quarta-feira, 19 de setembro de 2012

a história de Judite sobre o poder e o dejeso

 




No movimento Barroco a chegada de um novo pensamento (comercial, filosófico, social), da inevitável morte de Deus, do incômodo com as paixões humanas, da repressão externa e dos conflitos internos fez nascer obras lindíssimas. Todas, mais ou menos católicas, tem a capacidade de expor uma urgência terrível de ser gente, uma percepção absurda dos desejos e malícias humanas, apesar da repressão: os sonetos do Gregório, os sermões do Padre Vieira, as pinturas do Caravaggio. Na tela acima, Judite decapita Holofernes, e deixa o espectador com um sentimento que suponho Caravaggio tinha diante dessa história bíblica: o horror de ver o poder humano ser derrubado por seus desejos.
A história, contada lá no antigo testamento, no livro de Judite, (para os desavisados: não, este não é um blog cristão) é mais ou menos assim: Holofernes, capitão do exército de Nabucodonosor, rei assírio que tomou a maior parte dos povos do “mundo” (que, naquela época, limitava-se a um pedacinho só), foi enviado a  invadir as terras daqueles que iam contra a vontade do rei. Chegou então aos israelitas, mas como ele era um homem inteligente (já ouvira falar que o deus daquele povo agia com requintes de crueldade), tem uma grande ideia: tomar as fontes de água. Ele, então, coloca cem homens em cada fonte e espera que o desespero tome conta da cidade, ou que todos morram de sede. Enquanto espera, no conforto da sua tenda, recebe a visita da viúva Judite (segundo a bíblia: “Era extremamente bela, e seu marido tinha-lhe deixado grandes riquezas”), israelita, toda enfeitada com braceletes, brincos e vestido, que vem trazendo vinho, queijo, figos e grãos. Ao vê-la, “Holofernes ficou cativo de seus olhos” (tradução para meninos de hoje: achou-a linda, gostosa e bacana pra caralho). Depois de ouví-la dizer que seu deus a havia enviado para avisar que ele venceria a guerra (ahhh, qual mulher não elogia?) ele já estava apaixonadíssimo, pobrezinho (provavelmente pensou: “Além de bonita e rica é inteligente!”). Mas, como vocês já devem saber ( o quadro não tem nada de sutíl), ela não estava lá pelos músculos fortes e poderosos do pobre moço: ela era serva do deus de Israel, ela queria sua cabeça. Durante três dias ficou no acampamento, e ainda podia entrar e sair livremente para fazer suas preces. No terceiro dia, Holofernes, já louquíssimo e sem juízo (imaginem só, um marechal acreditar no inimigo!), resolve convidá-la para um vinhozinho na sua tenda, e daí, vejam só:
15 Ela levantou-se e, trajada com requinte, apresentou-se diante dele. 16 O coração de Holofernes agitou-se, porque ardia de paixão por ela. 17 Come e bebe alegremente, disse-lhe ele, pois encontraste graça aos meus olhos. 18 Ao que respondeu Judite: Eu beberei, senhor, porque nunca em minha vida me senti tão engrandecida como hoje. 19 Mas ela tomou e comeu do que a sua serva lhe tinha preparado, e bebeu com ele. 20 Holofernes alegrou-se grandemente por tê-la junto dele, e bebeu vinho como nunca tinha bebido.
O resultado, todo mundo imagina. Enquanto o pobre dormia bêbado, Judite o golpeia com uma faca e, não contente, decapita Holofernes. Adeus poder, adeus novas terras, adeus Judite. Holofernes foi (literalmente, pelo menos a cabeça) para o saco, que ela (cobrona) leva para incitar o seu povo a expulsar o exército assírio.
O velho testamento e suas crueldades. Certamente Caravaggio não via o poder divino agindo nessa história. Ele via, sim, um homem poderosíssimo sucumbindo aos seus desejos de amor, sexo e beleza (coisa que o Caravaggio conhecia bem). O quadro é pertinente e vai ser pertinente para sempre: quem nunca foi decapitado, exposto e ridicularizado pelo desejo? Hein? E quem nunca foi a Judite, maliciosa, tirando proveito do desejo alheio?



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