bíblia. Alguns idiotas acham que os relatos da bíblia foram os primeiros. Quando Jesus morreu houve correntes diversas sobre quem era Jesus e o que ele queria. Das correntes que mais disputaram a primazia foram os Ortodoxos e os Gnósticos. Como em toda luta há um vencedor e um perdedor, os ortodoxos ganharam dos Gnósticos. Mas vale dizer que os Ortodoxos só venceram com a ajuda do estado. O poder constituído e o poder da mentira juntos..  A igreja reunia todos os seus bispos para tratarem de assuntos de interesse da igreja. Os chamados Concílios Ecumênicos. Esses concílios estabeleciam o que devia ser aceito como definitivamente certo na doutrina da igreja. O primeiro concílio foi convocado pelo Imperador Constantino na cidade de Nicéia no ano de 325. Constantino estava envolvido, por um lado, com controvérsia cristã e eclesiástica e, por outro lado, enfrentava seus três co-regentes e para se tornar imperador único derrotando seus adversários diretos teve a feliz ideia de se juntar aos cristãos e promulgar o Édito de Milão. Mas esse decreto foi uma condição imposta pelos cristãos. Como ato administrativo, Constantino, a pedido de alguns bispos, construiu a igreja do Santo Sepulcro e a capela de sua mãe, agora então Santa Helena. A capela de Santa Helena foi construída no local indicado por ela como sendo o local em que ela encontrou a cruz em que Jesus foi crucificado. A cruz encontrada por Santa Helena estava em uma cisterna no monte calvário. Ela chegou nesse local por uma visão que teve. Para a mãe de Constantino, a Rainha Helena, a igreja o beatificou como gratidão ao imperador Constantino. A cruz encontrada pela Rainha Helena quase meio milênio depois, acredite se quiser, estava intacta sem nenhuma mancha de sangue nem perfuração alguma. A construção da basílica foi construída com estruturas religiosas pagãs. A entrada principal da basílica só tem duas passagens, mas uma, a da direita, é vedada. Toda essa simbologia faz analogia aos dois caminhos do bem e do mal. Em maio de dois mil e nove, na basílica, o papa bento XVI proferiu a frase: "o madeiro da cruz revela a verdade a respeito do bem e do mal". Foi nesse concílio que ficou estabelecido, como dogma, que Cristo era filho de Deus e Igual ao Pai. Porque esta era a proposta apresentada pelo bispo Atanásio contra a proposta do bispo Ário de Alexandria que pregava que Cristo não era Deus e, portanto, não era igual ao pai. A união das correntes: arianismo, nestorianismo, gnosticismo, maniqueísmo, milenarismo e outros não foram páreos para Constantino e Atanásio, que decidiram em votação apertada a divindade de Jesus.  Foi a vitória dos ortodoxos contra os gnósticos. Enquanto que ortodoxia significa fanatismo, gnosticismo significa sabedoria. Daí por diante, de uma forma ou de outra, a igreja não mais se separou do estado. Posso dizer que Napoleão fez um rompimento parcial entre estado e igreja. O Imperador Teodósio tornou-se cristão, oficializou o cristianismo e aboliu o paganismo. Ou seja, os outros Deuses que se danem! Agora é Javé.
    – Isso significa que se os gnósticos tivessem vencido a luta contra os ortodoxos teríamos uma doutrina de Cristo diferente da que se tem hoje? – perguntou Aparecida.
    – Com toda certeza! Quando os gnósticos perderam a luta alguns tiveram a ideia de esconder seus escritos que passaram a ser chamados, pelos ortodoxos, de livros apócrifos, que significam falsos. Mesmo sendo esses livros escritos por pessoas que estavam sempre ao lado de Jesus como sua companheira inseparável, Maria Madalena. E outros como seu irmão Thiago e seu discípulo Tomás.
    – Maria Madalena escreveu sobre Jesus?
    – Com toda certeza. E você tem aí em suas mãos o que ela andou escrevendo. Dizem até que o evangelho de João pode ter sido escrito por Madalena ou pelo menos foi ela quem contou os mínimos detalhes que ocorrem na ida e vinda ao sepulcro quando dois discípulos de Jesus tomam um duelo na corrida ao túmulo ou a primazia da Igreja.
    – E como esses livros apareceram?
    – Bem, como já disse, quando os gnósticos perderam a luta contra os fanáticos ortodoxos tiveram de esconder o que escreviam e, ao que parece, um eremita cristão de nome, São Pacômio, tinha alguns desses livros. Quando ele morreu construíram um mosteiro em uma aldeia de nome Nag Hammadi nas proximidades de Djebel-el-Tarif, no Egito. De forma que os monges esconderam os manuscritos para não serem destruídos pelos fanáticos e perversos ortodoxos. O certo é que em 1940, um homem de nome Mohamed Ali es-Samman, em companhia de seus irmãos encontraram, dentro de uma âncora (jarra de barro) no mosteiro, hoje ruína, de São Pacômio, esses manuscritos.
    – Que histórias são essas? O que dizem esses manuscritos?
    – Espere um pouco. – Onório foi até o carro e voltou com alguns outros livros. – Esses livros estão sempre comigo. – Onório folheou um livro e disse: - Antes que mostre os escritos de Nag Hammadi vou lhe mostrar, primeiro, outros escritos mais antigos que inspiraram os escritores do Antigo testamento. Entre tantas histórias de inúmeros povos ao redor do mundo, contam histórias referentes ao dilúvio. O relato do dilúvio faz parte da história do mundo e pode ser encontrado em todas as mitologias. Esotericamente tem o objetivo de explicar as terríveis e destruidoras inundações que aconteceram ao longo dos séculos que de alguma forma transformaram a geografia dos antigos países e o modo de vida da população que sobreviveu aos cataclismas que ainda hoje aterrorizam e causam pânico. Numerosos dilúvios parciais ocorreram em todos os continentes. Aqui no Brasil, quando assistimos à televisão, o que vemos, nesse ano de dois mil e nove, são inúmeros dilúvios. Então nos damos conta de como ocorreram dilúvios regionais em Santa Catarina, em Trizidela do Vale aqui pertinho de nós, em Altamira no Pará, entre outros lugares. A diferença dos antigos dilúvios para os de hoje está na nomeclatura: enchente, inundação. Também existe a diferença de conhecimento de mundo e época. Como alguém pode imaginar que algum dia a terra ficou submersa de água? Penso que para isso acontecer, toda água existente no planeta, a que está em forma de gás na atmosfera deveria se condensar e, a líquida que permeia a litosfera, e esta não absorvendo, emergir para a superfície terrestre. Rompendo seu circulo e a morte dos seres vivos não aquático dava- se por falta de oxigênio no ar.    Uma inundação que ocorria na Mesopotâmia era imaginada, na época, que se tratava de toda terra. Ou somente foram figuras hiperbólicas dos poetas da era antiga. De certa forma posso afirmar com convicção, minha querida, que muitos dos relatos que encontramos na bíblia, foram compilados, plagiados e inspirados por outros escritos anteriores à Bíblia. Razões para isso são inúmeras. Primeiro porque os primeiros escritos bíblicos começaram por volta do século dez antes da nossa era; a partir de tradição oral. Segundo, não foram os Hebreus que inventaram a escrita e nem os primeiros a escreverem textos. Não é necessário inventar para ser o único a utilizar melhor a invenção, mas um povo que, como eles mesmos contaram, viviam na época dos primeiros escritos bíblicos como sendo nômades. Certamente assimilaram as culturas dos povos em que tiveram contatos ao longo de sua história. Lemos sempre na Bíblia, principalmente no Velho Testamento, porque até mesmo a Bíblia se parte em duas partes, Deus castigando seu povo por ter se desviado da sua lei e por ter principalmente adorados outros deuses. Não é de se admirar que alguns de seus líderes possa ter copiado ou adaptado, para o seu povo, às histórias contadas por onde passavam. Porque se não foi com base em textos mesopotâmicos, egípcios e outros que construíram vários livros do antigo testamento, mas foi por contos de superstições e lendas populares passados de boca em boca pela comunidade. O certo mesmo é que as duas formas contribuíram para o ensaio da Bíblia. E quase nada que está escrito na Bíblia não foi tirado da época pagã. A começar pelo relato da criação. Assim como Javé, que significa “aquele que é”, também Urano, céu e, Gaia, a terra, surgiram do nada. Do Nada surgiram e se transformaram em tudo. Nada pode surgir do nada. Ora, não se ver que o nada está contido no tudo! Caso contrário, o tudo não pode ser tudo faltando o nada. A primeira mulher, Pandora, protótipo de Eva, não conseguiu resistir à sua curiosidade, abriu um jarro onde estavam depositados todos os males da humanidade e no fundo do qual se encontrava a esperança consoladora. O escritor de Gênesis só mudou o objeto jarro, para árvore. O dilúvio também foi o meio encontrado por Zeus para castigar a humanidade. Todos morreram, exceto Deucalião, protótipo de Noé, filho de Prometeu, e sua esposa Pirra. Portanto, o relato do dilúvio não é uma exclusividade da Bíblia, mas dos pagãos que primeiro criaram essa lenda mitológica. Sem falar do céu e do inferno que só mudaram o nome dos guardiões. Devo dizer que os persas foram quem mais influenciou os fundamentos, opostos, do judaísmo e consequentemente do cristianismo. Tendo em vista que o deus Ormuz-Mazda era o deus do bem e Arimã o deus do mal. Ambos viviam em eterno confronto e o povo tinha o livre arbítrio para escolher entre o bem e o mal e era seu próprio responsável pela sua escolha no dia do juiz final. Conforme a escolha iria para o paraíso ou inferno. O zoroastrismo é a religião do profeta Zoroastro que viveu por volta de 1200 a.C. no atual Irã, que contribuiu para o cristianismo as ideias de anjos, juízo final, céu e inferno. Basta dizer que os Hebreus viveram, primeiramente, nas proximidades de Ur. Uma cidade suméria da Mesopotâmia. Ur não foi só a primeira cidade a se formar no mundo, mas foi a mais importante cidade como centro religioso e populacional. Pelas evidências históricas foi por volta do século dezoito que os hebreus saíram dos arredores de Ur para a Palestina. Veja uma história, talvez a principal história, não a única, da Mesopotâmia, que inspirou Moisés na narração do dilúvio que se encontra na Bíblia e que não se refere somente ao dilúvio, mas também à implantação do jardim do éden entre outras. A história é a de Gilgamesh, um herói lendário que viveu na Mesopotâmia e partiu em busca da eternidade, enfrentando, dentre outros obstáculos, um dilúvio. Tudo leva a crer que Gilgamesh pode ter realmente existido e governado os sumérios por volta de dois mil e seiscentos anos antes de Cristo. Mesmo não sendo esta história a verdadeira história, vestígios indicam que nessa época os rios Tigres e Eufrates sofreram violentas cheias. As cheias foram tão grandes que os sumérios dividiram suas histórias em antes e depois das cheias. A história, adaptada, é essa. Mas como você é professora ler(????) em voz alta.
       Aparecida pegou o livro e começou a ler.
Gilgamesh, o rei de Uruk, muito arrogante e tirânico, irrita os deuses com seu comportamento. Os deuses não querem que os humanos tenham o seu modo de ser e de viver próprio.  Então Aruru, a grande deusa-mãe, modela o barro e cria Enkidu que passa ser então irmão de Gilgamesh.
 ”Criei Enkidu com a missão de domesticar Gilgamesh porque os humanos têm a obrigação de obedecer a seus criadores. Temos necessidade disso, de ser adorados. É a única forma de existirmos.”
 Gilgamesh sonha.
“Sonhei esta noite que estava vindo me visitar meu irmão. Façamos uma festa de orgia essa noite e convidamo-lo. Mande uma bela mulher para conduzi-lo à cidade porque nós não nos conhecemos.”
“E digamos: vinde, pois, Enkidu, à Uruk de baluartes,
onde as gentes são resplendentes em seus trajes festivos,
onde cada dia é como um dia de festa.".
 A mulher seduz Enkidu.
“Vai haver uma festa hoje à noite, não deixe entrar nessa festa aquele que eu beijar.” Quando chegou à festa, a mulher beija Gilgamesh. Enkidu, agora enciumado e indignado, sem saber que se tratava de seu irmão anfitrião, tenta impedir a entrada de Gilgamesh na reunião. Desafiado em seu próprio reino, Gilgamesh luta com Enkidu. Enkidu é facilmente derrotado e começa perder as energias. A raiva de Gilgamesh desaparece no momento que percebe a manobra dos deuses. Os dois ficam amigos e juntos resolvem enfrentar a ira dos deuses. Então Gilgamesh empreende uma série de desafios para os deuses.
“Querem tudo. Podem tudo. Vou recuperar as forças dele e ninguém vai me impedir. Vamos meu amigo! Vamos até à montanha dos cedros, procuremos por Ishtar que fica no vale do Eufrates.”
Os dois seguem rumo ao vale do Eufrates. Quando chegaram à montanha enfrentaram e mataram Kumbaba, o guardião da montanha. A deusa Ishtar ficou encantada com a beleza de Gilgamesh por quem ficou perdidamente apaixonada. Mas o rei não queria se envolver com nenhuma mulher antes de recuperar as forças enérgicas de Enkidu. A deusa não compreendeu a recusa e ofendida, pediu aos deuses para condenar Enkidu à morte, motivo de seus dissabores.
 Enkidu sonha.
 “Meu amigo, essa noite sonhei que os deuses estavam reunidos em assembleias decidindo o meu destino a pedido da deusa Ishtar e a decisão, por unanimidade, foi pela minha morte. Já estou sentindo os efeitos da sentença.”
 Enkidu passa doze dias debilitado e antes de dar o último suspiro diante do amigo diz: “Vejo meu irmão que logo, também, irás morrer.”.
Gilgamesh resolve, então, iniciar uma busca pela eternidade. Decidiu ir para Shuruppak pedir o segredo da imortalidade ao rei Utanapishtim, sobrevivente do dilúvio primordial e escolhido pelos deuses como guardião da eternidade. O dilúvio havia sido planejado pelas dinvindades para dar fimàa humanidade. Mas Ea, a deusa das águas disse:
 “Utanapishtim, construa uma enorme arca e coloque nela todas as sementes de seres viventes. A semente dos seres viventes andrógino hermafroditas, coloque uma de cada; os seres viventes que nascem de brotos, uma muda de cada; e dos que se reproduzem por sexos, duas de cada. Porque os deuses decidiram inundar toda a terra. Mas não é justo que a vida desapareça por razões óbvias e egoísmo divino. Eles não sabem que só existimos por conta dos humanos?”
Utanapishtim constrói uma grande arca e coloca uma semente de todos os seres viventes hermafroditos e de todos os seres viventes que nascem por brotamento. E dos seres viventes que se reproduzem por sexo, colocou uma semente. E guardou nela sementes de todos os seres viventes.
A viagem de Gilgamessh.
Em sua viagem em busca do segredo da eternidade, Gilgamesh sofreu as agruras da fome, lutou contra os animais selvagens e contra os homens-escorpiões que seguram o céu. Chegou ao jardim de delícias e saciou sua fome do fruto da árvore que se encontrava no meio do jardim. O fruto lhe deu energia para atravessar o mar primordial e as águas da morte. Quando Gilgamesh chegou a Shuruppak, ali apresentou seu pedido a Utanapishtim, que lhe contou toda história de como escapou do dilúvio. Falou da construção do navio orientado por Ea, a deusa das águas e da sabedoria. De como ela lhe aconselhou a construir a arca. Falou da imortalidade.
Utanapishtim entrega a Gilgamesh o segredo da eternidade.
“Você é corajoso e sábio, o segredo da eternidade segue um ritual: primeiro é permanecer acordado seis dias e sete noites porque foi o tempo da criação.” Gilgamesh estava muito esgotado da longa viagem e das lutas e só consegue dormir seis dias sem parar, mas fica acordado durante as noites.
Utanapishtim tenta ajudá-lo, visto que não conseguiu a eternidade, revelou-lhe o segredo da juventude; conduziu Gilgamesh a uma fonte onde ele se banhou e depois disse:
“Se queres sua juventude de volta vá até ao fundo do mar cósmico onde cresce a rosa, (a flor-de-lis) a planta da juventude eterna.”.
Gilgamesh mergulhou até o fundo das águas e pegou uma rosa. Quando adquiriu a juventude, agradeceu Utanapishtim e iniciou o caminho de volta para Uruk. Depois de andar por muito tempo, já no Jardim das Delícias, parou para refrescar-se em uma fonte, comer novamente do fruto da árvore que estava no centro do jardim e descansar na sombra da árvore. Enquanto dormia uma serpente enviada pelos deuses roubou-lhe a preciosa açucena e comeu-a, adquirindo assim o poder de trocar de pele e recuperar a juventude.
    – Estou impressionada com a semelhança. E como professora, também de história, não posso negar a veracidade do texto. Por várias vezes li esse texto e garanto que é muito antigo. Até mesmo, mais antigo, que os primeiros escritos da Bíblia com uma vantagem grande de diferença de séculos. Mas confesso que nunca tinha percebido tamanha semelhança.
    – Você não percebia a semelhança, minha querida, porque você só lia esse texto, mas não o que está na Bíblia. Como todos os textos, esse também, com o tempo foi sofrendo modificações para se adequar aos tempos. Mas a sua essência permanece. O tema e o conteúdo da mensagem são o mesmo. Assim como a Bíblia, que também sofreu modificação ao longo do tempo, por inumeráveis razões, esses textos foram modificados. No que se refere à Bíblia, literatura importantíssima não somente para os cristãos, ela também sofreu alterações. Seja, por exemplo, por não saber escrever. Como afirma o Pastor de Hermas em um livro que escreveu e que por pouco não foi incluso como um dos livros do novo testamento, mas pertence ao Códice Sinaítico. Ele, personagem real, depois de um sonho, porque a bíblia está recheada de relatos de sonhos, visões e aparições. Até a jumenta de Balaão fez um belo discurso. Ele diz o seguinte – Onório pegou um livro, procurou a página e mostrou a Aparecida. – Tome, dê uma olhada nisso. Veja como os escritores da época tinham dificuldade de escrever os textos não só pela falta de iluminação para escrever à noite e equipamentos sostificados, mas também, principalmente, porque não sabiam ler nem escrever. – Aparecida pegou o livro e começou a ler:

“Eu peguei um papel e fui para outra parte do campo, onde copiei todo o conjunto, letra por letra, mesmo sem saber distinguir as silabas. E, ao final, quando completei as letras do livro, ele foi de repente arrebatado de minha mão; mas não vi por quem.”
    – Caraca! Tudo ficção. E ainda diz que foi arrebatado da mão dele sem saber por quem! Típico da Bíblia. – A parecida olhou para Onório – estou pasma!
    – Modificaram a bíblia porque não eram copistas profissionais e também intencionalmente como percebeu um padre da igreja de nome Orígenes que escreveu o seguinte sobre o assunto. Pegou-lhe o livro das mãos de Aparecida. Abriu-o em uma página. Entregou o livro de volta.
    – Ler! – Aparecida leu:
"As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela negligência de algum copista ou pela audácia perversa de outros; ou eles descuidam de verificar o que transcreverem ou, no processo de verificação acrescentaram ou apagaram trechos, como mais lhes agrade.”.
    – Meu Deus!
Onório, sem tomar o livro das mãos de Aparecida passou uma página.
    – No mesmo sentido um pagão por nome Celso escreveu isso – apontando com o dedo. – Aparecida leu.
“Alguns fiéis, como pessoas embriagadas que se agridem a si mesmas, manipularam o texto original dos evangelhos três ou quatro vezes, ou até mais e o alteraram para poderem opor negações às criticas.”
    – Então isso significa que podemos ler coisas que Jesus não disse?
    – Exatamente! E os próprios evangelistas sabiam disso. Não é sem razão que o autor do Apocalipse diz – mostrando a bíblia.
“Eu atesto a todos os que ouvirem as palavras da profecia deste livro: se alguém lhes fizer qualquer acréscimo, Deus lhe acrescentará as pragas descritas neste livro. E se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro dessa profecia, Deus lhe retirará a sua parte da árvore da vida e da cidade santa, descrita neste livro.”
     – Veja que ameaças ele fez para quem adulterasse seu livro. Nessa época não tinha direitos autorais. Ameaçar com o provável castigo de Deus era a lei. Seguindo no mesmo sentido,  Rufino, pesquisador cristão,  escreveu o seguinte – abriu o livro em outra página e apontou o texto para aparecida ler.
“Na presença de Deus pai, de seu Filho e do Espírito Santo, conjuro e suplico a todo aquele que vá transcrever ou ler esses livros, por sua crença no reino que há de vir, pelo mistério da ressurreição dos mortos e pelo fogo perpétuo preparado para o demônio e seus anjos, que, assim como ele não possuiria por herança eterna o lugar onde há choro e ranger de dentes e onde o seu fogo não se apaga e seu espírito não morre, nada acrescente ao que está escrito e dele nada exclua, que não faça inserção ou alteração alguma, antes compare sua própria transcrição com as cópias a partir das quais a fez.”
     – Para mim, já não resta dúvida de que existem adulterações nos textos da Bíblia.
    – Digo, minha querida, que o relato mitológico do herói Gilgamesh foi umas das fontes de inspiração para o autor de Gêneses. Principalmente quando se refere ao dilúvio. Tanto pela idade do documento, com mais de quatro mil anos, como pelo modo de vida dos dois povos, Sumérios e Hebreus. Os Sumérios viviam de forma sedentária na Mesopotâmia e criaram a escrita; nada mais natural para os inventores da escrita produzir textos escritos. E se o referido texto não foi escrito antes de Gêneses, era contado oralmente pelos Sumérios e transformado em texto. Se a escrita do relato já havia sido escrito, foi compilado ou plagiado pelo autor de Gêneses. Porque eram os Hebreus que viviam de forma nômade na região da Mesopotâmia e nada produziram de tão notório além de textos. Gilgamesh pode ter sido um personagem real porque tem as tendências e os problemas comuns aos homens: necessidade de amizade, o senso de felicidade, o desejo de fama e glória, o amor pela aventura e pelos grandes feitos, a angústia da morte e anseio pela imortalidade. Assim como Adão, perdeu a imortalidade por meio de uma serpente que lhe roubou a fruta em um jardim.
    Mas não foram somente os povos do velho mundo que escreveram algo parecido e tão semelhante com os que existem na Bíblia. Nós também produzimos. Distante do velho mundo o homem americano também criou suas lendas muito semelhantes daquele povo. Mais incrível é perceber que não havia nenhuma forma de contato entre um mundo e outro até o século quinze da nossa era. Tudo indica que nossos ancestrais americanos  evoluíram do Homo Sapiens que certamente, de algum modo, atravessou o Estreito de Bering. Se não foi obra da natureza a formação do gelo que possibilitou sua travessia; quem pode negar a possibilidade de um jovem casal de sapiens ter fabricado "uma barca" para atravessar o estreito? Ou então foram carregados, pelo vento, sementes humanas para os continentes? Ou que uma Pangea possa ter existido e na separação dos continentes isolou os seres humanos agora separados pelas águas?  Foram  os Incas, povo que vivia na faixa de terra em que atualmente situam-se o Peru, a Argentina, o Equador, o Chile e  a Colômbia, como todo povo, tiveram suas histórias. Seus governantes também eram considerados mensageiros divinos ou simplesmente filhos direto dos deuses. Há uma narração que conta o seguinte – Onório enquanto conversava abriu uma página de um outro livro e entregou a Aparecida. Ela então leu:
 O Deus Sol, criador do mundo e dos humanos, disse a Manco Capac e Mama Ocllo:
    – reúnam todas as tribos em comunidades, porque vou lhes dar uma terra que emane leite e mel para que possam viver e me adorarem como o único Deus. Também lhes darei uma lei para que possa ensinar a todos como viver civilizadamente em comunidades. Vou lhes mostrar o “umbigo do mundo”, que quer dizer centro do mundo. Manco Capac fica encarregado de procurar o umbigo do mundo e Mama Ocllo de orientá-los na procura.
Manco Capac pergunta.
    – Senhor, como saberei onde fica esse lugar no meio do mundo que  emana leite e mel?
Deus respondeu: 
    – Pegue seu cajado e enterre no solo no vale de Cuzco. Onde o bastão enterrar sem o menor esforço, é lá que fica o umbigo do mundo. No primeiro golpe do cajado fundem um reino. Porque sou o seu único Deus. Sou vosso pai, que dá a luz, a claridade e o calor, derrama a chuva e o orvalho, empurra as colheitas, multiplica as manadas e não deixo passar nenhum dia sem visitar o mundo.
  O casal celestial partiu do Jardim do Éden, que também se chamava Ilha do Sol, nas proximidades do lago Titicaca. Manco Capac com seu cajado e Mama Ocllo com seu fuso de Prata. Na saída tiveram que enfrentar muitos obstáculos. Porque o lago Titicaca estava cheio. Como a função do bastão era somente para encontrar o centro do mundo, não foi possível abrir as águas do lago Titicaca com o poder do bastão. Então Manco Capac pediu que todos tirassem seus pingentes de ouro para que pudesse fabricar uma barca de ouro. Com o ouro derretido foi possível fabricar uma balsa e atravessar o lago. Quando chegaram ao vale do Cuzco, depois de várias tentativas de enterrar o cajado no solo, porque por toda parte tentava enterrar o cajado, mas a terra recusava, continuava buscando. Manco Capac conseguiu, sem o menor esforço, enterrar o bastão no solo próximo ao monte Wanakaui. Esse foi o lugar onde a terra tragou o cajado e um arco-íris ergeu-se no céu como sinal de aliança entre Deus e os incas. Como o povo tinha se desviado do Deus que os conduziu, ficaram sem casa e viviam em buracos e ao abrigo de rochedos comendo raízes sem saber tecer o algodão nem a lã para se defenderem do frio. Manco Capac, já velho, pediu a Wiracocha que tomasse seu lugar. Manco Capac subiu ao monte Wanakauri para falar com Deus para pedir uma lei e que enviasse um filho e uma filha a terra, como redentor, para iluminar o caminho dos cegos e todos aqueles que não querem enxergar. Depois de quarenta dias no monte Wanakauri, voltou com duas tábuas contendo as leis que regulavam uma boa convivência entre os incas.   Foi nesse lugar que os filhos do Deus Sol estabeleceram suas moradas e construíram a cidade de Cuzco. Manco Capac, com a lei de Deus, instruiu os homens nos trabalhos da agricultura, e Mama Ocllo ensinou  às mulheres a profissão da fiação e da tecelagem.
    – Fico imaginando por que o que está na Bíblia é digno de confiança como sendo verdadeiro e essas histórias não o são  Se concordarmos que esses escritos não passam de lendas, fruto da imaginação, por que a Bíblia não o é?
    – Foi o que você disse, “se concordamos”. A Bíblia, para os cristãos, é convencional assim como o Alcorão para os mulçumanos. A divindade de Cristo foi votada em um concílio, o de Nicéia. E o que o concilio é, senão um acordo. Foram vários concílios para concordarem que tipos de livros poderiam fazer parte do Cânon da Bíblia e que para os conciliadores eram inspirados. Livros como a companheira inseparável de Jesus e de apostolo como Thiago foram descartados. Mas não pense você, minha querida, que estou exauriente de cognicibilidade. Também o jeito de orar provém dos mesopotâmicos. Também foram os primeiros a representar Deus sob a forma humana. Observe esta prece Suméria dedicada aos deuses. O autor pede perdão a Deus por qualquer transgressão que possa ter cometido. Em sua oração de súplica, o orador reconhece que pode ter cometido algum pecado e transgredido a lei de Deus. Mas , sem conhecer que transgressão cometeu e nem o Deus que ofendeu, diz que a raça humana não conhece a vontade divina e é por isso que está sempre cometendo pecados. Então se não conhece a vontade de Deus, este deve ser misericordioso e deve perdoar as transgressões. Os primeiros livros da Bíblia vieram logo suprir essa necessidade. Mostrando, não somente como foi criado o mundo, mas o que ele queria. Isso para que ninguém pudesse alegar falta de conhecimento. A reza é essa, dê uma lida. – Aparecida leu:
Por ignorância comi o que meu Deus proibiu;
Por ignorância entrei onde minha deusa proibiu;
Ó senhor, muitas são minhas transgressões; grandes meus pecados;
Ó Deus que conheço e que não conheço, muitas são minhas transgressões, grandes meus pecados;
As transgressões que cometi, na verdade desconheço;
O pecado que pratiquei, na verdade desconheço;
A coisa proibida que comi, na verdade desconheço;
O lugar proibido no qual entrei, na verdade desconheço;
O senhor com ira no coração olhou para mim;
O senhor com fúria no coração defrontou-se comigo.
    Tomaram um pouco de vinho.
    – Os hebreus, como eles mesmos contaram, tiveram também no Egito. E foram aprendendo com os deuses dos povos, que contribuíram para sua cultura, que foram montando o seu Deus. A diferença estava somente no modo de transmitir seus deuses. Enquanto os Hebreus escreviam tudo que se referia a seu Deus, os outros povos contentavam-se em transmitir oralmente. Poucos escreviam. Alguns escritos anteriores a Moisés foram certamente por ele lidos, copiados e adaptados. No “Livro dos Mortos”, capitulo 125, diz o seguinte – Onório pegou um papel e leu:
“Reverencia te seja feita, ó grande Deus, senhor da verdade. Venho a ti, meu senhor, perante ti compareço para que eu possa ver tuas perfeições. Conheço a ti, conheço teu nome. Conheço os nomes dos quarentas e dois deuses que contigo habitam neste salão de maati, que exercem vigilância sobre aqueles que praticaram o mal, que se alimentaram do sangue deles no dia em que as vidas dos homens forem avaliadas na presença de Osíris. Venho a ti com a verdade. Trouxe a verdade a ti. Eu destruí a maldade para ti. Porque não pequei contra os homens; não oprimi parentes; não pratiquei o mal no lugar da verdade; não conheci homens desprezíveis; não cometi atos abomináveis; não executei tarefas diárias alem do que o dever requer; não fiz com que meu nome aparecesse para receber honrarias; não oprimi escravos; não pensei em deus com menosprezo; não lesei os pobres de seus bens; não pratiquei os atos que os deuses abominam; não fiz com que os escravos fossem maltratados pelo feitor; não provoquei o sofrimento de nenhum homem; não permiti que nenhum homem passasse fome; não fiz nenhum homem chorar; não assassinei nenhum homem; não dei ordem para nenhum homem ser assassinado; não causei dor à multidão; não surrupiei as oferendas dos templos; não furtei os bolos dos mortos; não roubei as oferendas feitas aos espíritos; não tive relacionamento com pederastas; não me conspurquei nos lugares imaculados do deus de minha cidade; não fiz trapaças ao pesar cereais; não roubei terras nem ampliei as minhas por esse processo; não usurpei os campos dos outros; não trapaceei no peso da balança; não fiz trapaças com o fiel da balança; não tirei o leite da boca das crianças; não expulsei os animais de seus pastos; não capturei gansos na reserva dos deuses; não apanhei peixes com isca de seus corpos; não represei água quando ela devia fluir; não abri nenhuma fenda em canal de água corrente; não apaguei nenhum fogo que devia ficar aceso; não aboli os dias de apresentar as oferendas; não desviei gados de propriedades dos deuses; não rejeitei o deus em suas manifestações. Sou puro. Sou puro. Sou puro. Sou puro.
    – Realmente não é necessário me mostrar mais nada. Não sou tola. Sei que a Bíblia é um conjunto de vários textos como qualquer outro texto literário– falou Aparecida.
    – A Bíblia conta muitos fatos históricos confirmados, mas a ficção bíblica está mais presente que qualquer acontecimento que realmente existiu. Até mesmo os fatos existentes foram ornamentados com detalhes de ficção para maior realce. Olha, por exemplo, a Jumenta falante de Balaão que parece mais uma fábula. A Literatura atual deveria seguir esse modelo Bíblico. A crítica não pode, na "Literatura atual", fazer distinção entre ficção e autoajuda quando estas estiverem em fusão. Mas olhe pelo menos essas mudanças que foram feitas no Novo Testamento. Como os textos eram copiados à mão, favorecia as chances de erros. Erros por: acidentes, falta de cuidados, propositadamente, para dizer o que queriam dizer, modificações a bel-prazer, por questões teológicas e ideológicas, escorregão da pena, acréscimo despercebido ou intencional, palavras mal grafadas e por aí vai. Para dá alguns exemplos veja que o autor de Hebreus do Novo Testamento pode ter escrito uma palavra e alguém modificou. Veja:
“Cristo pher­­on (sustém) todas as coisas.” Ou,
“Cristo phaneron (manifesta) todas as coisas.”
    – A semelhança gráfica e visual e sonora levou os copistas a erros. Porque manuscritos antigos trazem as duas versões, mas não se sabe qual a verdadeira. Seguindo no mesmo raciocínio, veja o que disse Paulo:
“Fermento velho, o fermento da maldade e da poneras (perversidade).” Ou,
“Fermento velho, o fermento da maldade e da porneias (imoralidade sexual).” Ou em Apocalipse que diz:
“Nos lusanti (livrou) de nossos pecados.” Ou,
“Nos lousanti (lavou) de nossos pecados.”
Muitos já perceberam essas modificações desde o início os primeiros séculos da Era Cristã. Richard Simon diz em sua obra que:
São Jerônimo fez á Igreja não pequena obra, ao corrigir e rever as antigas copias Latinas, segundo as mais estritas regras da crítica... e que os mais antigos exemplares gregos do Novo Testamento não são os melhores, visto que eles se seguiram as Cópias Latinas e São Jerônimo os considerou degenerados a ponto de necessitarem de um alteração.
    – Quanto à autenticidade das antigas cópias dos documentos primitivos, que não existem disse:
Não haveria nessa época nenhuma cópia, nem mesmo do Novo Testamento, seja grega, latina,siríaca, ou arábica, que pudesse ser verdadeiramente chamada de autêntica, porque não existe nenhuma, em qualquer língua em que tenha sido escrita, que esteja absolutamente isenta de acréscimos. Devo também admitir que os copistas gregos tomaram grandes liberdades ao escrever suas cópias, como provaremos em outro lugar.”
    – Ele continua dizendo, acerca dos livros originais que não mais existem e questiona se são mesmo, esses livros, inspirados por Deus.
“É possível... que Deus tenha dado a sua igreja livros que lhe sirvam de regra e que tenham, ao mesmo tempo, permitido que o primeiro original desses livros tenha se perdido desde o início da Religião Cristã?”
    – Em outra ocasião o referido autor é categórico:
As grandes mudanças que ocorreram nos manuscritos da Bíblia... visto que os primeiros originais estavam perdidos, destroem completamente o princípio dos protestantes... que consultam apenas os mesmos manuscritos da Bíblia na forma em que se apresentam hoje. Se a verdade da religião não estivesse viva na igreja, não seria seguro procurá-la agora nos livros que foram submetidos a tantas mudanças e que em tantas estiveram dependentes do arbítrio dos copistas.”
    – E o que fazer então; deve-se acabar com a religião? – Perguntou Aparecida.
    – Não diria isso, mas não era de todo ruim. Porém a Igreja deveria usar seu poder para melhorar a vida dos indivíduos com outra forma de ensino.
    – Como a igreja deveria ensinar?
    – A igreja deveria dizer estas palavras de Jesus:
“A ignorância é a mãe de ‘todo mal’. A ignorância acabará resultando em morte, porque aqueles que vêm da ignorância nem foram nem serão. Porém aqueles que estão na verdade serão perfeitos quando toda a verdade será revelada, porque a verdade é como a ignorância. Enquanto está escondida, descansa em si mesma, mas quando é revelada e é reconhecida, é louvada porque é mais forte que a ignorância e o erro. Proporciona a liberdade. A palavra diz: ‘se conheceis a verdade, ela os fará livres. A ignorância é uma escrava. O conhecimento é a liberdade. Se conhecemos a verdade, encontraremos o fruto da verdade dentro de nós. Se nos unimos a ela, nos proporcionará nossa realização.”
Diga que a verdade é o conhecimento e, que a perdição não é fruto do pecado: é fruto da ignorância. Para que serve uma igreja cheia de ignorantes? Quando se sabe que esta é a principal fonte dos sofrimentos. Quanto ao pecado, esse não existe. Foi o próprio Jesus que disse a Pedro: “Pedro lhe diz: ‘posto que nos explicaste tudo, diz para nós também isto: o que é o pecado do mundo? ’ O salvador diz: ‘não existe o pecado. Sois vós quem produzis o pecado, quando atuais segundo os hábitos de vossa natureza adultera: aí está o pecado. Por isso o bem vem habitar em vós. Ele participará dos elementos de vossa natureza para reuni-las em suas raízes. (...) Por isso vós ficais enfermos e morreis. É uma consequência de vossos atos. (...) Quem puder entender, que entenda.”
Digam que a verdade é ofuscante, mas temporária e sua posse acrescenta o saber. Embora dificulte a comunicação com quem pensa que sabe tudo e nada sabe. Porém o resultado final é contemplação do bem. Digam que a sabedoria persegue aquele que se dá conta que é ignorante. Digam que a consciência da própria ignorância já é uma forma de conhecimento. Digam que é impossível conhecer alguma coisa sem conhecer sua própria ignorância. Digam que o ignorante é aquele que supõe saber tudo e o sábio é aquele que sabe que nada sabe.
    É de conhecimento de muitos que desde o início do cristianismo alguns já chamavama atenção da igreja sobre esse assunto. Foi o que disse Celso no segundo século de nossa era quando escreveu A palavra da verdade atacando o cristianismo:
Estas são as palavras de ordem deles: para trás quem tem cultura, quem tem sabedoria, quem tem discernimento! Quantas recomendações perversas para nós! Mas se houver algum ignorante, insensato, inculto, uma criança, que se aproxime com coragem!
Mas estão sempre nas praças publicas, suponho eu, aqueles que divulgam seus segredos e pedem esmolas. Jamais se aproximam de uma assembleia de homens prudentes com a audácia de nela revelar seus belos mistérios. Mas logo que percebem a presença de adolescentes, um bando de escravos, um ajuntamento de idiotas, para lá correm e vão se exibir! Vão às casas particulares, cardadores, sapateiros, pisoeiros, pessoas das mais incultas e rudes. Mas diante de mestres cheios de experiência e discernimento não ousam sequer abrir a boca!" –A  Igreja não imita o modelo da escola. A autoridade religiosa não pergunta aos fiéis se entenderam alguma coisa ou se alguém tem algo a perguntar no que diz respeito à veracidade bíblica, dogmática e doutrinaria.

Capítulo 4
Na estrada que liga Tiradentes a Vila Santa Cruz fazia muita poeira. Onório observava do outro lado do Rio das Mortes uma antiga linha férrea. Surgiu de repente a Maria-Fumaça apitando carregada de crianças. Do lado direito que dirigia olhou por um instante a neblina que se desfazia no topo de uma longa montanha. Olhou para o bilhete que a enfermeira lhe entregara no hospital de Juiz de Fora. Parou o carro e fez uma releitura:
Onório, na verdade, de todos os bens e fortuna que a natureza me concedeu, nada tenho que possa ser comparada á sua amizade. Nunca me ofendeu em coisas mínimas, pelo menos não percebi; nada ouvi de você que desejasse não ter ouvido. Estou buscando forças para escrever-te, e dizer-te que vivas. Vivas para sempre, porque somos como a fabulosaFênix. A morte, que estou vendo agora, não é o fim, mas o começo de uma nova existência. Um ser morre para dar continuidade no processo evolutivo da vida. Percebo, neste momento, que a vida e a morte são como uma folha de papel, que não pode existir o verso sem o reverso. Fora disso está o ‘Ente-verso-reverso’. Vá até o Rio das Mortes, no trecho que fica entre São João Del Rei e Tiradentes, encontre a balsa e pegue um pen drive dentro de uma bolsa que está em um dos tubulãos. Envie o conteúdo para um editor no endereço do e-mail que também está dentro do conteúdo de um pen drive.
    Guardou o bilhete no bolso e continuou procurando pela balsa. Deve estar por perto. A estrada ficou distante da margem do rio e uma vegetação de ingazeira, que nesse trecho escondia as águas, dificultou a procura. Não obstante, não tinha nenhuma passagem aberta para que pudesse ir de carro. Posso ir a pé, mas vou procurar uma passagem. Passou por uns banhistas que banhavam em águas cristalinas que saíam da fenda do topo de uma rocha. A uns cem metros a mais avistou uma porteira de uma fazenda aberta. Vou entrar aqui. Esse é o melhor lugar de esconder uma bolsa da polícia.
    A polícia estava sempre lacrando as bolsas por causa do uso do mercúrio. Quando chegou à margem avistou uma balsa. Até que enfim.
      Estacionou o carro na margem do rio e fez um aceno para três pessoas que estavam na balsa jogando dominó. Um rapaz entrou em uma canoa de alumínio com um motor de popa acoplado em sua extremidade, baixou a rabeta do motor, puxou um cordão que servia de manivela e pôs o motor para funcionar.
    – Bom-dia Onório, está dando uma de turista, é? – encostando o bico da voadeira no barranco de decida da margem do rio.
    – Turista! Quem me dera! Se tiver ouro aí estou na mandada, Reginaldo. – enquanto estava entrando na voadeira.
    – Ouro que nada! Faz tempo que não se ver um fagulho. E agora que o velho Maranhão morreu nem comida tem mais. Esse trecho aqui está muito explorado. Não se encontra nenhuma daminha virgem para nos tirar do blefo. – subiram na balsa.
    – E aí Onório, está fugindo do dilúvio nordestino? – foi dizendo um homem de trinta e cinco anos, de um metro e noventa. Gordo como uma baleia.
    – É para você ver, James, quando não é oito é oitenta. E você, Wilson, não vai mais ao Ceará? Seu cabelo de manga chupada! – perguntou Onório a um homem entroncado, de cor amarela e os olhos avermelhados. A cor dos olhos era devido aos constantes mergulhos que fazia.
    – Já te falei uma porção de vezes que não faz sentido para mim depois de tanto tempo fora de casa voltar pra casa sem nada no bolso. Meu amigo, já faz dez anos. Não é brincadeira não!  O homem que faz isso é corno nem que não queira. Enquanto tiver puta nesse mundo, aí é que não volto mesmo. – Todos riram.
    – E aí! Vamos ou não vamos fazer uma mandada? Preciso tirar o blefo e amolecer grude. – falou Onório.
    – O grude está fácil de amolecer, mas o blefo... – falou Reginaldo. Onório ficou observando as curvas que o rio fazia. A uns cinquenta metros o rio fazia uma meia lua perfeita. Notou que se o nível das águas aumentasse um metro passaria direto sem fazer curva.
    – Vamos aportar a balsa naquela ingazeira. Pode deixar que iniciarei a perfuração e só paro quando chegar na lajérgia. – falou Onório.
    – Por que próximo à ingazeira? – perguntou Wilson.
    – Está vendo aquela passagem que corta o atalho do rio?
    – Estou. Parece que era por ali que o rio passava.
    – Era exatamente isso! Os bandeirantes desviavam o leito do rio para garimpar.
    – O quê! Os bandeirantes?
    – Deixa pra lá! 
   James amarrou o motor de poupa na balsa e a conduziu onde sugeriu Onório. Reginaldo pôs o motor de Mercedes Benz para funcionar. Onório já se preparava para mergulhar no fundo das águas do Rio das Mortes vestindo uma roupa preta para mergulho com umas listras verticais amarelas nos lados opostos das costelas. Pegou um pesado cinto com barras de chumbo e afivelou na cintura. Pegou uma mangueira de ar comprimido que sai de um compressor de ar, deu uma volta pela cintura e a extremidade que continha a chupeta, deu uma volta por detrás do pescoço e colocou a chupeta na boca para um teste. Pegou os óculos de mergulho e botou nos olhos, agarrou a maraca em forma de cone que fica na extremidade da mangueira de mandar material. Uma mangueira cilíndrica de seis polegadas, amarela e de formato anelídeo e, com um salto ornamental sumiu nas águas do Rio das Mortes próximo da ponte que leva a Vila Santa Cruz e São João Del Rei.

Capítulo 5

Dona Francisca quebrou um ramo de vassourinha e foi para o seu quarto rezar na Joaninha que estava com quebranto. Com uma bacia de água ao lado, molhava o ramo e sacudia na criança movimentando os lábios.  Depois de cinco minutos.
    – Pronto mia fia, pode levar seu bebê, mas nun isqueça de cumprar A-S pra ajudar na oração.
    – Pode deixar, dona Francisca. Eu vou dá A-S pra ela. Muito obrigada; Deus que está lá em cima há de lhe pagar. – disse uma mulher baixinha de olhos verdes e cabelos de índia caiapó. Quando passou pela porta encontrou-se com um homem vestido branco. Alto e magro.
    – Bom-dia doutor, como vai o senhor?
    – Bom-dia Carmelita, eu estou bem. Como vai o bebê?
    – Está adoentado, mas não é nada de mais. Deve ser quebranto porque o que não falta é gente de olho ruim e invejoso não é bebê?(???????) Só porque minha filha é linda, não é?
    – Se parece com o pai? – perguntou o doutor Isaias.
    – Só um pouco. Não é minha lindinha? De quem é que a mamãe gosta mais nesse mundo? Qual é melhor coisa que mamãe já teve?
    – Tudo bem, mas não esqueça de ir ao hospital quando precisar! A dona Francisca está? – Dona Francisca ouviu a conversa, aproximou-se.
    – Vamo intrar dotor Isaia, o sior sente aqui! aconticeu arguma coisa?
    – Como a senhora está passando depois que seu Maranhão morreu?
    – Há! Vou viveno, é Deus qui diz a hora da gente ir né mermo?
    – Está certa, dona Francisca. Mas é um outro assunto que me trouxe aqui. O mesmo assunto da última vez. A senhora entende?
    – Oh dotor! Eu tô fazeno do jeito qui o sior pidiu. A Carmelita acabou de sair daqui. E eu disse pra ela dá AS pra febre do bebê.
    – Dona Francisca, aquela criança tem duas semanas de nascida. Eu tive um trabalho danado para que fosse um parto normal. Entende? É mais uma dessas crianças que a mãe não diz quem é o pai. Olhe, dona Francisca, a filha da dona Joana está internada com intoxicação. Ela demorou levar a criança para que eu pudesse diagnosticá-la. Perguntei o motivo da demora e ela disse-me que acreditava na sua reza. Dona Francisca, continue rezando. Não deixe nunca de fazer isso, mas eu lhe peço mais uma vez. Quando a senhora perceber que a coisa é grave ou que pode se agravar, faça uma reza rápida e mande levar a criança para que eu possa medicá-la. Está bem assim? E a senhora também está precisando fazer novos exames. A senhora está tomando os remédios direitinhos?
    – Istou dotor, muito obrigada. Pode deixar qui eu não vou deixar de avisar. E o bebê da Jonia, corre pirigo?
    – Vai recuperar. Mas continue rezando por ela.

Capítulo 6

Depois de uma hora que Onório estava embaixo da água o funil de areia já media três metros de profundidade. Onório estava encontrado dificuldade para atingir a lajérgia porque o entulho aglomerava-se na boca da maraca e vedava-a impedindo, ele, mandar o material(????). Um objeto insistente teimava em voltar e Onório guardou-o por dentro da roupa de mergulho. Tocou em um material duro, mas logo percebeu que não era lajérgia. Só é uma fina camada de mocororô. Mas depois de dez minutos, finalmente a lajérzia, mas não tem cascalho virgem. Limpou a boca de serviço. Quando estava com um metro quadrado de boca de serviço limpa pegou a mangueira de ar e começou sacudi-la. Reginaldo, que estava de olho na mangueira pegou-a e respondeu o sinal com o mesmo movimento. Onório repetiu o movimento, mais intenso e prolongado. Era um sinal para o teste de ouro. Reginaldo soltou a mangueira e pegou uma cuia. Encostou-se a uma caixa de madeira, na verdade eram três caixas em forma de Z, que corria o material mandado por Onório. Pegou um pouco de material. Desceu até o arroto que se formava atrás da balsa formando uma praia artificial no meio do rio e, com movimentos circulares, submergindo a cuia dentro da água fazendo a areia, as pedras, esmeril e cassiteritas saírem da cuia. Correu apressado para a mangueira de ar e fez um movimento na mangueira de ar, sacudindo-a com certo exagero que Onório, que estava em um solilóquio, assustou-se. Onório atendeu o chamado e Reginaldo mandou uma mensagem prolongada com um movimento. Era o sinal que o material tinha muito ouro. 
    – Está de brincadeira com a gente, não é seu Reginaldo? Não vai dizer que nesse lugar tão explorado tem alguma coisa? – disse James com um anzol na mão.
    – Dê uma olhada aqui! – mostrando a cuia.
    – Caraca! Me dá essa cuia aqui? – enquanto Wilson se aproximava para ver, James derramou em cima da caixa e pegou um novo material e foi cuiar.
    – Tem ouro mesmo! - Correu até a mangueira e novamente deu sinal de ouro para Onório.
Onório recebeu o sinal incrédulo. - Não entendo. Eles devem estar de brincadeira comigo ou querem que eu amoleça o grude nessa água gelada? Posso é ficar congelado. Não pode existir muito ouro em material desse tipo. Não tem cascalho e mesmo que tivesse, nas terras brasileiras não tem filão de ouro. O ouro do Brasil se encontra em aluvião, foi o que me disse o padre Jeremias quando me aconselhou a não vir para o garimpo. Tentou livrar-se do objeto que estava entre seu corpo e a camisa. Retirou o objeto e com o tato das mãos percebeu alguma coisa estranha que espécie de objeto estranho e guardou novamente.

Capítulo 7

Aparecida entrou na sala de aula. Fez a chamada numérica dos alunos, nenhuma falta. Suspirou.
    – Eu gostaria de fazer uma pergunta para vocês. A pergunta é a seguinte: por que vocês querem aprender alguma coisa na escola?
    – Ora essa, professora! – respondeu Adriana – todo mundo que estuda não é para ter um bom emprego no futuro? Se toda pergunta que você fizer for fácil de responder como essa, saiba que já estou aprovada e o emprego garantido – provocando o riso de todos. Aparecida também não deixou de rir.
    – Mas essa tem sido a ideologia que vem se arrastando ao longo dos tempos para fazer exatamente vocês pensarem assim. Alguns de vocês conhecem alguém já envelhecido que tem escolaridade e não tem emprego e moradia?
    – Meu pai e minha mãe – disse Carlos – que para vivermos, papai faz de tudo para ganhar um pouco de dinheiro, mas emprego que é bom nada.
    – Muito bem, Carlos. E o que ele atribui à falta de emprego?
    – Ele disse que a culpa é dele mesmo. Que não é bom o bastante. Sempre tem alguém melhor do que ele e que essa é a vontade de Deus.
    – Ele não é ruim em nada. Foi para pensar dessa forma que a escola formou-o. A nossa escola está sem os pés no chão. O desafio da escola deveria ser sempre de levar o homem a encontrar o sentido de sua existência e consequentemente sua felicidade. Mas essa felicidade só é possível pelo conhecimento da verdade. O bem só é possível pela verdade. Portanto não é possível uma felicidade plena justamente porque não se conhece toda a verdade. A verdade não é uma ideia, mas um fato real que, quando alcançada, nos permite agir de forma justa. A escola que se nos apresenta não permite fugir do pragmatismo convencional e mítico. Platão estava errado quando imaginou que a verdade só era possível pelo conhecimento das ideias. Exatamente porque as idéias são falsas. É preciso conhecer a origem da ideia. Formar cidadãos para o exercício da cidadania, trabalhando e competindo para fomentar o consumo não é só uma forma eficiente de alienação como, também, desativa as potencialidades existentes em cada homem. O acúmulo de emprego torna o individuo escravo de si mesmo porque não sente o desejo da liberdade. Desejo suprimido pela racionalidade. Não é razoável para um homem perder o emprego por causa dos pavores já impregnados ideologicamente como sendo o padrão de vida adequado em sua vida social e material. A razão prática experimental também não possibilita o conhecimento da verdade porque ignora a essência, via necessária para conhecer o ser. O único objeto que podemos conhecer é a si mesmo.  Mesmo o pensamento especulativo não justifica a existência do ser. Pode se estudar a causa da ideia, mas não o objeto da ideia. O conhecimento da origem da idéia da existência de Deus é que permite conhecer Deus. Não é a fé moderada ou fanática, nem o número de crentes em Deus que faz dele um ser real. Devemos, não importa a idade, ganhar maturidade emancipando-nos,(???) espiritualmente e culturalmente, do sufoco social que é nossa cultura e sistema religioso. – Aparecida pegou um livro de filosofia e o colocou na base do quadro-negro que serve para guardar giz.
    – Alguém aqui não está vendo este livro? – ninguém respondeu. – Quem está vendo o livro? – Todos levantaram a mão. – vou provar que nenhum de vocês está vendo o livro.
    – Essa eu quero ver professora. Estou vendo o livro e você vai me provar que eu não o vejo!? – disse Antonio.
    – Isso mesmo! Tudo que vemos e sentimos faz parte do nosso senso comum, mas na realidade é aparência. – Aparecida foi até o interruptor de energia e desligou-o. Escuridão total. – vocês estão vendo o livro?
    – Como,se você apagou as lâmpadas! – respondeu Antonio. – Aparecida acendeu as lâmpadas.
    – E agora, voltaram a enxergar o livro?
    – Claro, né professora!
    – Pois está provado que vocês não estão vendo nenhum objeto diante dos olhos de vocês. O que vemos na verdade é a luz refletida no objeto. Se tirar o foco de luz que converge para os objetos não é possível enxergá-los. – todos aplaudiram. – Aparecida fez mais uma pergunta.
    – O movimento existe? – fazendo um movimento com o braço direito e esquerdo, para cima e para baixo.
    – Não acredito! Até o movimento pode não existir? Depois que descobri que não vejo os objetos, agora é o movimento que não existe? – jogando na sala uma bola de papel. – provou muito riso. Aparecida foi até a lousa e com um giz começou a desenhar uma seta numérica do conjunto dos números inteiros.

- 5 - 4 - 3 - 2 -1- 0 +1+2 + 3 +4 +5

    Aparecida ficou no ponto zero e começou a movimentar-se para direita e esquerda. – todos riram. Posicionou-se novamente no ponto zero. – Se eu movimentar-me sem interrupção para a direita até a posição +5, e estivesse sendo fotografada no instante +1, +2, +3, +4, +5 nos instantes desses, a câmara fotografaria meu movimento ou eu estaria parada em cada ponto. – Aplauso novamente. – Aparecida pegou um caderno com um desenho em várias posições de passeio. Segurou o caderno com a mão esquerda e com a direita passou o polegar sobra as páginas desprendendo-as rapidamente e todos assistiram uma corrida de um desenho animado. Mais aplausos.
    – Agora uma outra pergunta, por que as galáxias estão se afastando uma das outras?
    – Eu nem havia reparado! – disse Pedro provocando sorrisos.
    – Mas estão. – Aparecida pegou uma bexiga e encheu de ar com a boca. Amarrou e marcou com a caneta o lugar do cordão. Fez o desenho de algumas estrelas na bexiga cheia de ar.
    – O que aconteceria se eu colocasse dentro da bexiga, com a mesma quantidade de ar, uma bola de sinuca?
    – A bexiga vai aumentar de tamanho. – sugeriu João.
    – Isso mesmo. – Aparecida soltou o ar da bexiga e colocou a bola de sinuca dentro e tornou a encher com a mesma quantidade de ar anterior. – olha o que aconteceu com as estrelas! – as estrelas tinham aumentado de tamanho e se afastaram uma das outras. – é isso que acontece com as estrelas lá em cima. A quantidade de matéria produzida aqui na terra faz com que a grande bexiga do universo se expanda por causa da lei da impenetrabilidade.

Capítulo 8

O mundo. É uma mulher representando a deusa Ísis. Seu objetivo é procurar o corpo de seu esposo, o Deus Osíris, que foi lançado os seus pedaços no Rio Nilo por Seth-Typhon. A última carta do Tarô tem que ser o século seguinte da penúltima. É assim desde o início do jogo. Reginaldo desenhou um circulo com um compasso em uma mesa de compensado. Colocaram a carta que representa o mundo em cima da mesa com a extremidade da carta sobre a linha do círculo pelo lado exterior. Embaralharam as outras vinte e uma cartas e foi entregue uma a uma para os quatros. Cada um ficou com cinco cartas; a que sobrou ficou no meio do círculo pelo lado reverso.  A carta da mesa representava o século XXI. A carta estava com os desenhos dos quatros signos do zodíaco. E cada um tinha seu signo: Onório era Leão. James era Touro. Reginaldo. Aquário e Wilson, Escorpião.     Tinha na carta, dentro de um círculo de folha, uma mulher. A mulher com uma manta segurando uma cruz com os cabelos soltos. Estava quase totalmente nua, porque a manta vermelha cobria apenas a parte íntima, caminhando nas nuvens.
    – Vamos unificar o muuundo! – gritou Wilson.
    – Estas cartas carregam segredo que só os que estão aptos podem ganhar o jogo – comentou Reginaldo.
    – E vocês já jogaram? – perguntou Onório.
    – Toda noite, mas ninguém consegue ganhar. Dizem que é um antigo livro dos egípcios, que foi salvo do fogo por um ancião, quando Julio César tocou fogo na biblioteca de Alexandria – disse James.
    – E onde vocês as encontraram?
    – Nas coisas do velho Maranhão, junto com as cartas tinha um passaporte com o visto para o Egito – respondeu Reginaldo.
    – Como vocês sabem dessas coisas?
    – Era ele que nos contava sobre essas cartas e, de tanto repetir! – respondeu Reginaldo.
    – Que mais ele disse, Reginaldo?
    – Bom! Ele disse que essas cartas são profecias.
    – Profecia?
    – É, profecias foi o que ele disse. Porque o nome “Naipes” se originou de “Nabi.”.
    – Naipes é Nabi?
    – Sim, significa profeta em Árabe. Ele disse que os árabes não jogam baralhos e as cartas eram uma forma de profanar todos os paises islâmicos. Porque lá não se pode pronunciar o nome do profeta em vão.
    – Que mais?
    – Quer parar de perguntar e jogar!
    – Tudo bem, mas enquanto jogamos vou perguntando. Ok?
    Cada um ficou com cinco cartas na mão. Reginaldo foi o primeiro a botar uma carta na mesa e organizou a carta para formar o círculo. A carta continha o desenho de um papa fazendo um gesto com a mão direita estendida em sinal de benção a dois homens a sua frente. E a mão direita do papa descansava sobre três cruzes unificadas.
    – Que significa essa carta?
    – Bom! Esse é o saber religioso. Representa o século IV. O papa mostra para o um homem do bem e outro do mal que a cruz que segura na mão direita poderia ter três caminhos. Mostra que o único número par que é impar é o número dois. Os cinco desenhos sao uma profecia do século seguinte mostrando que o sábio pode ajudar os outros, nunca a si mesmo. Significa que o cristianismo se firmou nessa época como religião do estado com o advento do concilio de Niceia. O nome dela é “O Papa”
    Onório olhou para seu jogo e ficou observando uma carta que continha o desenho de um imperador sentado, com as pernas cruzadas, em um trono. Tinha ao seu lado um escudo em forma de águia. Ele estava segurando um bastão. Então deu sua cartada. Todos olharam para Onório.
    – Fui mal?
    – Você jogou o século III! – disse Reginaldo. – O século de mais dificuldades para os cristãos. Essa carta se chama “O Imperador”. É a força masculina de yang que traz estabilidade, unido com yin feminino. A águia significa renovação.
    – É sua vez, James – falou Wilson. James olhou para as três cartas que já estavam na mesa: O mundo, O Papa e o Imperador. Olhou para as suas e jogou uma. A carta que jogou tinha a imagem de uma mulher sentada em um trono com a cabeça envolvida por uma tiara. Sua vestimenta é um manto púrpuro. Segura uma cruz e um livro.
    – Que carta é essa? – perguntou Onório, enquanto ordenava as cartas em círculos.
    – É o primeiro século da Era Cristã. Essa mulher e tudo que está com ela significam a Igreja que mostra a importância de conciliar o mundo interior com o exterior no equilíbrio de dar e receber.  É por isso que chamam essa carta de papisa – disse Reginaldo.
    Chegou a vez de Wilson dar sua cartada. Ficou observando as suas cartas e, depois de um sorriso maroto percebendo que tinha nas mãos a carta que se encaixava entre a papisa e o imperador. Jogou-a. A carta tem a imagem de uma mulher, sentada em um trono, com uma linda e brilhante coroa de ouro na cabeça carregando um bastão e um escudo parecido com o escudo do imperador. Só que o escudo do imperador tem a forma de uma águia, e o escudo da imperatriz tem a forma de um falcão. É a representação do Império Romano em seu apogeu. É a “a imperatriz” o nome dessa carta. Representando o século II.
    – Wilson pegou o ouro que tinha sido colocado na aposta e guardou-o.
    – Por quê? – perguntou Onório.
    – Porque foi ele que unificou os séculos colocando a Imperatriz. Essa é a terceira carta do jogo do tarô. Ela representa o segundo século – comentou Reginaldo – dizem que a mulher que está aí desenhada, com esse emblema de falcão, é a deusa Isis com seu filho Hórus.
    Wilson joga na mesa sua segunda carta. Ela tem um
 edifício atingido pela iluminação do sol projetando atrás de si uma sombra. Em cima do muro, ao lado do edifício iluminado, um homem, com uma coroa na cabeça despencando do muro, está à meia altura do muro para o chão e vai cair em cima de um monge que já se encontra caído no chão.
    – Que carta é essa? – perguntou Onório.
    – Dizem que esse clarão do sol que atinge o edifício significa a descoberta da imprensa que espalhou a luz do conhecimento e, que com isso consumiram a escolástica da igreja e a autoridade real – respondeu Reginaldo.
    – Entendo. Por isso um rei e um monge caídos? – referindo-se a Reginaldo.
    – Exatamente! Com a leitura os homens começaram a pensar e divulgar o saber e isso não agradou de forma nenhuma a igreja, que sempre se utilizou da ignorância do povo em seu favor. Foi nessa época que descobriram um novo mundo e, como tudo que é novo, desmoronaram os conceitos tradicionais do velho mundo. Essa torre tem três janelas: duas janelas menores significam os dois caminhos e a janela maior que fica no topo, logo acima entre as duas janelas é o terceiro caminho.  O nome da carta é Torre. É o século XV.
    James joga uma carta na mesa. Na carta tinha a imagem de um monstro com o corpo de mulher em pé sobre um pedestal. Do lado direito e esquerdo do monstro, um de cada lado, tem dois homens, acorrentados, com os pés e pernas de bode. O monstro tem chifres e asas de morcegos.
    – Que significa essa carta?
    – O nome dela é “ o dDiabo”, é a décima carta do tarô. Dizem que representa as desgraças do século quatorze, como a peste negra. Dizem também que os templários foram torturados e executados, por ordem de Filipe, o Belo e do Papa Clemente V, porque o chefe da ordem dos templários estava de posse dessa carta. Afirmam que os nobres e piedosos templários se utilizavam dessas cartas para predizer o futuro. Para a infelicidade da ordem, encontraram seu chefe exatamente com essa carta que representava “Baphomet” o diabo. Representa os dois lados: sombra e iluminação.          
    Reginaldo colocou a sua segunda carta na mesa. Na carta continha a imagem de um anjo derramando um líquido de um cântaro para outro.
    – Que significa essa carta?
    – Dizem que o líquido é vinho. O vinho velho sendo derramado no recipiente vazio significa a cultura clássica sendo derramada no pensamento obscuro medieval. O nome da carta é “A Temperança” – disse Reginaldo – mas o vinho também significa a hipocrisia dos evangélicos que não bebem nenhuma espécie de bebida alcoólica, mas se esbaldam em vinhos na surdina. O jarro é os dois caminhos possíveis e o homem é caminho do meio.
    Onório joga sem pensar, uma carta. A carta tinha um céu estrelado. O brilho das estrelas iluminava uma jovem sentada à margem de um rio segurando dois potes de onde sai água. Na margem do rio tem uma árvore onde um pássaro canta.
    – Que carta é essa que eu joguei?
    – Não sei por que tenho a impressão de que você conhece o significado dessas cartas. Mas ganhou a segunda cartada. Essa carta se chama “a estrela”. Representa o século XVI. As estrelas são os astrônomos daquele século. A igreja não suportou a saída do convento de Giordano Bruno e sua tese de que Deus existe na natureza e é inseparável dela, levaram o cara para a fogueira. Época de Erasmo de Rotterdam, padre que criticava a igreja e o cristianismo. Dizia ele que é loucura uma vida verdadeiramente cristã e que Cristo escolheu a loucura da cruz e cercou-se de “pobres de espíritos”. Época de Campanella, que debochou da inquisição fingindo ignorar a dor conversando amigavelmente e sorrindo quando estava sendo torturado. Época de Galileu, que também sofreu da insanidade da inquisição só porque dizia que a Bíblia não expõe  verdades cientificas. Época do nascimento de Descartes, que dizia que Deus pode ser um gênio enganador e que o caminho certo é a dúvida. “Logo suporei que existe não um verdadeiro Deus, que é fonte soberana de verdade, mas um certo gênio mau, não menos astuto e enganador que poderoso, que tenha empregado todo o seu engenho em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vejo não sejam mais que ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender a minha credulidade”.
    – E o que significam os dois cântaros?
    – Não sei, mas parece que tem algo a ver com a reforma religiosa provocada por Matinho Lutero. Mas de novo a mulher sentada à beira do lago, segurando os dois cântaros derramando o líquido no lago com o sol estrelado representa a esperança que deve surgir a explicação do terceiro caminho.
    Ficaram todos com três cartas nas mãos, mas ninguém queria lançar primeiro a terceira carta.
    Onório jogou na mesa uma carta que continha desenhos de quatros objetos: uma taça, uma moeda, uma vara e uma espada. Tinha também o desenho de um homem.
    – Aí está a carta! Agora me diga o que ela significa, então?
    – O homem é um mágico. Dizem que se trata de Osíris, o deus egípcio que ressuscitou depois de ter sido morto por Set-typhon. Ele foi o primeiro a dizer: “Eu sou a ressurreição” - também disse: “Eu não faço mal à humanidade. Eu sou puro.” Os quatros objetos são os quatros filhos de Hórus que representam os pontos cardeais, representações de Osíris. Dizem que Osíris foi o primeiro deus que apareceu sobre a terra e reinou sobre os homens. Afirmam que esse deus era um deus civilizador. Quando foi morto por Tifão, que o despedaçou e jogou seus pedaços no Nilo, mas os peixes não o devoraram, exceto o caranguejo, seus pedaços  foram reconstituídos por sua esposa Isis e seus filhos Anúbis, Néftis e Hórus. Dizem também que a formação da trindade cristã nasceu em decorrência da trindade que existiu entre Osíris, Ísis e Hórus. Pai, mãe e filho. No cristianismo, retiraram a mãe e colocaram em seu lugar o espírito. Dizem que Satanás também foi originado de Set, o Tifão Grego. Do mesmo modo que este, aquele também desceu do céu por rebelião. Tifão era irmão de Osíris. Tifão era o deus do mal e das forças maléficas da noite. Javé, aquele que é, depois da morte de Osíris, tirou o culto de Isis, a Flor-de-Lis, que tinha se tornado andrógina por ocasião da morte de Osíris.  Essa carta representa o primeiro século antes de Cristo. O nome dela é “O Mágico”. A mesa esconde a quarta perna mostrando só três em referência ao terceiro caminho.
    Reginaldo jogou sua carta. A carta tinha o desenho de um velho de bengala segurando uma lâmpada para iluminar a escuridão.
    – Que carta é essa?
    – É o declínio do Império Muçulmano sendo travado pelo cristianismo. Século VIII. O nome da carta é “O Eremita” que ilumina a justiça com imparcialidade da sabedoria amadurecida.
    James joga sua carta. Na carta tinha o desenho de um homem em chamas com uma espada segurando as rédeas em um carro arrastado por dois cavalos.
    – Qual significado dessa (??????)?
    – Dizem que é Maomé carregando o emblema do Islã. O Islã que significa: submeter à força a crença em um único deus. Ele está conduzindo seu exército para destruir Caaba. Quer a vitória a qualquer custo para a satisfação de seu próprio ego. É o século VI. A carta tem o nome de “o carro”. Novamente os dois caminhos sendo representados pelos cavalos.
    Wilson joga a sua carta. Ela tem o desenho de uma mulher com uma coroa de ferro na cabeça. Em uma mão segura uma espada e na outra uma balança.
    – E essa?
    – Essa é a lei do Islã sendo imposta à força da espada em nome da justiça. É o século VII, quando os árabes expande seus domínios. O nome da carta é “a justiça”. Aí estão representados os dois caminhos na balança e a espada que cortar esses dois caminhos à força.
    Agora com duas cartas nas mãos é James que lança uma carta na mesa chamando o jogo. A carta tinha um esqueleto com uma fina e comprida foice em campo cheio de caças e corpos separados.
    – Essa só pode ser a morte, não é?
    – Exatamente! É o século XII.
    Wilson joga uma carta com os desenhos de um macaco e um cão girando uma roda com uma esfinge por cima segurando uma flecha.
    – E essa carta aí, o que significa?
    – Essa eu não sei, mas dizem que a esfinge tem a ver com sabedoria. Deve ser por isso que é chamada de “roda da fortuna”. Os dois cominhos estão representados pelo macaco e o cão que tentam destruir o conhecimento do terceiro caminho.
    Reginaldo jogou a carta do século V, certo de que ganharia a partida. Porque estava entre o Papa e o Carro. A Justiça e o Eremita já tinham sido lançadas. Assim como o imperador e a imperatriz. Na carta tinha um jovem entre duas jovens em uma encruzilhada.
    – Que carta é essa?
    – "os dois caminhos".
    – Dois caminhos?
    – Sim! Só existem dois caminhos.
    – Tem certeza?
    – Ora, pois saiba que em um caminho só é seguro se andar pelo lado esquerdo ou pelo direito, andar no meio é morte certa.
    – Mas o jovem aí não decidiu que caminho seguir.
    Onório olha uma das duas cartas que tinha no baralho e percebe os desenhos de dois jovens em um jardim próximo de um muro inacabado. Dois Jovens. Olha a imagem do sol desfazendo o orvalho. Não ganho com essa carta, mas não posso jogar a outra. Concluiu que se tratava do século XVIII.  Jogou a carta.
    – Não vai perguntar que carta é essa?
    – Já sei que se trata do sol iluminando os caminhos.
    – Muito bem! Então vamos apostar tudo na última carta?
    – Eu aceito!
    Todos de acordo, mas ninguém queria iniciar o jogo. Reginaldo propõe que decidissem o impasse com uma moeda.
    – Nós dois, Onório, vamos decidir. Escolhe o que você quer, cara ou coroa?
    – Como assim, cara ou coroa! Somos quatro. Vamos decidir os quatros.
    – Mas só existe cara e coroa. Não existe mais de duas alternativas.
    – Devem existir até mais de três alternativas.
    – Não! Não existe. Somente duas alternativas. Cara ou coroa. É ou não é? To be or not to be: that is the question without solution.
    – Nem cara nem coroa! É minha razão, porque nenhuma pode ser excluída.
    – Essa não é uma terceira alternativa.
    – Por que não? Quem escolhe cara ou coroa, de uma forma ou de outra está errado. Não escolher é o certo.
    – Vamos! É preciso escolher. Já está na chuva tem que se molhar. Porque não se pode acender uma vela para Deus e outra para o Diabo e nem deixar de acender a vela.
    – O que tenho a perder e a ganhar em uma escolha?
    – Bom! Visto que é absolutamente necessário fazer uma escolha, isso já está decidido, tendes a ganhar somente aquilo que tendes a perder. Se ganhares, ganhará tudo; se perderes, não ganhará nada.
    – Mas é uma aposta muito grande! Qual a probabilidade de ganhar e de perder?
    – Vamos! É preciso escolher entre cara ou coroa.
    – Quais as probabilidades de ganhar escolhendo cara?
    – A mesma probabilidade de perder escolhendo coroa.
    – Uma moeda não é feita só de cara e coroa.
    – É sim, de um lado é cara do outro, coroa. Tudo no mundo é feito somente de opostos.
    – Não existe nada entre a cara e a coroa?
    – Não, não existe. De lado é cara e do outro coroa. É tudo.
    – Então não pode existir cara sem coroa, nem coroa sem cara?
    – Não pode.
    – Então tanto o inferno como o céu depende um do outro para existirem?
    – Como?
    – Ora, o bem e o mal, a luz e a escuridão, o polo positivo e negativo são um todo, que sem um deles não existiriam?
    – Assim é.
    – Logo, quem vai para o céu só é possível por causa do inferno. No céu que é bom, onde não se come nada, só se reza. E se vive para sempre fazendo isso, depende do inferno, que é mal, onde só arde, mas não queima. E se vive para sempre fazendo isso, depende do céu que é bom?
    – Não sei mais o que dizer.
    – Ora, não foi Deus que fez a separação de tudo sem colocar o meio. Quando colocou no meio, o meio não permaneceu. Então Deus dividiu.
    – Que meio?
    – Quando Deus colocou a árvore no meio do jardim ele a dividiu em duas partes, bem e mal. O varão, macho, que colocou sozinho no jardim, Deus viu que não era possível e também o dividiu formando macho e fêmea. Nota-se que disse Deus que os dois eram um só. Portanto Deus ao criar a sua imagem e semelhança, macho e fêmea, não estava dizendo que ele é macho e fêmea? Não foi a serpente que disse à mulher que o segredo do conhecimento de Deus é o bem e o mal?  Notadamente cara e coroa é um só. A árvore não tinha um outro aspecto senão agradável. Portanto o bem e o mal junto são agradáveis até à vista. Deus só conhece os opostos. O branco absoluto é a união de todas as cores. O preto absoluto é a ausência de todas as cores. Qualquer cor intermediaria é proporcional à quantidade presente ou ausente de preto no branco.
    – Mas o purgatório está entre o céu e o inferno.
    – Mas ficar para sempre no purgatório tem que ser bom na mesma proporção que se é mal. Se a balança pender para o lado bom ganha o céu. Do contrario, se pender para o lado mal ganha o inferno. Mesmo no purgatório está dividido em dois lados. Há de se concluir que indo para o céu ou para o inferno, a vida eterna está garantida. Portanto, quem está no céu rezando e glorificando, nada mais alem disso, o senhor do céu, não pode dizer que está em melhor situação do que aquele que está no inferno quente. Porque o fogo do inferno não consome os corpos. A imigração para ambos os lados é inevitável. Porque quem não gostar do frio e da vida tediosa do céu passará para o inferno. O mesmo acontece com quem não gostar do calor do inferno. Não foi um anjo do céu que se tornou rei do inferno?
    – Isso explica por que Deus usou o plural "façamos" para criar o homem?
    – Se não existe a terceira alternativa, de duas uma: ou Deus é tudo em um, ou é um plural deliberativo que indica ter Deus tomado a decisão conjuntamente com sua corte celeste. Se não teria dito "faço o homem a minha imagem e semelhança". A terceira alternativa, mas óbvia, é que o escritor do texto primitivo não ficou atento ou então queria dizer que Deus criou tudo sozinho, mas para criar o homem precisou de ajuda. Nesse caso a Bíblia é uma criação meramente humana.  
    – É por isso que digo: cara ou coroa?
    – Nem cara, nem coroa. Voltamos à questão primitiva do ser e não ser. O ser pode vir a não-ser? Como o velho e o jovem? Que aquele vem a ser este?
    – Certamente que sim.
    – Então o ser vem a não-ser e o não-ser vem a ser? O caminho que sobe não é o mesmo que desce?
     – Digo que sim.
    – De onde nasceu o mesmo caminho que sobe e desce? Do não-ser não te é licito dizer, porque o ser não pode ser gerado de um não-ser. Mas como queres que tudo seja feito de opostos, necessariamente tudo existe ou nada existe. Só posso concluir que o que está no meio dos opostos só pode ser o homem.          
    Wilson, impaciente, joga sua última carta em cima da mesa. A carta tinha a figura da lua crescente iluminando um homem enforcado em suplício com uma das pernas esticada e a outra perna traçando uma cruz.   
    – Não vai perguntar?
    – Não, essa deve ser o século XI. E certamente significa sofrimentos – James jogou sua carta. Na carta tinha o desenho de uma lua ofuscada pelas nuvens. Ao longe o desenho de duas torres. Um cão e um lobo em um monte próximo uivam. Da lua se percebe que lágrimas e gotas de sangue escorrem de sua superfície. O pouco brilho da lua ainda consegue iluminar uma lagosta emergindo da água parada de uma lagoa. As duas torres estão separadas por um caminho que a lua chora por não poder iluminar direito.
    – Essa é a Lua e representa o século XVII.
Reginaldo jogou sua ultima carta. Ela continha o desenho de um anjo em cima de uma pequena nuvem assoprando uma trombeta. Em um cemitério, de dentro de um tumulo, saem um homem, uma mulher e um menino.
    – Essa, meu amigo, é o século XIX. Ela se chama “O Juízo”. E novamente o juiz tenta decidir se existe ou não o terceiro caminho.   
Onório jogou uma carta que continha o desenho de um sujeito com uma aparência desembaraçada e todo fantasiado com roupa e boné de palhaço e, com uma sacola na mão, próximo de um abismo sendo segurado pela boca de um cão.
    – Que carta é essa que joguei?
    – Essa eu também não sei. Talvez ela signifique um louco com uma bomba. O nome dela é exatamente: o louco. É o século XX. É a loucura da busca de um novo caminho.
Depois que terminaram o jogo Onório perguntou.
    – Como vocês ficaram sabendo dessas coisas? Pelo que conheço vocês, todos aqui são pessoas que não têm nem mesmo o ensino fundamental completo.
    – É verdade, mas eu sempre li quando não tinha nada aqui para fazer. Tenho ali – apontado para uma caixa de papelão – alguns livros de faroeste. Na maioria é de Tex Willer, mas seu Maranhão nos deu alguns livros que ele guardava dentro do tubulão. 
    – Que mais ele falou a respeito dessas cartas?
    – Quase nada do que já dissemos. Ele, como você sabe, inventava umas viagens para o Egito. Disse que passava por Baalbeck, Acre e Paris. Nessas viagens ia visitar a Catedral de Chatres e a esfinge de Gizé.
    – E o que ele fazia nesses lugares, ele falou?
    – Não, mas disse que os cavaleiros templários sabiam através da carta “o diabo” que seriam eliminados e que antes tomaram uma precaução.
    – Que precaução?
    – De distribuir pelo mundo essas cartas.
    – Por quê?
    – Porque o nome “tarô” é um anagrama com dois significados que só quem está preparado ou descende da ordem pode desvendar o segredo.


Capítulo 9

Onório ligou o Notebook na bateria do motor da balsa. Conectou o pen drive. Abriu o livro e leu.

Prólogo

Nunca escrevi um livro. Não tenho boa formação nem conhecimento das correntes literárias do meu tempo. E isso me causa apreensão. Tanto que não sei por onde começá-lo. Na verdade, não sei dizer se é uma epopéia, um romance ou um tratado filosófico. Mas posso dizer que este livro trata de lembranças de um amigo que tive a oportunidade de conhecê-lo em vida, porque já está morto, nesses caminhos que a vida nos leva. O contato que tive com ele não foi de um longo tempo, mas tempo suficiente para umas boas conversas. Amizade se fazem muitas por essa vida afora. Sempre gostei de viajar e conhecer lugares e pessoas. Mas não são todas as pessoas com quem podemos nos relacionar. Mas meu amigo André tinha um jeito especial de me cativar. Ele sempre vivia dizendo que responderia todas as minhas perguntas, fossem elas quais fossem. Eu que achava impossível. Então não perdi tempo em fazer-lhe a primeira pergunta para que ele ficasse sem resposta e assim desmascará-lo de vez.




I


    Sabendo que não obtinha resposta perguntei:
    – Entre a vida e a morte. Existe algo entre a vida e a morte? O que é vida? O que é morte?
    – É uma pergunta difícil de explicar, mas tento. Assim como a sabedoria, também é a vida. E como ignorância, também a morte. E como a inteligência, que está entre a sabedoria e a ignorância, também existe o ente-vida-morte.
    – Como assim? – apesar de ter entendido queria que ele se explicasse melhor.
    – Explico. A vida é orgânica, a morte inorgânica. E o que não é orgânico, nem inorgânico é o ente-vida-morte. Porque está entre a vida e a morte.
    – É possível que exista algo entre a vida e a morte que não seja orgânico e inorgânico?
    – Não se trata exatamente de ter ou não ter organismo. Mas em uma fase intermediaria entre a vida orgânica e a morte inorgânica. O metal mercúrio é um estado da matéria, em temperatura ordinária, entre líquido e sólido. Em contato com o ouro, em quantidade proporcional, passa rapidamente para a solidez. Por causa dessa capacidade de passar de um estado físico para outro é que vocês, que são garimpeiros, usam o mercúrio para separar o ouro de outras substâncias. Porque quando vocês colocam a chama do maçarico em cima do bolo formado por ouro e mercúrio, rapidamente o mercúrio vai para o estado gasoso, enquanto que o ouro permanece sólido. Um vírus não é orgânico, nem inorgânico. Está entre a vida e a morte. Quem for infectado por vírus, O ente-vida-morte, está literalmente entre a vida e a morte. O vírus é um fenômeno natural que harmoniza a vida e a morte. Assim como tem pouco saber no mundo e muita ignorância, há mais morte do que vida. A vida se nos apresenta como algo imaterial que provém de mecanismo da matéria. Mas não existe vida fora da matéria. A vida não é um movimento. O movimento da matéria produz a vida.  Há vida que não se movimenta e morte que se movimenta. Quanto à relação de dependência, a vida necessita da morte, mas a morte não necessita da vida. Portanto a vida é dependente da morte. Como há mais morte que vida, nasce o desejo da imortalidade.
    – Como é a morte? Se for possível alguém responder. Quem morreu não voltou. Quem é vivo nunca morreu.
    – É possível sim. Pense no seguinte, tente lembrar de algo que você vivenciou há duzentos anos.
    – Impossível lembrar de algo que não presenciei.
    – Isso porque você não existia como vida. Era só inteligência sem vida e sem morte. Um espermatozóide que ficou em um substrato que lhe proporcionou a passagem para a vida e não para a morte. Se antes da fecundação tivesse fixado em uma pedra, por exemplo, teria se transformado em morte. A morte não é nada para a vida assim como a vida não é nada para a morte. Com a morte nós nada sentimos. A morte do corpo não implica o fim definitivo do indivíduo. Mas existimos como matéria. E assim como a sabedoria só tem valor em razão da ignorância e a ignorância perde seu valor em confronto com o conhecimento, também a vida só tem valor em razão da morte. Viver eternamente não faz nenhum sentido. Porque se acabam as paixões e todo sentido da vida. A vida somente pode deixar sua marca como vida.
    – Qual é a marca que a vida deixa, então?
    – As marcas da vida são mais profundas que as da morte porque se utiliza do ente-morte para deixar suas marcas. E tais marcas são tantas que só estas bastam:
    – Quais marcas?
    – O legado, genótipo, fenótipo e a cultura. Essas são eternas enquanto vida. Toda vida carrega o gene que o produziu. É a semelhança, o primeiro caso de imortalidade. Trata-se dos constituintes hereditários que são transmitidos pela prole. A imagem deixada pelos caracteres iguais é o segundo caso de imortalidade. Quando uma vida passa para a morte, contribui para a vida e a morte. É o ente-morte e o terceiro caso de imortalidade. Esse processo é o caso de eternidade.
    – E a eternidade é possível?
    – A eternidade é um fato. Tudo que existe, enquanto matéria, é eterno. Mas a imortalidade não faz sentido; porque todos buscam a felicidade. E no que consiste a felicidade? A felicidade não está na vida, mas no prazer que a vida pode nos proporcionar. A vida de um homem começa no prazer de viver e termina quando cessa esse prazer. Os demais animais não sentem nenhum tipo de satisfação além do intuitivo. Mas já é possível observar cultura e aspiração em algumas espécies de rápida evolução. O prazer humano consiste nas realizações pessoais e coletivas. Não se pode realizar nada na imortalidade. Não é possível realizar nenhuma atividade. A religião “acerta”, em parte, quando imagina que em uma outra vida não se faz nada, a não ser rezar. Mas nem rezar é possível. Não há como pensar na imortalidade, porque o imortal não tem necessidade fisiológica ou de qualquer natureza. Não faz sentido nenhum viver, para um humano, como um deus. Porque seriam tantos deuses quantos humanos existissem. Posto que o melhor seja mudar de fazes e de formas. Não existe uma fórmula certa para o ordenamento da vida; porque a felicidade é só uma, mas os desejos e prazeres são diversos. Mas alguma coisa deve-se levar em conta: é preciso eliminar os medos inúteis como o medo da morte e dos deuses. Deve-se evitar a morte antecipada artificialmente, mas não a natural. De forma que o medo da morte é tão inútil, porque quando a vida existe, não existe a morte. Do contrário quando existe a morte não existe a vida. Portanto não se deve rejeitar a vida, nem temer a morte. A morte para a vida é inevitável. Está incorreto o ditado que diz: “para este o melhor era que não tivesse nascido.” Ora! Uma vez nascido não é nenhuma tolice viver bem quando é jovem e morrer bem quando é velho. Tem se que levar em consideração que um bem para nós pode ser um mal e um mal pode ser um bem. Concorda que a independência é um bem? Certamente concorda, mas não existe independência em termos gerais. Porque existem independências naturais e essenciais, tais como fome e sono, a vida que da qual não se pode viver. As dependências que não são naturais nem essenciais como: fama, beleza, sucesso, glória são artificiais. Mas estas são os prazeres da vida. São estas que dão sentido à vida. Quem não tem necessidade de glória, beleza, fama, saúde é somente um animal. Para este a vida não faz nenhum sentido. Todo animal irracional não tem conhecimento da vida. Quanto ao sofrimento, não é possível viver sem sofrer por causa das paixões que tornam o homem sempre inquieto e insatisfeito e todos sofrem dessa mesma doença. E a inquietude é o efeito não a causa das ações não realizadas. Uma sabia lenda do primitivo povo da América do orte garante que o coiote, para o bem dos homens, livrou-os da imortalidade, pois temia que a vida eterna o entediasse. De fato o tédio pode levar ao suicídio. Como afirmou Sêneca que a vida e o próprio mundo começam a enfastiar e instalar na mente um questionamento próprio de quem apodrece em meio aos seus próprios prazeres: “sempre a mesma coisa! Até quando isso vai durar?” É preciso gostar de viver. Só se sente prazer de viver se entregando aos prazeres da vida. Essa é a nossa dádiva: trabalhar em busca da satisfação. Não há, nesse sentido, um modelo de vida perfeito e imperfeito. A paixão é um sentimento tão profundo que é o único caminho para o amor. Quem se julga sábio porque evita as paixões está equivocado. É nas paixões que as intensas emoções fluem o pensamento. Quando despertamos para o mundo, ficamos extasiados com tudo. Na adolescência achamos a vida mais prazerosa e bela. Somos, nessa fase, parecidos com os outros animais que não estão nem um pouco preocupados com a falta ou a abundância de alimentos. Desde cedo despertamos o desejo de conhecer porque o desejo é inerente ao homem e nasce do assombro que sentimos diante da beleza do mundo. Também porque todo conhecimento produz uma sensação de prazer. É onde nasce em nós a filosofia. Todos nós somos filósofos. Não se vive sem filosofar porque não podemos viver sem questionar o mundo que nos cerca. É por isso que eu pergunto, e fico zangado comigo mesmo, porque tanto pergunto. Mas por que pergunto? As minhas indagações sem respostas têm me colocado em apuros. Mas também estive em apuros por falta de indagação. Se Deus me proíbe o conhecimento do bem e do mal, não posso falar do bem nem do mal porque não o conheço. É preciso conhecer para entender. Se sou privado disso, a força que me priva tem o egoísmo absoluto. Segundo nos dizem, o egoísmo é um mal. Não existe algo mais malvado do que aquele que priva alguém do conhecimento de todas as coisas. É como o sistema político despótico absoluto. Eu sou um fenômeno. Porque se eu fosse criado por vontade consciente já sabia, quem me criou, que eu seria e o que faria. Não, eu não quero ficar leigo. Quero conhecer de tudo. Porque se o tudo existe e existe alguém disposto a conhecê-lo, é egoísta o detentor desse conhecimento que priva outrem de contemplá-lo. Não preciso ser um super-homem, só preciso ser homem para exercer minha vontade. Não preciso da embriaguez de Dionísio nem da razão de Apolo. O que eu preciso é de razão e embriaguez se essas me conduzissem à verdade. Quem prende uma ave numa gaiola nunca esteve numa prisão. A vida é intuição e inteligência. Ela se adapta às circunstâncias, mas não conserva, em todos, os instintos naturais. A vida, como indivíduo, deve: fluir, jorrar, transbordar seus instintos naturais. Qualquer força que priva desse fluir, jorrar e transbordar é egoísta porque quer ser o detentor de tudo que há de mais essencial para a inteligência vital. Melhor dizendo, para o fundamento da vida. Para que viver por simplesmente viver? Não necessito de vida como sendo algo que simplesmente se movimenta sem entender por que se movimenta. Se minhas investigações não chegam a lugar algum é porque não há algo para se chegar. Não posso, por natureza, ser privado da verdade.  
Entre amar e ser amado, não necesssito de ser amado, mas amar. Quem ama não precisa de adoração. Ama sem restrição.
    – E Deus, onde entra nessa história? – Perguntei. Já que ainda paira dúvida sobre tudo e a existência de Deus, como querem as religiões, não é possível provar sua existência. É uma questão milenar que aos poucos vai sendo desvendado o véu da verdade.
    – Para responder essa pergunta torna-se necessário recorrermos à dialética. É preciso acima de tudo fugir totalmente do senso comum. E a primeira pergunta que me vem em mente é a seguinte: O movimento existe?
    – Naturalmente!
    – Então considere o seguinte: em uma fita ou em um CD, que contém um filme. Esses têm em sua mídia magnética o movimento das ações ou as imagens, dessas ações, paradas em cada instante?
    – Imagens das ações paradas em um instante em que foram fotografadas.
    – De forma que o movimento não existe, porque o movimento não pode nascer da soma de vários momentos de repousos. Se fotografássemos um projétil disparado por uma arma em cada instante de seu movimento, obteremos uma série de instantâneos em que o projétil aparece parado. De forma idêntica, para alcançar, em uma corrida, a distância de cem metros, seria necessário primeiro alcançar a distância de cinquenta metros; para alcançar os cinquentas metros seria necessário primeiro alcançar vinte e cinco metros; para vinte e cinco, a sua metade que é de doze metros e meio... Depois de trinta e seis sequencias para atingir a metade do percurso chega-se à metade de 0,0000001 que é o instante zero. Portanto o instante. Levando em consideração a lei física da impenetrabilidade é impossível no mesmo espaço estar parado e movimentando-se ao mesmo tempo. Ou estar parado ou movimentando. Inércia total deve ser o seu estado.
    – Me parece que tem razão.
    – Mas se encontramos um espaço vazio no corpo é possível sua movimentação. E o vazio é obrigatoriamente o nada.
    – O vazio é o nada com certeza.
    – Portanto o vazio é o nada que os corpos necessitam para se movimentarem para todos os lados?
    – Assim parece.
    – E o que está sendo movimentado deve esse movimento por algo que o faz movimentar?
    – É o que parece com toda certeza.
    – É possível algo movimentar sem ser movido como causa primeira? Ou seja, um motor que, sem ser movido, move todas as coisas?
    – Tudo indica que sim.
    – Então Deus é um motor primeiro que move sem ser movido. Mas não uma divindade criadora do mundo. Porque esse Motor não é causa inicial, mas final. Não é esse motor que deu vida e origem ao mundo. O mundo sempre existiu. De modo algum o mundo foi criado. Esse Motor é ponto de chegada, não de partida. Meta final para qual tende toda realidade, como um ímã que atrai sem se mover. Posto que seja onde o movimento termina. Podemos dizer que o ser imovível que faz algo movimentar-se também é a causa do segundo, terceiro..., movimento provocado pelo primeiro movimento? Considere que o primeiro movimento depende diretamente do motor imovível que o fez movimentar-se, mas o segundo movimento depende diretamente do primeiro movimento para se mover, mas não do motor imóvel. Mesmo que o último movimento seja provocado pelo primeiro a movimentar-se, não existe dependência direta, mas hierárquica. Se a força que faz o primeiro movimento acontecer, deixar de exercer influência no movimento primeiro, e, este continuar movimentando-se, o último ser movido nada sofreria em sua trajetória.
    – Isso é compreensivo, mas duvidoso.
    – Esse motor é compreensivo. Devemos dar absoluta transcendência a esse motor?
    – Devemos.
    – Não podemos atribuir a um motor que move sem ser movido nenhuma qualidade humana mesmo que esse motor tenha a unidade?
    – Não podemos.
    – O Motor é a unidade de todos os seres visto que movimenta tudo. Se há transcendência entre o motor e o movimento, o mundo não foi criado por um ato livre, mas automaticamente irradiado. O mundo transborda do motor.
    – Certamente que sim. O mundo é emanado do motor.
    – Mas esse motor é uno? Visto que afirmamos que o motor é a unidade de todos os seres.
    – É uno com certeza. É um motor-uno.
    – Então meu amigo, aparece o dilema: esse motor-uno é inefável porque nenhuma palavra pode descrevê-lo. Não se pode falar do motor-uno o que ele é, nem o que ele não é. Porque está longe da compreensão humana. Visto que demos transcendência a ele. Sendo assim não podemos atribui ao motor-uno qualidades humanas porque diminuiria sua transcendência.
    – Me pareceu confuso.
    – Explico! Esse motor-uno existe como um bem supremo que não precisa de nada para existir, visto que move sem ser movido, mas todos os demais seres necessitam dele para ser o que é e ter valor?
    – Necessita.
    – Portanto um ser perfeito?
    – Perfeito com certeza.
    – Visto que é um ser perfeito, certamente sua existência é uma realidade. Porque um ser absolutamente perfeito não pode ser desprovido do atributo da existência.
    – Não pode.
    – É um conceito lógico, como também é lógico o conceito que não basta ser perfeito em absoluto para atribuirmos afirmação da existência de um ser com base na ideia que temos dele sem uma experimentação perceptiva, mesmo que esse motor-uno possa existir.
    – Não podemos.
    – Da idéia que fazemos do motor-uno não deriva a existência de motor-uno. Mas se existe: máximo e mínimo, luz e escuridão, afirmação e negação, tudo e nada convergindo para um único ponto “motor-uno” para onde, nesse ponto, são anuladas todas essas diversidades, então o motor-uno existe?
    – Certamente que sim.
    – Já dissemos que o motor-uno é a unidade de todos os seres?
    – Dissemos.
    – Dissemos também que o motor-uno não necessita de nada para existir?
    – Foi o que dissemos.
    – Então podemos dizer que só uma substância pode existir como sendo o motor-uno. Porque a matéria e o espírito não devem ser considerados substância. Porque o motor-uno é livre e eterno. E quanto a sua liberdade, age sob o impulso da necessidade da sua natureza. E como o motor-uno é único, tal não admite nada fora de si mesmo, mas deve compreender o mundo inteiro?
    – Parece que sim.


III
   
    – E a crença justifica a existência de Deus?
    – Não podemos minimizar a infinitude e a grandeza de um ser só porque os sentidos e os instintos não os concebem. Também, porque esse ser não deixará de ser o que é concebido ou não. O ser é independente de qualquer ser. De outro  modo não seria. Então não seria mais do que vir a ser. Pensamento ordinário julga o ateu imoral, mas a imoralidade está no conceito social. É mais vantajoso para mim viver como se Deus existisse. Deixar a vida me levar, faz mais sentido que levar a vida enquanto vida. A Vida não se deixa ser tocada. O conduzido não conduz o condutor que sabe o caminho. Aquele tem opinião, este é a condução que não precisa da razão. A moralidade é mais que uma necessidade social. Ela está pingente em toda forma de vida na mesma proporção da linguagem que, para os animais, denominamos instinto. Este não poderia existir sem os sentidos que os geraram. Por intuição digo que nenhum ser possa, por si mesmo, concomitantemente ocupar meus cincos sentidos. Isso porque sempre lhe faltará algo. O sentido que nos conduz à realidade da matéria é a audição. Posto que este só seja possível pelo conjunto que sem o qual o som não chegaria ao órgão do sentido. Não é o som que conduz a matéria, mas o contrario é conduzido por esta até o seu fim determinado, pela experiência, a um significado. Assim sua propagação cessa somente com a finitude da matéria condutora.     Quem acredita em uma vida após a morte considera que tal vida póstuma é eterna. Só se morre uma vez, e o que temos nessa vida são, além dos essenciais e naturais, desejos artificiais de uma póstuma existência vital. Em uma outra vida, material ou sobrenatural só seria possível se fosse possível uma nova morte. Fora da matéria a vida não teria necessidade de nada. Não tem necessidade de conhecimento porque já conhece o tudo e o nada; não tem necessidade de potência e presença porque já tem. Não faz nenhum sentido viver porque a vida não necessitaria de nada para ser vida. É como uma substância mineral que não precisa de outra substância para ser o que é. De forma que o Deus da religião não pode ser onipotente, porque o seu poder é relativo e, portanto limitado. Visto que necessita de adoração, oferendas, dedicação e total obediência de suas "criaturas". Também não pode ser onisciente porque conhece o princípio e fim e tal conhecimento colocam Deus dentro do tempo em razão da onipresença. Portanto Deus não pode ter criado o tempo estando fora do tempo. Sendo assim só é possível explicar sua existência se furgirmos do senso comum e partirmos da premissa de que “tudo que tem um início tem um fim”. A primeira Substância pura e perfeita sofreu reações físico-químicas que permitiram originar outras substâncias secundárias e as secundárias terciárias.... Como uma cadeia ininterrupta de uma árvore genealógica que mantém a harmonia no universo. Essa harmonia é tão perfeita que não podemos chamá-la de imperfeição. O conjunto é perfeito. A imperfeição está na ação e manipulação individual e impensada da modificação do estado natural. Não há mais “mistério no mundo que a nossa vã filosofia possa mais imaginar”. Tudo foi desvendado, não existe mais mistério, tudo é fenômeno. Portanto meu caro amigo, Deus é um fenômeno, ou seja, uma substância que sofreu a ação de um fenômeno natural e necessário para a estrutura atual do universo. Voltar para essa substância é voltar para a estrutura primordial. Isso só seria possível com a unificação das diversidades existentes em um todo. Como fazem os fabricantes de remédios, que precisam da fórmula certa para certa doença. Portanto respondendo a sua pergunta sobre a existência de Deus através da crença, digo que a crença, posto que seja uma confiança de crédito íntima que se dá a um argumento de persuasão, não é sinônimo de convicção, mas de ingenuidade. Ninguém acredita no perceptível. Porque o que é percebido não precisa de crença para existir. Um ser não pode existir só porque nos persuadiram a crer, com argumentos sofistas, a crer que ele exista. A crença não faz um ser existir, mesmo que esse ser exista.         



IIII
   
    – Existe alguma chance da existência concreta de Deus?
    – Muitos filósofos e teólogos encontraram diversas formas diferentes de como poderiam falar da existência de Deus. Como não existe um meio tangível e concreto para uma prova definitiva, ficou somente na especulação e no modo de pensar e não pensar na existência de Deus. Tentaram mostrar Deus através do movimento, mas chegamos à conclusão que nem mesmo o movimento pode ser real. De qualquer forma posso afirmar que se pensar em Deus como sendo o Deus da religião que quer que o adore como se fosse um ser humano, esse não existe. Porque esse é um Deus da abstração. Mas se existisse, meu amigo, seria preciso que fosse necessariamente justo, pois, se não fosse, seria o mais maldoso e o mais imperfeito de todos os seres. Não é possível que Deus faça algo injusto, uma vez sequer, porque diferente dos homens que podem cometer injustiças porque têm interesse em cometê-las, porque agem em razão de interesse, Deus não teria necessidade de nada, visto que se basta a si mesmo, seria o mais malvado de todos os seres, porque seria sem interesse. Cada povo crê nos seus deuses, mas há povos que não acreditam em deus algum ou no meio dos crentes há os ateus. Mesmo as mudanças de hábitos para a adequação, só reforçam a tese de que a dúvida persiste. Agostino duvida, acertadamente, que o mal talvez tenha penetrado no mundo pelas substâncias que Deus usou para fazer a matéria quando deixou algumas partes que não transformou no bem. Ora, isso não limita os atributos de onisciência, onipotência e onipresença? Ele acha que Deus quis usar algo da matéria mal para alguma coisa e por isso não usou sua onipotência para aniquilá-la. Mas isso nos leva a crer que Deus usou, para seus propósitos, algo que Ele não criou. O mal. Assim Deus não criou tudo que existe. De outro modo não pode aniquilar a matéria mal para não ferir a si próprio em razão da onipresença. Posto que tudo toca em tudo sem que um ser exista sem tocar em outro ser. A criação do universo por uma vontade arbitrária de Deus fica debilitada quando procura as proporções. Porque se Deus criou o universo finito, colocou, pois, limite na sua criação. Do contrário, se fez o universo infinito criou sua obra indefinida. Daí não se pode afirmar que o fato de pensar em algo imensurável e maior que tudo justifica o pensamento da existência. Porque a ideia é o único ser que se pode pensar que existe e não existe. Penso que a própria ideia que penso existir, pensa não existir. Ambos são opostos. O mesmo ser que do qual não é possível pensar nada maior goza do mesmo atributo, em oposição, do ser que do qual não se pode pensar nada menor. É a prova ontológica do significante que gera o significado. Mas aquele é o objeto e este a cópia. Não se pode falar de livre arbítrio porque não foi dada escolha no principio. Não foi perguntado a nenhum ser vivente se este queria viver. Disso não me lembro.
Portanto se você me perguntar quem é Deus, digo que é uma ideia. E essa ideia de Deus nasce da ideia de perfeição absoluta. Mas por varias razões o Deus da religião não tem nada de absoluto em matéria de perfeição. Exatamente por ser, Deus, uma idéia não pode ser perfeita. O abstrato não pode criar, mas ser criado. A Ideia de Deus caracteriza-se e projeta-se na ideia de perfeições humanas. Todos os valores imensamente apreciados pelo gênero humano se atribuem a um único ser que denominamos Deus. A onisciência de Deus nasce da necessidade do homem de conhecer e saber. O amor de Deus nasce do amor que sentimos. Mas como o amor humano é falho, porque é recíproco ou interesseiro, procura-se um ser cujo sentimento de amor seja perfeito. Mas o Deus da religião também é imperfeito, visto que necessita de adoração. A virtude de que mais sentimos faltas é a justiça. Por isso dizemos que Deus é justo, mas não se pode falar em justiça perfeita de Deus. Portanto meu caro amigo, todas as qualidades atribuídas a Deus são qualidades do ser humano.
    – Como assim?
    – Deus tem tudo aquilo que lhe falta. É o seu oposto. Já vistes alguém que é convencionado as perfeições se tornarem deuses ou semideuses. Jesus se tornou um Deus. E outros santos, os Semideuses. Estes capazes de realizar milagres. Mas a sua pergunta foi se Deus existe concretamente como sendo uma pessoa que age conscientemente e que está no céu observando o mundo?
    – Isso mesmo.
    – Impossível. Mas atribuíram essa qualidade ao justo Jesus que tanto acreditou nessa possibilidade. Mas Jesus não é um "Deus". Qualquer que seguir seu exemplo também será considerado um "Deus". Por convenção, esse é o único Deus concreto do mundo cristão.
     
                                          
V
   
    – E a religião, qual o seu papel?
    – Essa é mais maligna que benigna. Entre tantas características, digo que serve para por um freio nas forças vitais do homem. Não se faz ou deixa de fazer alguma coisa porque é benigno ou maligno, mas porque não é convencionalmente teológico. Não se pratica sexo com o instinto por causa da racionalidade do pecado e a vigília permanente de Deus. Ora! É sabido que a concupiscência é um estado natural do instinto de procriação. Como uma necessidade de alimento para a própria existência vem o desejo da existência da espécie. Na religião não se é solidário porque se é solidário, mas por que espera uma recompensa divina. Qualquer que seja uma religião, representa uma forma de alienação. É uma patologia que submete inconscientemente o homem a um ídolo. Ver que qualquer avanço no campo teológico transforma a humanidade em rebaixamento. Porque o fundamento da glória de Deus está na diminuição do homem, a miséria humana é o bem-estar de Deus, o poder de Deus está na fraqueza humana. A religião é uma ilusão perigosa e fatal porque destrói as forças para a vida real e faz-nos perdermos o sentido da verdade e da virtude, já dizia Feuerbach. Ninguém, com princípios religiosos, faz alguma coisa sem levar em consideração Deus. Dá-se um em troca de dois. Grande Feuerbach! “A religião é a separação do homem consigo mesmo: ele se põe diante de Deus como um ser contraposto. Deus não é o que é o homem, o homem não é o que Deus é. Deus é onipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem pecador. Deus e o homem são extremos: Deus é o polo positivo, a soma de todas as realidades, o homem é o pólo negativo, a soma de todas as nulidades.” De fato, meu amigo, estou de pleno acordo quanto ao fato do homem sentir-se separado de Deus, isso não significa que se trata de dois seres. Se fossem dois seres diversos e não uma separação de um único ser, que me importa esse outro ser. “Se realmente Deus é um outro ser, o que me importa sua perfeição?” De comum acordo. Partilhou do mesmo pensamento o biógrafo que separou Jesus do Cristo no momento da morte. Portanto o papel atual da religião é pôr um freio nos instintos naturais do homem.
    – Deus é eterno?
    – Depende que tipo de Deus, mas de qualquer forma, de modo algum pode não ter sido gerado do nada. Existe uma terceira possibilidade do ser e não-ser, o ser-não-ser é a questão. (cara e coroa e o ente-cara-coroa. O verso, reverso e o verso-ente-reverso). Não existe o indivisível. O nada não existe. No princípio era a antimatéria. Nunca existiu o nada. O nada,  se fosse possível, geraria nada. A matéria gera matéria. Portanto, respondendo sua pergunta, a eternidade de Deus depende da existência humana. O mundo não existe por vontade ou necessidade de Deus, mas Deus depende da humanidade para ser eterno. Deus morre junto com a humanidade. Seriam necessários bilhões de anos para a evolução da vida animal chegar às qualidades humanas para criarem novamente Deus.      






VI

    – E a perfeição humana é possível?
    – O homem para ser perfeito teria que ter um dos principais atributos de Deus.
    – Qual?
    – O hermafroditismo. Seja que fenômeno foi que de tudo gerou era necessariamente hermafrodita. O homossexualismo extingue a espécie porque foge da essência natural. Qualquer outra forma justificada para a prática homossexual fica limitada á percepção e o modo de sentir e agir de cada indivíduo que em muitos casos é uma patologia provocada, na maioria das vezes, por distúrbios hormonais. Se não, um vício. No caso das abelhas, que também vivem em sociedades, as operárias não têm nenhuma função reprodutiva. Essa função fica a cargo do zangão e da rainha. Qual o sexo das operárias? Não é macho, fêmea nem hermafrodita. Se a rainha não reproduzisse, além das operárias, rainhas e zangãos, as abelhas teriam que passar por um processo de mutação em curto espaço de tempo. A prática do homossexualismo não é uma opção natural. Porque foge dos fenômenos naturais. Cada órgão tem a sua função e o desvio de função provoca o mau funcionamento do organismo.             


VII

    – O conhecimento é possível?
    – Primeiro é necessário saber no que consiste o conhecimento. O conhecimento absoluto não é possível. Mas partindo da premissa do ente-ser é possível conhecer o ser e o não-ser. Mas não se conhece o ente-ser. Procura-se primeiro o conhecido, depois o desconhecido. Admitindo a do mundo desconhecido: o ente-mundo. Portanto existe a sabedoria, inteligência, e a ignorância. Que formatado fica assim: sábio, ente-sábio-ignorante e ignorante. O sábio sabe que sabe. Mas não necessita da ignorância para buscar a sabedoria? Ele a tem. Mas esta manifesta-se na ignorância por via da inteligência. Do contrário, a ignorância não tem conhecimento algum. Mas subiste(????) em razão da inteligência. A inteligência que nem é sábia e tampouco ignorante, é refratora. Por isso é que a sabedoria muitas vezes se confunde com a inteligência. Não há necessidade de amar a sabedoria para se tornar um sábio. Mas deve-se desejar para possuí-la. Não é o amor a coisa que obtemos a sua posse, mas o desejo de possuí-la.


VIII

    – O que é verdade?
    – A maior história do mundo na verdade é uma mentira. O que é verdade? O que é mentira? Sabe-se o que é esta, mas não aquela. Só pessoas dotadas de inteligência conseguem desvendar a fundo a verdade da natureza. Ou seja, distinguir uma coisa que não é verdadeira. Mas o filósofo é inteligente? Ele é, mas não possui a verdade e nem conhece a realidade. Ele, com sua inteligência, enxerga a mentira, mas não conquista a verdade. Mas é um ente-mentira-verdade. Não é o espírito que conquista a verdade. Se fosse, só se conseguiria a verdade na morte quando esse deixasse o corpo. Ninguém conhece a verdade. Mas existe vida após a morte? Ninguém sabe a verdade. Qual é então a condição para se chegar à verdade? Aceitando a mentira como uma verdade de mentira. É a força dos opostos que regula o mundo. Tudo é antagonismo. O ser das coisas forma uma unidade de opostos. Ser ou não ser não é mais uma questão. Na unidade de opostos há o ente-opostos. É o que provoca a harmonia dos opostos. O nosso universo é o ente - mundo. O ente mundo está entre o mundo e submundo. No mundo o que é quente não esfria, o que é úmido não seca, o que é árido não umedece. Do contrario é o submundo. O ente-mundo é a harmonia dos opostos. Porque no ente-mundo acontecem as duas naturezas, uma do mundo e outra do submundo. No submundo, “um caminho em subida e em descida é um só e o mesmo” assim pode se pensar no não-ser. Agora a escuridão torna-se a ausência da luz e o silêncio do som. Pode-se pensar no tudo, no ente - tudo e no nada. Erra feio quem quer enaltecer Deus afirmando que os opostos coincidem todos nele. Se Deus é afirmação e negação, luz e escuridão, máximo e mínimo, nele não há perfeição porque o raciocínio se estende a tudo que se contraria. Logo nosso pensamento de bem e mal está nele. A verdade da morte só é percebida pelos sentidos da visão. É a primeira impressão da morte. Os sentidos auxiliam na verdade. Em razão das patologias nem todos podem alcançar a verdade, mesmo que se esforce. Pelo menos o esforço reconhece a mentira. Porque a idéia da verdade surge a partir de percepções sensitivas corretas e fundamentadas em certezas absolutas através de experimentações. Nada, em absoluto, é perfeito. No mundo, onde só há luz, é imperfeito. Porque há excesso de luz e calor. No submundo, onde só há escuridão também é imperfeito. Porque só há escuridão e frio. No ente-mundo também é imperfeito. Porque agrega a imperfeição dos opostos. A perfeição está no todo.
Os que mentiram, mentiram por uma necessidade de mentir. Por isso é que se tem dito que a mentira é útil ao homem. Porque qualquer explicação é melhor que explicação nenhuma. Mas deve-see sempre ter a verdade em grande consideração.

Capítulo 10

Onório pegou as cartas e foi para dentro do tubulão. Pegou alguns livros e papéis. Saiu e foi para cima de uma rocha no leito do rio. Pegou um dicionário, conferiu o significado de anagrama. Tarô e Orta, Tarô e Rota, Tarô e Torar, Tarô e Astro. O, R, T, A. Pegou apressadamente um caneta e escreveu: rota da lei para a estrela Onório Rodrigues Teófilo Antunes. Deu uma olhada na carta “o mundo” e – caramba! Tarô, além de ser um anagrama, também é a sigla de tratado de aliança para deixar no rio Osíris. Tratado do arco-íris ou trado(????) da arca para ocultar Osíris. Agora está claro. Osíris e Ísis eram casados, mas o deus dos hebreus Javé fez uma aliança com a viúva Ísis e a relegou à condição de companheira oculta. Mas Javé relegou Isis à condição de companheira oculta.      
    Onório despediu dos companheiros e seguiu para o Maranhão com o objeto encontrado nas águas do rio.



Capítulo 11


Dona Francisca estava na cozinha de casa. – Bom dia, dona Francisca – foi dizendo Onório.
    – Bum dia meu fio! Já de volta!
    – Já, dona Francisca. Estava com saudades do calor nordestino.
    – O qui você tá trazeno aí nessa mala pra mim? Argum presente?
    – Deu agora para adivinhar, foi, Dona Francisca? – Abriu a mala e tirou uma imagem. – Olha o que eu trouxe para a senhora, espero que goste.
    – Um santo! Qui santo é esse?
    – Não faço a menor ideia.
    – dexa eu dá uma mirada, criança. – Observou a imagem. – Mas num sei qui santo é esse.
    – eu entrei esse santo nas águas do Rio das Mortes.
    – vou butar ele junto cum os outro.
    – dona Francisca, a senhora está com algum problema?
    – Há! Meu fio, depois Juão morreu a coisa tem ficado dificulutosa. Não tenio dinheiro pra mais nada. Mas vou viveno como Deus quiser. Num é mermo meu fio? Purque é Deus qui diz a nossa hora.
    – Eu trouxe algum dinheiro para a senhora, da produção das balsas. Procurei vendas para elas, mas não achei comprador. Ninguém quer comprar balsa em Minas porque o ouro que existe não compensa. E de onde se tira e não bota.... também porque a polícia está sempre lacrando as balsas por causa do mercúrio e o assoreamento das margens. – passou umas notas de sem reais para dona Francisca. Mas eu deixei uns rapazes encarregados de procurarem vendas.
    – Obrigado, meu fio. Deixe as balsa cum eles. As balsa é sua meu fio. É sua profissão.
    – Obrigado, Dona Francisca. Mas vou procurar Aparecida. Quero fazer uma surpresa pra ela. Como ela está? Tem visto ela?
    – Já teve aqui hoje. Falano de você – mas antes de ir a casa dela quero primeiro ter uma conversa com padre Jeremias.
    Onório se retirou e dona Francisca foi colocar a imagem do santo em cima da mesa de oração. Fez uns voto para o Santo Aparecido. Pegou um pano e começou espaná-lo. O pano fez uma volta sobre a imagem o suficiente para derrubá-la no chão. – O meu Deus! – abaixando-se para pegar a imagem que havia se partido ao meio e revelando um pó amarelo dentro de seu corpo. – Mas...! Ouro! Meu Deus do céu! O santo tava cheio de ouro! – Dona Francisca conhecia perfeitamente ouro.

Capítulo 12
 O padre Jeremias estava lendo a Bíblia em um cômodo da casa paroquial que transformou em escritório. A porta estava semi-aberta quando Onório botou a cabeça para dentro dando um leve toque na porta.
    –  Meu amigo, entre! Que o trouxe aqui? Até parece que não somos amigos! Sente-se!
    – Padre, vou direto ao assunto. Padre, meu caro amigo, eu gostaria de fazer uma pergunta para você. Desde que observei Fabiana não consigo ver ela como minha filha biológica. E eu não gosto de arrodeio. Eu fiz um exame de DNA e deu noventa e nove por cento negativos. Nunca disse nada para Aparecida e nem para Fabiana. A minha esperança eram duas: primeiro que Aparecida me contasse a verdade, segundo para ver se eu mesmo descobriria o verdadeiro pai da menina. Como eu não conseguia descobrir e nem pegar Aparecida no vacilo, pensei que o pai de Fabiana era algum viajante ou caminhoneiro. Não a culpo de nada. Ela ainda é uma jovem e tem suas necessidades. Eu não sou casado com ela. Passo a vida viajando para os garimpos. Gosto da minha solidão. Mas padre eu não sou tolo. Você mais do que ninguém sabe disso. Não me deixo levar por força externa a minha vontade. E o que penso, penso.
    – Certamente, meu amigo, você pensa ter encontrado a pai de Fabiana?
    – Tenho quase convicção disso. Mas não sou dramático. Não irei fazer escândalo com o nome de ninguém. Mas fico imaginando como podem as pessoas gostar tanto de mentiras. Parece que a mentira é que alimenta a humanidade. Por que, padre?
    – Tens razão. Você é um homem muito esperto. Mas tem coisa ainda nesse mundo que não se explica. De uma forma ou de outra somos obrigados a preservar a mentira.
    – Mentindo ou falando a verdade, não se vive?
    – Entendo. Mas de qualquer forma peço que guarde com você a verdade. Sou um padre que tenho vergonha e inveja de você. Você é um homem livre. Não precisa de nada além da própria vida para viver e ser feliz. Quanto a mim, fico enclausurado fingindo ser um homem honesto e santo. Sou um homem com todos os desejos possíveis que um homem possa ter. Quantas vezes fiquei masturbando-me! Depois de algum tempo não aguentei mais esse autoflagelo. Com medo de que Deus estivesse me olhando. Meu pênis enrijecia entre meu corpo e a calça, apertado entre a virilha e a coxa e o orgasmo era inevitável causando, em minha calça branca, uma mancha amarelada de uma substância gelatinosa. Poucas vezes foi possível mandar minhas calças para a lavadeira. Muitas noites eu tive de terror, quando alguma jovem mostrava sua entranha no banco da frente. Os meus testículos doíam reclamando por drenagem das células reprodutoras pelo ereto tubo condutor. Quando não aguentava mais tirava o meu troço tão enorme e viril em ereção, que Príapo e Backlum-Chaaam se sentiriam minimizados, e tocava uma punheta. Ufa! Que alívio seguido de arrependimento passageiro! Certa vez eu quase fui surpreendido pelo sacristão que tomou seu lugar, com a boca na botija quando estava iniciando uma sessão de masturbação. Fechei rápido o zíper da minha calça com o cacete liso de saliva das variadas cuspidas providenciais quando já estava quase gozando. Outro dia tive de comer uma senhora pernuda que anda trepando a torto e a direito. Desculpe-me o meu modo de falar, mas percebi que deixar de comer um priquito é uma autoflagelação. Para eu ficar aliviado basta enfiar o meu troço em um buraco qualquer. Fico de um jeito que não posso ver nem um pinto cagando que corro para mexer o negócio para frente e para trás até espirrar na ponta e pronto. Outra vez, uma fogosa cadela disse que estava satisfeita porque seu marido só fazia papai-e-mamãe. Nunca se interessou em comer sua rosca de chocolate com medo de engordar e transgredir os preceitos religiosos e ser devidamente castigado. Quando vejo tanto xiri para serem picados, fica difícil controlar os ardores do cacete e as agitações do cérebro de tanto imaginar o imaginável, se isso fosse possível. A boa do celibato é que não se marreta por obrigação, mas por desejo. Mas nem todos os buracos estão disponíveis para enfiar essa coisa. É certo que não tenho liberdade sexual, mas isso não é tão horrível assim. Porque não estou prejudicando ninguém com os meus desejos. Não violento as senhoras e nem as obrigo a irem para cama comigo. A vantagem é que cada uma tem seu jeito que lhes são peculiares. Aquela tem um gostoso traseiro, mas é tagarela. Essa não fala nada, mas tem uma chupada de louco! Sabe tratar uma vara como ninguém. Aquela outra, a mais linda de todas, não quer saber de chupar, mas pede que eu enfie o meu polegar em seu ânus quando está sentada em cima do cacete. De todo modo não existe uma lei que diga que alguém tem que ser marido e mulher e terem filhos. Falo assim para você ter uma noção de como tenho passado esses anos no celibato. Eu peço o seu perdão.
     – Meu amigo, fique tranquilo. Existem casos piores. Quantos pedófilos. Você não está fazendo nada de errado com a lei da natureza. Fora dos instintos naturais o que temos são conceitos e convenções. Ninguém é dono da verdade. Mas não posso deixar de falar para Fabiana que eu não sou o pai biológico dela. O resto fica por conta de vocês. Fique tranquilo porque nós somos uns joguetes nas mãos da natureza que nos impulsionam a procriar. Essa força instintiva, escondida, é biológica. Ela nos determina ao acasalamento e à reprodução da espécie. Se essa força instintiva não nos dominasse, nós não colocaríamos filhos no mundo. O orgasmo está associado ao acasalamento para nos induzir à procriação.

Capítulo 13

Onório chegou à casa de Aparecida. Entrou e sentou no sofá. De dentro vinha o cheiro de feijão temperado com pimenta de cheiro. Onório ficou atordoado pelo cheiro que quase foi abrir a panela para tirar um pouco de comida. Pegou o controle da televisão e ligou-a em alto volume. Aparecida gritou:
    – Baixa o volume da televisão, Fabiana! Ta surda, é? – Onório aumenta de volume.
    – Fabiana, tu tá ficando doida? Não sei pra quem tu puxou teimosa assim. – Onório aumentou até o ultimo volume.
    – Espera, Fabiana, teu pai não pode te bater, mas eu posso. – Foi até a sala.
    – Meu Deus! É você, meu amor! – correu para abraçá-lo. Segurou-o por meio minuto sem nada dizer. – Que saudade! Como você está?
    – Eu estou bem. Onde está Fabiana?
    – Saiu. Mas não demora. Quer tomar alguma coisa? Tenho suco de cupu.
    – Cupu eu aceito. – Aparecida trouxe uma jarra de suco.
    – Que saborzinho exótico! – estralando os lábios. – Eu a vi conversando com o padre Jeremias. Até parece que é sua filha.
    – Tá louco! Falando assim da sua filha! Assim você me ofende. E ela que apesar de conviverem muito pouco tempo juntos é sua fã. Vive dizendo que tem muita admiração por você.
    – É, e eu também gosto dela, e muito, mas não quero o drama do Pato Selvagem.
    – O drama do Pato Selvagem? Que drama é esse? Que pato selvagem é esse?
    – Vou deixar você descobrir por si mesmo. – Onório foi até o carro e trouxe um livro na mão. – Toma! Você é professora formada em Letras. Enquanto você lê preciso falar com o padre Jeremias a respeito de uma imagem.
    – Mas... espere! – trêmula, Aparecida leu o título do livro: Ibsen, seis Dramas: O Pato Selvagem.


Capítulo 14

Onório levou o objeto para o padre Jeremias fazer um reconhecimento.
    – Padre, você que é um iconográfico, diga que espécie de santo é esse? – perguntou Onório. O padre observou-o e, de forma tranquila disse:
    – É uma estatueta de um santo em estilo rococó do período barroco encomendada pelo padre João de Farias, que ele usava para catequizar os índios. Ele a carregava nas expedições bandeirantes na época do grande ciclo do ouro. Certamente foi encontrado com algum defunto ou foi jogado no rio.
    – O defunto era o padre?
    – Acredito que não. Alguém se apossou da imagem ou algum escravo se apossou da imagem para guardar o ouro ou então comprar sua liberdade. Naquela época, quando a exploração do ouro se achava em sua melhor fase, a produção era devida ao trabalho intenso dos escravos. Então, os senhores donos das minas pagavam uma pequena parcela pela grande produção. Mas se algum escravo encontrasse muito ouro, tinha a oportunidade de comprar sua liberdade.
    – Esse certamente não queria que a coisa fosse assim?
    – Tudo leva a crer que sim. Mas não o escravo, talvez o dono da mina que se recusou a pagar o quinto.
    – O quinto?
    – Era o quinto do ouro produzido, cerca de vinte por cento em favor da metrópole portuguesa. Regulamentada por um decreto sob o nome de Regimento dos Superintendentes, guardas-mores e oficiais deputados para as minas de ouro. Eles chamavam de “quintar ouro” quando transformavam em barra, na casa de fundição, o ouro que deveria circular. Somente era permitido circular ouro em barra. O ouro em pó ou em grãos era proibido. Seriam exilados, confiscados seus bens ou banidos da colônia quem infringisse esse dispositivo. O ouro era guardado em imagens de santos para não deixar suspeita. Os mineradores mais espertos faziam um furo no interior das imagens para fugir da fiscalização da Derrama.
    – Pois é, padre imagine que a casa de dona Francisca vive cheia de gente querendo pedir uma benção do Santo Aparecido.
    – Deixa, meu filho. Deixa as pessoas terem alguma coisa para adorarem. Não tem nada de mal nisso não.
    – Por mim podem ficar como está. Podem adorar o seu santo. O seu Santo-de-Pau-Oco.