sexta-feira, 20 de abril de 2012

A arte da palavra




Pausa
                                                                         Mário Quintana


Quando pouso os óculos sobre a mesa para uma pausa na leitura de coisas feitas, ou a feitura de minhas próprias coisas, surpreendo-me a indagar com que se pareceóculos sobre a mesa.
     Com algum inseto de grandes olhos e negras e longas pernas ou antenas?
    Com algum ciclista tombado?
    Não, nada disso me contenta ainda. Com que se parece mesmo?
    E sinto que, enquanto eu não captar a sua implícita imagem-poema, a inquietação perdurará.
     E, enquanto o meu Sancho Pança, cheio de si e de senso comum, declara a meu dom quixote que os óculos sobre a mesa, além de parecerem apenas uns óculos sobre a mesa, são, de fato, um par de óculos sobre a mesa, fico a pensar qual dos dois ­­ ­- dom quixote ou Sancho? – vive uma vida mais intensa e prtanto mais verdadeira...
    E paira no ar o eterno mistério dessa necessidade da recriação das coisas em imagens, para terem mais vida, e da vida em poesia, para ser mais vivida.
     Esse enigma, eu passo a ti, pobre leitor.
    E agora?
    Por enquanto, ante a atual insolubilidade da coisa, só me resta citar citar o dilema de Stechetti:
Io sonno um poeta o sonno um imbecile?”
     Alternativa, aliás, extensiva ao leitor de poesia...
    A verdade é que a minha atroz função não é resolver e sim propor enigmas, fazer o leitor pensar e não pensar por ele.
    E daí?
- Mas o melhor – pondera-me, com a sua voz pausada, o meu Sancho Pança -, o melhor é repor depressa os óculos no nariz.

MÁRIO QUINTANA
(1906-1994)
Poeta sul-riograndense. Buscando sempre uma poesia simples e despojada, publicou mais de uma dezenas de livros, entre os quais se destacam:  A rua dos cata ventos (1940), Espelho mágico (1948), O aprendiz de feiticeiro (1950), Caderno H (1976), apontamento de história sobrenatural (1976), A vaca e o hipogrifo (1977) e escoderijos de tempo (1980).
Dom Quixote e Sancho Pança – personagens da novela Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, escritor espanhol do século XVI. As duas personagens representam os dois lados da alma e do comportamento de todo ser humano: Dom Quixote é o simbolo do idealismo, do sonho, da imaginação, do espirito de aventura...; Sancho Pança, do realismo, do espírito prático, dos interesses imediatos...
Stechetti – pseudônimo do escritor italiano Olindo Guerrini (1845-1916).
Nesta pequena crônica, Mário Quintana reflete sobre suas atividades de escritor e de leitor de poesia. O tema do texto é colocado de maneira direta e, aparentemente, até simplista: escrever e ler poesia não é uma grande perda de tempo? E, radicalizando, pergunta com Stechtti: escrever e ler poesia não é uma imbecilidade?

SENSO COMUM – Ideias amplamente aceita em uma época: opiniões contrarias são vistas como absurdas e aberrantes.
BOM SENSO OU SENSO CRÍTICO – Capacidade de discernir, sem preconceitos, o verdadeiro do falso.
SENSO POÉTICO OU ARTÍSTICO Maneira especial e original de ver a realidade.

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